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Poeta Pop

Antonio Cicero, mais novo imortal da ABL, evoca a relação milenar entre músicas e poemas e fala sobre seu processo de produção de uns e outras

por_ Kamille Viola ■ do_ Rio fotos_ Gustavo Stephan

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Em agosto passado, o brilhante letrista e diretor da UBC Antonio Cicero se tornou imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), passando a ocupar a cadeira 27, deixada vaga pela morte do crítico, professor e escritor Eduardo Portella e que teve como fundador Joaquim Nabuco. Mais ou menos um ano antes, o Nobel de Literatura havia sido concedido ao trovador estadunidense Bob Dylan. São pelo menos dois signos maiúsculos de uma aparentemente recente chancela do mundo literário ao musical que tem surpreendido alguma gente. O próprio Cicero, no entanto, não vê nada de estranho.

“A primeira poesia que se conhece, a da Grécia clássica, era musicada. A própria expressão ‘lírica’ vem, é claro, de ‘lira’. A poesia lírica se apresentava como canções. Os primeiros poetas não escreviam seus poemas; eles os cantavam, enquanto tocavam a lira, durante festins ou banquetes. Às vezes uns bailarinos dançavam durante as apresentações. Como os poemas épicos são muito longos, supõese que consistiam numa espécie de ‘rap’, algo entre o canto e a recitação”, descreve o compositor de grandes sucessos do pop e da MPB nas vozes da irmã, Marina Lima, do parceiro Lulu Santos e de tantos outros. “Isso prova que um poema escrito não é necessariamente melhor do que uma letra de música. Esse fato foi ignorado durante muitos séculos, mas hoje, quando, por exemplo, no Brasil ou nos Estados Unidos, grandes poetas se dedicam a escrever letras de música, isso volta a ser reconhecido.”

Tudo o que sei e sinto entra em jogo no ato de criação.”

Antonio Cicero

Embora já escrevesse poesia antes de tornarse letrista, foi a música que impulsionou sua carreira: quando morava em Washington, onde fez pós-graduação em Filosofia, Cicero teve um poema musicado por Marina, “Alma Caiada”. A canção caiu nas graças de Maria Bethânia, que chegou a gravá-la para o disco “Pássaro Proibido” (1976), mas foi impedida de lançá-la pela censura. Zizi Possi também registrou a música, que saiu no disco “Pedaço de Mim” (1979). No mesmo ano, Marina estrearia com o álbum “Simples como Fogo”, que trazia cinco parcerias com o irmão. Não tinha volta: Antonio Cicero era oficialmente um letrista. E dos (muito) bons.

O número de canções (são mais de cem!), aliás, supera o de poemas. “Uma das razões (para isso) é que, de fato, quando um cantor e compositor que admiro me propõe uma parceria e me entrega uma bela melodia, não resisto e faço a letra para ela. Além disso, vários poemas que publiquei em livros já foram musicados, de modo que também viraram letras de música”, resume Cicero.

Ele explica que sempre parte da música, não o contrário. “Ao escrever uma letra, sou influenciado ou inspirado pela melodia que ouço. Além disso, também a imagem e a personalidade do parceiro ou da parceira que me deu essa melodia me influenciam e inspiram. E, por último, caso meu parceiro ou minha parceira estejamos fazendo uma canção para outro cantor, também a imagem e a personalidade dessa outra pessoa me influenciam e inspiram”, detalha. “Ora, nenhuma dessas influências ou inspirações existe quando escrevo um poema. A diferença principal é essa. Fora isso, o trabalho de fazer uma letra é muito parecido com o de fazer um poema para ser lido. Tudo o que sei e sinto, todas as minhas faculdades — razão, emoção, intelecto, sensação, sentimento, memória —, tudo pode entrar em jogo e tudo se confunde no ato de criação.”

Duplamente imortal

No dia 20 de setembro, Cícero gravou sua participação no projeto Depoimentos para a Posteridade, do Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro, onde foi sabatinado por Caetano Veloso, Rosa Maria Barbosa de Araújo, Presidente do MIS, Eucanaã Ferraz, Luciano Figueiredo, Antonio Carlos Secchin. Cícero falou sobre as comparações entre poesia e letra de música e lembrou o tempo em que viveu em Londres — para onde foi, em 1969, porque seu pai tinha medo do envolvimento do filho com os movimentos sociais. Lá, ele cursou Filosofia e conviveu com Caetano, Gilberto Gil, Jorge Mautner, o poeta Haroldo de Campos e o compositor Péricles Cavalcanti, entre outros.

A convivência com o compositor baiano começou porque Cicero tinha um grau de parentesco com as irmãs Dedé e Sandra Gadelha, respectivamente mulher de Caetano e de Gil. “O Caetano tinha essa coisa de absolutamente não fazer nenhuma separação entre ‘high culture’ e ‘low culture’, entre cultura erudita e cultura popular. Ele encontrava as coisas às vezes mais profundas exatamente onde parecia ser o produto mais popular”, lembra Cicero, que, eclético, sincrético, trabalha num novo livro de filosofia.

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