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Especial Capa
TEXTO \ FERNANDO TORRES
DA FAZENDA À XÍCARA
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A extensa e complexa cadeia de produção de cafés especiais vive momento de expansão no país. Com terroirs privilegiados, Minas projeta diferentes modelos de negócio
FOTO \WEBER PADUA
— Leo Montesanto: transformar produto especial em algo popular
Tomar uma xícara de café tem atingido um plano mais elevado. É o início da chamada “quarta onda”, que prevê a democratização do acesso a cafés de qualidade, mapeados pela variedade dos grãos e processos de cultivo e colheita. Alguns números abalizam esta observação. Entre 2012 e 2020, o número de sacas de café especial comercializado em território nacional saltou de 231 para 1.171, expansão de quase 400% em todo o período, segundo dados da Rabobank Brasil. Até o fim de 2023, estima-se que o consumo chegue a 1.817 sacas de 60 kg por ano, um crescimento de 55% do atual patamar.
Mas, afinal, o que é “café especial”? Não, não é aquele cafezinho passado na hora, tão presente no imaginário mineiro. Para ter este título, o café precisa passar pela rígida metodologia de avaliação sensorial da SCA (Specialty Coffee Association), usada em todo o mundo. A nota de corte são 80 pontos em 100, com avaliação de diversos atributos bastante objetivos, como ausência de defeitos (nos grãos), fragrância, doçura, acidez, uniformidade e corpo. “Embora 80 seja a pontuação mínima oficial, os mercados da Europa e dos Estados Unidos só trabalham com cafés a partir de 84 pontos. É quando ele começa a demonstrar atributos sensoriais específicos, assim como acontece com as diferentes castas de uvas”, compara Leo Montesanto, CEO e um dos fundadores da Coffee++, marca de cafés especiais lançada em outubro de 2020, em Belo Horizonte.
Leo sabe do que está falando. Sua relação com o café vem da infância. Ele cresceu em meio à cafeicultura, na Fazenda Primavera, em Angelândia, terroir da Chapada de Minas, comandada pelo pai, Ricardo Tavares e, antes disso, pelo avô, Aprígio Jr. O trabalho de quase 70 anos da família teve seu ápice em 2018, quando a propriedade conquistou o título de Melhor Café do Brasil, no campeonato Cup of Excellence. “Na sequência, disputamos o torneio mundial, com mais 15 países produtores, alcançando 93.89 pontos, a maior nota do mundo naquele ano”, conta.
O café campeão atende pelo nome de geisha. Originária da Etiópia, a variedade exótica se destaca pela acidez equilibrada e aromas de jasmim e carambola e tem o status de iguaria desde que foi apresentada no Concurso Best of Panamá, em 2004. “É o café mais desejado do mundo. A Fazenda Primavera exportou a saca premiada por US$ 19 mil”, relata o empresário. A título de comparação, na Coffee++, o pacote de 250 g sai por R$ 57, mas o carro-chefe é o drip coffee, o chamado “café de bolso”, com dez sachês de geisha ao preço de R$ 35 – a unidade custa R$ 3,50, o mesmo valor do cafezinho maroto da padaria. Outra vantagem é a portabilidade: basta uma dose de água quente e, em 1 minuto, voilà!, o sachê se transforma em um café nobre. “Nosso intuito é transformar um produto especial em algo popular, possibilitar que o brasileiro tome o café de qualidade que ele merece, aquele que, historicamente, sempre se destinou apenas aos mercados internacionais.”
“Popularizar” não é palavra empregada à toa. Além do e-commerce, a Coffee++ já se disseminou em 1,5 mil pontos de venda nas regiões Sudeste e Sul, inclusive em supermercados voltados às classes C e D. “Diminuímos nossa margem de lucro”, desconversa Leo, ao ser questionado sobre o “pulo do gato” para fazer o caminho inverso da exclusividade perseguida pelo mercado de luxo. É óbvio que ter acesso direto à commodity facilita as coisas. Mas a empresa também trabalha com mais dois produtores.
— Silvia de Moraes Gomide criou o U Can Coffee: café de safras especiais vendido em grãos e acondicionado em latas

A Fazenda Santuário do Sul fica localizada em Carmo de Minas, no terroir Mantiqueira de Minas, sob a responsabilidade do produtor Luiz Paulo Pereira. “Em 2005, ele atingiu a pontuação mais alta do mundo no Cup of Excellence, 95.85, não superada até hoje. É um café com notas sensoriais de goiaba, frutas roxas e muito caramelo”, relata Leo. Já a Fazenda Bom Jardim representa o cerrado mineiro, comandada pelo produtor Gabriel Nunes, o primeiro do terroir a vencer o campeonato, em 2017: um café com notas de marmelo e frutas amarelas.
