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CLAUDIA MARIA DADICO

CRIMES DE ÓDIO DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA POLÍTICA E O DIREITO

Claudia Maria Dadico

CRIMES DE ÓDIO DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA POLÍTICA E O DIREITO

2020

Copyright© Tirant lo Blanch Brasil Editor Responsável: Aline Gostinski Assistente Editorial: Izabela Eid Capa e Diagramação: Renata Milan CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM - México

Juarez Tavares Catedrático de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Brasil

Luis López Guerra Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid - Espanha

Owen M. Fiss Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade de Yale - EUA

Tomás S. Vives Antón Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ ou editoriais.

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Claudia Maria Dadico

CRIMES DE ÓDIO DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA POLÍTICA E O DIREITO

2020

SUMÁRIO PREFÁCIO - DO ÓDIO E DE SEUS CRIMES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 AGRADECIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 NOTAS INTRODUTÓRIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 CAPÍTULO 1 - O FENÔMENO DO ÓDIO: HISTÓRIA, POLÍTICA, ESTADO NAÇÃO, BIOPOLÍTICA, GLOBALIZAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 1. O ÓDIO NA FUNDAÇÃO DOS ESTADOS MODERNOS: A GENEALOGIA DE UM PRINCÍPIO POLÍTICO . . . . . . . . . . . . . . . 22 2. O DISCURSO HISTORIOGRÁFICO DA GUERRA DAS RAÇAS COMO NARRATIVA DE PODER, FORÇA E VIOLÊNCIA . . . . . . . 25 3. A BURGUESIA COMO NAÇÃO: O ÓDIO COMO INGREDIENTE ESSENCIAL DO ETHNOS NACIONAL . . . . . . . . 33 4. O ÓDIO SOB O IMPÉRIO DO BIOPODER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 5. DA “GUERRA DAS RAÇAS” AO RACISMO DE ESTADO . . . . . . . . . 39 5.1. CIENTIFICISMO, EVOLUCIONISMO E AS TEORIAS RACIAIS DO SÉCULO XIX: AS BASES “PSEUDOCIENTÍFICAS” DA IDEOLOGIA DO ÓDIO . . . . . 40 5.2. O EVOLUCIONISMO SOCIAL E SUAS REPERCUSSÕES NA CONSTRUÇÃO DAS IDEOLOGIAS DO ÓDIO . . . . . . . 43 5.3. AS TEORIAS DA DEGENERESCÊNCIA DA RAÇA . . . . . . . . . .47 6. O ÓDIO COMO FENÔMENO BIOPOLÍTICO . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 7. O ELO ENTRE A SOBERANIA E A BIOPOLÍTICA: O “HOMO SACER” DE AGAMBEN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 8. A GLOBALIZAÇÃO E A PERSISTÊNCIA DO ÓDIO SOB NOVAS CONFIGURAÇÕES: BIOPOLÍTICA E TANATOPOLÍTICA64 9. NECROPOLÍTICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 10. O ÓDIO EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO: AS MINORIAS COMO “PRESENÇAS INDESEJÁVEIS” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 11. AS IDENTIDADES PREDATÓRIAS E A ESPETACULARIZAÇÃO GLOBAL DO ÓDIO . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 CAPÍTULO 2 - O TRATAMENTO JURÍDICO DO ÓDIO: O DISCURSO DE ÓDIO (HATE SPEECH) E OS CRIMES DE ÓDIO (HATE CRIMES) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1. O PERCURSO CONCEITUAL DOS CRIMES DE ÓDIO (HATE CRIMES), DISCURSOS DE ÓDIO (HATE SPEECHES) E GRUPOS DE ÓDIO (HATE GROUPS) NO DEBATE JURÍDICO INTERNACIONAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1.1. O PERÍODO PÓS-2ª GUERRA MUNDIAL. . . . . . . . . . . . . . . . .

1.2. AS PRIMEIRAS LEGISLAÇÕES DOMÉSTICAS NAS DÉCADAS DE 1960-1970 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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CRIMES DE ÓDIO: DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA POLÍTICA E O DIREITO - CLAUDIA MARIA DADICO

1.3. A EMERGÊNCIA DO ÓDIO COMO PRINCÍPIO UNIFICADOR: O DEBATE ESTADUNIDENSE NAS DÉCADAS DE 1980-1990 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 1.4. OS DEBATES SOBRE O DISCURSO DE ÓDIO (HATE SPEECH) NA JURISPRUDÊNCIA DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94 1.5. DO RACISMO AO ÓDIO: A FORÇA MOBILIZADORA E UNIFICADORA DE UM CONCEITO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102 1.6. CIBERÓDIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 1.7. COMPLEXIDADES DO USO DO CONCEITO ÓDIO EM SUAS INTERAÇÕES COM O DIREITO: INSUFICIÊNCIAS E LACUNAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110 2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA INCRIMINADORA DO DISCURSO DE ÓDIO A GRUPOS POLITICAMENTE MINORITÁRIOS E SUA INTERPRETAÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . . . 116 2.1. O PERÍODO ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: A LEGISLAÇÃO PENAL INCRIMINADORA COMO DISPOSITIVO A SERVIÇO DO ÓDIO E DA DISCRIMINAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118 2.2. O PERÍODO PÓS-CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS INCRIMINADORAS DA VIOLÊNCIA E DO DISCURSO DO ÓDIO . . . . . . . . . . 128 2.2.1. OS CONCEITOS DE “RAÇA” E “RACISMO” DE ACORDO COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 2.3. INTERAÇÕES ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DISCURSO DE ÓDIO NO DEBATE JURÍDICO BRASILEIRO E NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 2.3.1. TEORIAS SOBRE CONTEÚDOS, LIMITAÇÕES OU RESTRIÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS INTERAÇÕES ENTRE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E IGUALDADE/DIGNIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 2.3.2. O DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO PORTADOR DE POSIÇÃO PREFERENCIAL (“PREFERRED POSITION”) . . . . . . . . . . . 147 2.3.3. AS DIVERSAS FORMULAÇÕES DO “DISCURSO DE ÓDIO” NO DEBATE JURÍDICO BRASILEIRO . . . . . . . 151

