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Plataformas digitais: desafios bem palpáveis

Serviços on-line representam novos canais de distribuição de música, mas ainda precisam aperfeiçoar o modelo de negócio e as relações com os criadores

Por Thiago Jansen, do Rio

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A revolução tecnológica das últimas décadas vem adicionando elementos inéditos às dinâmicas de consumo de canções e remuneração dos artistas por suas obras. Mas, se o bolo digital não para de crescer, a distribuição dos seus pedaços entre os criadores ainda carece de uma lógica mais justa. Internacionalmente, um clamor por um modelo de negócio que remunere melhor os autores ganha cada vez mais vozes No Brasil, desde o início da década de 2000 já operam, de modo mais ou menos regular, sites de compartilhamento de canções, mas a legalização só ganhou ímpeto uma década depois, com a chegada de serviços de streaming de áudio, como Rdio, e de lojas virtuais como a iTunes Store, da Apple, entre diversos outros que se seguiram a eles, como Deezer, Spotify e Google Play. Essas plataformas, a olhos leigos, parecem todas iguais, mas, na verdade, têm conceitos bem diferentes. Algumas são lojas on-line, que vendem canções e álbuns no formato eletrônico e permitem ao usuário fazer a descarga permanente dos fonogramas em seu dispositivo (um computador, um tocador de arquivos MP3, um tablet). Já os serviços de streaming possibilitam ao público, por meio do pagamento de assinaturas, ouvir as canções on-line e até mesmo armazená-las temporariamente, sem baixá-las definitivamente.

Ainda que difiram, todas elas estão submetidas às mesmas regras de direito autoral, determinadas pela Lei 9.610/98, que estabelece os conceitos de reprodução/distribuição (fonomecânicos) e de execução pública. No entanto, se, antes da internet, as situações referentes a cada um desses direitos eram mais explícitas, no atual contexto esses conceitos muitas vezes se mesclam – descargas e simples reprodução podem ser feitas eventualmente pelos mesmos canais. A questão é importante porque tem impacto na estrutura necessária para a arrecadação desses direitos junto aos serviços: no caso das execuções públicas, ela é realizada pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad); já no direito de reprodução/distribuição, a cobrança é feita diretamente pelos titulares desse direito, individualmente, ou em conjunto.

Diretora-executiva da União Brasileira de Compositores (UBC), Marisa Gandelman afirma que essa dinâmica traz uma série de desafios à arrecadação para artistas e compositores: “No caso dos serviços que ofertam a opção de streaming, por exemplo, a situação é mais complicada, já que você tem práticas que se misturam, o que exige uma complexa estrutura de arrecadação. Além disso, em razão do expressivo número de meios de difusão e oferta de música, há um processo de banalização do valor de troca da música, o que não é bom”.

Um evento ocorrido em setembro passado em Genebra, na Suíça, ilustra bem o que ela diz. Paralelamente à Assembleia Geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), agência da ONU encarregada de desenvolver políticas e leis de copyright, um grupo de artistas e especialistas expôs com clareza o mal-estar em torno das relações entre plataformas digitais e autores. Convocado pela Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores (Cisac), o Painel dos Criadores foi marcado por discursos contundentes como o do compositor canadense Eddie Schwartz, que comparou sua remuneração atual com a que obtinha em tempos pré-digitais. “Antes, as vendas de um milhão de discos de uma vez se traduziriam numa renda modesta de classe média e um disco de platina. Mas o extrato das minhas vendas digitais hoje mostra que, para cada milhão de streamings, eu recebo US$ 35. Meu status de classe média foi reduzido a uma pizza”, afirmou, antes de ser ovacionado.

“Antes, as vendas de um milhão de discos de uma vez se traduziriam numa renda modesta de classe média e um disco de platina. Mas o extrato das minhas vendas digitais hoje mostra que, para cada milhão de 'streamings', eu recebo US$ 35. Meu status de classe média foi reduzido a uma pizza”

Eddie Schwartz, compositor

O presidente da Cisac, o músico francês Jean Michel Jarre, deixou claro que não se trata de uma guerra entre criadores e a indústria digital. Ele convidou legisladores a aprimorar regulamentações mundo afora de modo a garantir pagamentos justos e reafirmou a grande oportunidade que esta era proporciona aos artistas. “Deixem-me dizer em alto e bom som: nós somos pró-tecnologia. Apoiamos a tecnologia e não temos qualquer problema com ela. Mas precisamos de modelos de negócio sustentáveis, que façam sentido para ambas as partes. Esses serviços devem considerar o valor intrínseco das obras criativas e se basear em uma remuneração justa ao criadores. Estamos no centro da economia digital, e são nossas obras que geram receita para os serviços. Sendo assim, seria demais exigir que tenhamos uma justa participação nesse negócio?”

Cálculos da rede britânica BBC estimaram, em 2013, em meio centavo de dólar o valor que renderá cada stream realizado num serviço como o Spotify. Isso quer dizer que, no melhor dos casos – ou seja, com uma gravadora independente por trás do artista em questão –, este ficará como algo como 50% do valor. No caso de uma major, o valor pode ser de exíguos 15%. Ou seja, a difícil quantidade de um milhão de reproduções (que poucos alcançam) daria a esse hipotético contratado de uma grande gravadora uns US$ 750 – um pouco mais do que o canadense Eddie Schwartz calculou no painel da Cisac, mas bem menos do que qualquer um consideraria uma arrecadação digna.