O cerrado mineiro, aliás, merece um parágrafo à parte. Primeira região do país a receber o certificado de Denominação de Origem, pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial
FOTO \ JULIANA FLISTER /AGÊNCIA I7
(Inpi), em 2014, ela tem, de fato, o terroir ideal para a cafeicultura: altitudes entre 1.000 e 1.200 m, solo de baixa acidez, relevo mais plaino e temperatura quente e úmida no verão e amena e seca no inverno. A combinação dessas características geográficas resulta em um café singular, limpo e adocicado, de acidez média e corpo cremoso.
É neste cenário, na área rural de Carmo do Paranaíba, que ficam localizadas quatro das fazendas da Veloso Coffee, gigante em exportação há mais de 40 anos. A produção, porém, sempre foi escoada em sua totalidade até o porto de Santos, rumo aos mercados internacionais. Isso até o start da publicitária Silvia de Moraes Gomide, nora do cafeicultor Pedro Humberto
Veloso. Em 2020, ela criou a marca U Can Coffee, com o intuito de comercializar pequenos lotes de safras altamente pontuadas. “Nunca me conformei com o fato de 100% deste café tão especial ir para fora do país. Quero deixar um pouco do ouro do Brasil, o maior produtor global, para o brasileiro!”, diz ela.
O primeiro lote nasceu em novembro, batizado de Bombom de nozes e pontuado em 87.5. “Da variedade catuaí amarelo, ele é bem fácil de beber. Tem notas de mel, castanhas e nozes e me lembra muito o bolo de nozes de Natal”, descreve Silvia. Em fevereiro, vieram outros três rótulos, encabeçados pelo Geisha, Uai! – como o próprio nome diz, da variedade geisha. “Trata-se de um nanolote de apenas duas sacas da safra 2020, com 91 de pontuação. Ou seja, totalmente focada em qualidade e não quantidade.” O Sangría não fica muito atrás: é um café caturra, também exótico, de perfil bastante frutado, com 90 pontos; enquanto o Brown Sugar, o mais doce de todos, é um catuaí vermelho, com 89 pontos. “O que vem no paladar é o açúcar mascavo, com notas de frutas amarelas, camomila e um quê de pêssego em calda.”
Inspirada nos cafés enlatados japoneses, Silvia comercializa os rótulos em latas de 250 g e sempre e apenas em grãos. “Para provar um café dessa qualidade, a pessoa precisa ter, no mínimo, um moedor. O café moído começa a oxidar depois de cinco minutos. Ou seja, a comercialização em pó joga por terra todo o trabalho da fazenda e pelo mestre de torra para valorizar as nuances. É um pecado, um desrespeito!”, afirma a empresária. O foco de vendas está no e-commerce, mas os produtos também estão disponíveis em empórios gourmet, como a Fazenda Alegria, no Vila da Serra; e nas unidades Xuá e Lourdes do SuperNosso Gourmet.

FOTO \ BÁRBARA DUTRA
— Isabela Bertol, da Mito: ponte entre o cafeicultor e o consumidor final
Outra marca que se especializou em ser uma ponte entre o cafeicultor e o consumidor final é a Mito Cafés Especiais. A empresa, fundada em 2017, é um braço da Fazenda Dona Neném, de Presidente Olegário, também no cerrado mineiro, que exporta café verde a mais de 30 países, para marcas como Nespresso, Illy e Starbucks. “Com o crescimento do público brasileiro interessado em café especial, pensamos em construir uma marca própria, com diversas variedades de nossa produção de maior pontuação”, conta a sócio-fundadora Isabela Bertol, nora do engenheiro Eduardo Campos, à frente da fazenda desde 1976.
Com identidade visual planejada pela


— Tiago Damasceno e Adriene Cobra, da Oop Café: espaço para experiências inéditas com café
Greco Design, os quatro rótulos da Mito – Dona Nenem, Cantagalo, Benzedô e, o mais recente, Coronel Chichico – contam um pouco da história de quatro gerações da família Campos. O abre-alas é o Dona Nenem, um blend de bourbon amarelo e catuaí vermelho de 84 pontos pela SCA. Ele homenageia a matriarca Maria da Conceição, lembrada por sua postura firme e doce, tal qual o café que dá nome, com notas de amêndoas, sabor doce de avelã e caramelo, corpo equilibrado com toque de chocolate e acidez delicada. Já o Coronel Chichico, catuaí vermelho de 82 pontos, refere-se ao apelido do coronel Francisco, pioneiro e grande entusiasta da cafeicultura. “Por isso, pensamos em um café forte, mais potente e encorpado, de torra média, um pouco mais escura, com notas de chocolate e caramelo”, descreve Isabela.
Benzedô, de 85 pontos, alude a um homem
FOTOS \ DIVULGAÇÃO
conhecido pelas rezas em prol da colheita e dos agricultores. O bourbon amarelo resulta em um café equilibrado, com doçura marcante, aroma floral e sabor pronunciado de frutas cítricas. Por fim, Cantagalo conta a lenda de um galo com olhos de fogo que aparece na garupa de quem ousa cavalgar pela fazenda à meia-noite: o café de 85 pontos, também bourbon amarelo, envereda por nuances mais exóticas, com notas de frutas amarelas e um toque de mel.
O Mito chega às mãos do consumidor em grão e moído, em pacotes de 250 g. Uma novidade recente é a versão em cápsulas, além do microlote superespecial, de 87 pontos, vendido em garrafa de vidro e caixa de madeira, apenas em grãos. A marca também já teve sua própria cafeteria, no Guaja, mas hoje é o cafezinho oficial de casas como Taste-vin, Mocca Coffee & Meals e O Granulado. Além disso, é
A NOVA BOLSA DO CAFÉ
Quanto está a cotação do café? Esta pergunta poderia ser feita ao Dr. Flávio Pentagna Guimarães, patriarca do Banco BMG e dono das fazendas São Lourenço, Brasis e Santa Rita, em Varjão de Minas, no cerrado mineiro. Com quase 900 hectares, as propriedades já desenvolvem a cafeicultura desde 1977 e viraram a chave para o café especial a partir de 2007. “Foi quando demos início ao processo de renovação contínua nas práticas de agricultura e de maior comprometimento com a sustentabilidade econômica, social e ambiental. Essa mudança de pensamento inclui desde a escolha genética do café, valorizando as variedades mais tolerantes aos efeitos climáticos da região, até cuidados com o solo, redução de agroquímicos e maior uso de fertilizantes orgânicos”, pontua a gerente agrícola das fazendas Lucimar Silva. Todo esse cuidado rendeu diversas certificações na última década, como as da Utz e Rainforest Alliance, além do Certifica Minas e Café Practices. Com produção anual em torno de 30 mil sacas, 70% dela considerada especial, o Grupo BMG criou, em 2016, a marca Guima Café, focada em exportação. Mas, como todo bom banqueiro, reservou parte do investimento ao mercado interno, por meio de quatro linhas de nano e microlotes, batizados com animais símbolos do cerrado. “O campeão de vendas é o drip coffee ‘Tatu’, um bourbon amarelo que se diferencia ao trazer notas sensoriais de limão-siciliano e camomila, além de muita doçura, acidez cítrica brilhante, corpo sedoso e finalização elegante”, descreve Lucimar, que também é q-grader, um título para avaliador de cafés especiais. O portfólio do Guima também inclui os rótulos “Papagaio”, em cápsulas; “Lobo-guará” e “Siriema”; estes moídos e em grão. O “Lobo-guará” é considerado um dos mais especiais: com notas de caramelo e castanhas, acidez de laranja e sabor de chocolate ao leite. Os itens são comercializados via e-commerce e unidades do supermercado SuperNosso, além da cafeteria Elisa Café, em Belo Horizonte; e Mundo Café, em Uberlândia. “A Mundo Café tem um rótulo exclusivo da nossa fazenda, a Coleção Gesha, um lote raríssimo, com apenas 200 unidades de três pacotes de 150 g”, revela Lucimar.

comercializado on-line e em empórios gourmet como Roça Capital e Empório Nacional. “Recentemente, recebemos uma proposta de uma rede supermercadista, mas ainda estamos estudando a viabilidade”, segreda Isabela.
O negócio dos cafés especiais também passa por cafeterias especializadas, que comercializam tanto o produto moído ou em grão quanto a bebida em sua forma final. É o caso da Oop (pronuncia-se ôp), na Savassi, aonde o café chega como commodity, passa pela torra no local e sai embalado em pacotes de marca própria, em grão ou moído, nos tamanhos de 250 g e 1 kg; ou extraído na própria xícara. A propósito, “oop” significa “aberto” na língua africâner, falada na África do Sul e na Namíbia. “A expressão traduz nosso conceito de ser um lugar em que as pessoas se abram para conhecer novos sabores e aromas e ter experiências inéditas com café”, diz o barista Tiago Damasceno, sócio-fundador da empresa, ao lado da também barista Adriene Cobra.
Atualmente, o portfólio contém sete produtores: quatro de Minas, dois do Espírito Santo e um da Bahia. “O mais novo integrante é o Café da Paula – comercializado assim mesmo, com o rótulo enaltecendo o nome do produtor”, relata Damasceno. Os grãos de catuaí amarelo, estimados em 89 pontos, vêm da Fazenda
FOTO/ YAGO LIMA

— Os coffee hunters Daniel Cabral e Guilherme Hamers, do Noete: contato com 400 pequenos produtores
Recanto, em Machado, no Sul de Minas, onde Paula e seus pais, Afrânio e Maria Selma, desenvolvem um trabalho no ramo já há cinco gerações. A dedicação abrange desde a seleção das variedades e processamento até preocupações de ordem ambiental e social, como os sistemas de produção e as condições de trabalho da mão de obra.