Os serviços se defendem e afirmam que a remuneração é estabelecida “em contrato”. E é precisamente essa a questão: muitas vezes os artistas são a parte menos forte nesse cabo de guerra. Diante de uma disputa claramente mais candente, as plataformas digitais e as entidades de gestão coletiva vêm tentando realizar acordos para adaptar os conceitos convencionais às novas dinâmicas. Serviços como o YouTube e o Vevo, por exemplo, deveriam pagar tanto os direitos de reprodução como os de execução pública. No entanto, o consenso nem sempre é alcançado nessas negociações, gerando impasses que servem como justificativa para que não se paguem os direitos das músicas, das gravações e dos vídeos oferecidos.

“O interessante é que, com esses serviços, qualquer artista tem condições de distribuir o seu trabalho de forma remunerada para além do público local, no mundo inteiro"

Dudu de Morro Agudo, compositor

Em lojas digitais como a iTunes Store, o pagamento dos direitos é feito ao produtor fonográfico, que repassa a parte do intérprete, ou ao agregador digital (especializado na distribuição de conteúdo para as lojas virtuais), aos editores das música ou aos órgãos que representam os direitos fonomecânicos, como é o caso da UBC, que, por sua vez, distribuem os devidos valores aos autores das músicas gravadas e vendidas. Já nas plataformas de streaming, convencionou-se a cobrança de um percentual referente à execução pública e outro aos direitos fonomecânicos e do autor. Ambas as cobranças são calculadas sobre a quantidade de execuções das obras nos serviços e sobre a renda oriunda de publicidade e assinaturas.

“No Rdio, sobre a nossa receita líquida vinda das assinaturas existe um percentual destinado aos royalties negociado previamente com as gravadoras e editoras, que recebem os valores proporcionalmente ao número de execuções aplicado no total da receita do serviço. Consideramos uma execução quando a música toca mais de 45 segundos”, afirma Bruno Vieira, diretor do serviço no Brasil.

Diretor geral do Spotify para a América Latina, Gustavo Diament explica que a sua plataforma também não tem contato direto com os artistas, apenas com as gravadoras e distribuidoras, bem como com as editoras e com as sociedades de gestão coletiva. No serviço, o valor dos royalties a serem pagos também é estabelecido de forma proporcional à quantidade de reproduções dos artistas. “Cerca de 70% de toda a receita do Spotify com taxas de publicidade e assinaturas são revertidos para os detentores de direitos: artistas, gravadoras, editoras e sociedades de direitos”, alega Diament.

O lado positivo dos serviços é destacado por alguns artistas. Músico independente há 20 anos, o rapper Dudu de Morro Agudo admite que essas plataformas vêm proporcionando a artistas como ele acesso a uma audiência global. “O interessante é que, com esses serviços, qualquer artista tem condições de distribuir o seu trabalho de forma remunerada para além do público local, no mundo inteiro. É algo que dá oportunidades a artistas independentes, e não só aos de grandes gravadoras”, elogia.

Mesmo que o mercado venha, em geral, conseguindo adaptar a operação dos novos serviços digitais no país à atual lei de direitos autorais, aprimoramentos na legislação poderiam beneficiar a estrutura de cobrança e distribuição de direitos. A solução definitiva para os impasses, porém, está nas relações de mercado, ou seja, entre os provedores de conteúdo digital e os criadores e demais titulares de direitos autorais de música. É o que afirma Marisa Gandelman, da UBC: “É importante ter em mente que a resposta para os conflitos não virá de uma mudança da lei, mas do próprio mercado. No entanto, é válido reconhecer que um aprimoramento na legislação poderia, sim, criar novas estruturas e mecanismos que facilitem a arrecadação dos direitos de uma forma mais barata e menos burocrática, a partir do reconhecimento do processamento conjunto de tipos de direitos diferentes.”

Presidente da União Brasileira de Editores de Música (Ubem), Marcelo Falcão faz coro: “Precisamos de aprimoramento, não de revolução normativa. A fórmula ideal seria um refinamento do que já temos e que serviria para ratificar entendimentos e direitos.”

UBC: dupla atuação para dar mais força aos autores

Atenta à chegada maciça dos serviços de música on-line ao país e à necessidade permanente da distribuição dos rendimentos dos direitos dos compositores, a UBC se adapta. Parte do colegiado que integra o Ecad, a UBC trabalha há 72 anos com a arrecadação de direitos relativos à execução pública e, desde 2010, com aqueles relativos aos direitos fonomecânicos. Com essa atuação dupla, a associação tem conseguido se colocar em uma melhor posição para estabelecer acordos com os novos serviços digitais.

Atualmente, a associação administra contratos com os principais serviços do mercado digital, como Rdio, Spotify, Deezer e iTunes. Além disso, desenvolveu a tecnologia necessária para analisar os dados dos relatórios de venda desses serviços, identificar seus repertórios e emitir as cobranças devidas de forma prática e ágil.

Tendo contribuído para a elaboração da atual Lei de Direitos Autorais, outorgada em 19 de fevereiro de 1998, a UBC também acompanha de perto as iniciativas de revisão da legislação e participa das discussões sobre o tema com o objetivo de proteger os interesses dos seus associados.