Outro destaque da safra atual é o orgânico Café da Miriam, de Santo Antônio do Amparo, na região do Campo das Vertentes, estimado em 86,5 pontos. “Ele é completamente produzido pelo processo chamado de adubação orgânica, com resíduos de origem animal e vegetal, como folhas secas, gramas e restos de alimentos, sem nenhum uso de defensivos agrícolas. Agora, os produtores estão iniciando o sistema agroflorestal, que combina plantio de árvores com o cultivo agrícola, de forma a projetar um sistema natural de defesa das plantações”, conta Damasceno.
Este tipo de trabalho “investigativo” se transformou em uma categoria profissional, a dos coffee hunters. O termo, traduzido por “caçadores de café”, se refere a especialistas que percorrem fazendas de várias regiões do país atrás dos melhores grãos. “Temos networking com aproximadamente 400 pequenos produtores, todos muito engajados em produzir café especial. São cafeicultores que conhecem muito bem a propriedade, fazem a colheita no momento correto de maturação, controlam a quantidade de água necessária para o desenvolvimento do grão e secam o café corretamente, reduzindo a umidade em até 12%”, relata Daniel Cabral, um dos fundadores do Noete Café Clube.
Foi assim, viajando, que ele e o sócio, Guilherme Hamers, conheceram Ana Cecília Velloso, gerente comercial do São Luiz Estate Coffee. Sua linha de cafés especiais, a São Luiz Speciality Estate Coffee, provém da Fazenda São Luiz, em Carmo do Paranaíba, e atinge uma média anual de 5 mil sacas da variedade catuaí, com média de 84 a 85 pontos. Já os lotes especiais das
safras de 2013 e 2017 conquistaram o V Prêmio Região do Cerrado Mineiro, com 89 pontos na avaliação sensorial. O início da produção remonta ao fim dos anos 1960, quando seu avô, Miguel Velloso, vislumbrou a oportunidade cafeeira na fazenda da família. Anos depois, seu filho, Fausto, engenheiro de formação, passou a investir na profissionalização das operações e na busca por cafés de qualidade. “Meu pai foi um dos pioneiros no sistema de irrigação de gotejamento, que entrega a água e os nutrientes de forma mais eficiente para o cultivo; e a desenvolver a técnica ‘cereja descascado’, em que a fruta do cafeeiro tem sua casca externa retirada para se fazer a secagem das sementes”, relata Ana Cecília.
A partir do trabalho dos coffee hunters, parte da matéria-prima da São Luiz Speciality Estate Coffee passou a chegar em sacas no Noete Café Clube. Mais que uma cafeteria gourmet, a Noete – do francês nouet, algo como “filtro de infusão” – tem a proposta de funcionar realmente como uma agremiação. “O cliente contrata um plano anual de assinaturas e recebe em casa, mensalmente, um pacote de café especial em grão ou moído, variando entre 250 g e 5 kg. Sempre selecionamos produtores diferentes, assumindo o compromisso de não repetir nenhum deles no período de um ano”, descreve o sócio-fundador Daniel Cabral. O clube tem, atualmente, 220 assinantes ativos espalhado pelo Brasil, 55% deles em São Paulo e 34% em Minas.
E o trabalho não para por aí. A Noete também tem seu próprio equipamento de torrefação. Instalado em um imóvel de 1937 do bairro Santo Antônio, o espaço se assemelha a uma casa de fazenda no coração de Belo Horizonte, com cheiro de café torrado na hora. “O perfil da torra acentua as características do café, extrai

FOTO/LÚCIO VELLOSO
— Ana Cecília Velloso, do São Luiz: família foi pioneira em técnicas como “cereja descascado”
as qualidades desejadas e entrega o melhor de cada lote. Se torrarmos muito, como é feito com o café comercial extraforte, estragamos o trabalho diferenciado feito pelo produtor: perdemos em aroma, sabor e doçura, além de retirar todo o óleo que está dentro do grão – queremos que ele saia na bebida e não na torra.”
De fato, um simples erro no processo posterior à entrega do grão pode colocar tudo a perder. O que reafirma a complexidade trabalho com cafés especiais, com extensão de ponta a ponta, até chegar à xícara. Mas fique tranquilo: neste novo patamar do consumo de café, o freguês só tem ganhos. A única dificuldade é selecionar o tipo de extração na carta: coado, espresso, capucino, ristretto, macchiatto, latte, cold brew... vb