Sumário 7

3. AS ORIGENS ESTADUNIDENSES DOS CRIMES DE ÓDIO (HATE CRIMES): MODELOS, FUNDAMENTOS E INFLUÊNCIA NOS MARCOS NORMATIVOS MUNDIAIS . . . . . 161 3.1. O CONCEITO DE CRIMES DE ÓDIO NO DIREITO ESTADUNIDENSE. OS MODELOS “ANIMUS MODEL” E “DISCRIMINATORY SELECTION MODEL” E SUAS VARIAÇÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164 3.2. OS DEBATES ACERCA DA FUNDAMENTAÇÃO DOS CRIMES DE ÓDIO NO CONTEXTO ESTADUNIDENSE . 169 3.2.1. O “HATE DEBATE” E A TESE DO DANO AGRAVADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 3.2.2. O “HATE DEBATE” E O DEVER DE NEUTRALIDADE DO ESTADO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 3.2.3. O “HATE DEBATE” E A CRÍTICA “IDENTITÁRIA” . 174 3.3. PRINCIPAIS LEIS FEDERAIS ACERCA DOS “HATE CRIMES” NO DIREITO ESTADUNIDENSE . . . . . . . . . . . . 176 3.3.1. THE FEDERAL CIVIL RIGHTS ACTS . . . . . . . . . . . . . 176 3.3.2. HATE CRIME STATISTICS ACT . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 3.3.3. VAWA – VIOLENCE AGAINST WOMEN ACT . . . . . . 179 3.3.4. HATE CRIMES SENTENCING ENHANCEMENT ACT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180 3.3.5. MATTHEW SHEPARD AND JAMES BYRD, JR. HATE CRIMES PREVENTION ACT. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180 3.4. A POSIÇÃO DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS SOBRE “HATE CRIMES” À LUZ DA PRIMEIRA EMENDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

4. OS CRIMES DE ÓDIO NO DIREITO BRASILEIRO: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

4.1. CRIMES DE ÓDIO E TEORIAS DA JUSTIÇA: ABORDAGEM FILOSÓFICA E JURÍDICA . . . . . . . . . . . . . .

4.2. CRIMES DE ÓDIO, CONSTITUCIONALISMOS E DIREITOS HUMANOS: ABORDAGEM NORMATIVA . . . .

4.3. OS CRIMES DE ÓDIO COMO VIOLAÇÕES A DIREITOS HUMANOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

4.4. O DIREITO PENAL E OS CRIMES DE ÓDIO . . . . . . . . . . . .

4.5. OS CRIMES DE ÓDIO NO CONFLITO ENTRE A COMPREENSÃO DO ÓDIO COMO EMOÇÃO E O

181 183 183 188 196 199

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CRIMES DE ÓDIO: DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA POLÍTICA E O DIREITO - CLAUDIA MARIA DADICO

PRINCÍPIO DA MATERIALIDADE COMO LIMITE AO DIREITO PENAL INCRIMINADOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 202 4.6. EM BUSCA DE UM CONCEITO DE CRIMES DE ÓDIO NO DIREITO BRASILEIRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 4.6.1. CRIMES DE ÓDIO E CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO205 4.6.2. CRIMES DE ÓDIO E CRIMES CONTRA A HUMANIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209 4.6.3. A ARQUITETURA DOS CRIMES DE ÓDIO A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS ESTADUNIDENSES DO ANIMUS MODEL E DO DISCRIMINATORY SELECTION MODEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212 CAPÍTULO 3 - IMPACTOS DA CRÍTICA GENEALÓGICA NA COMPREENSÃO DOS CRIMES DE ÓDIO NO DIREITO BRASILEIRO 226 1. O ÓDIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO E SUAS REPERCUSSÕES POLÍTICAS E JURÍDICAS.226 1.1. AS REPERCUSSÕES DA TOMADA CONSCIÊNCIA ACERCA DO ÓDIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO NA ESFERA POLÍTICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229 1.2. SOLIDARIEDADE, DIVERSIDADE E JUSTIÇA COMO PRINCÍPIOS JURÍDICOS ANTAGÔNICOS AO ÓDIO. . . . 232 1.3. AS REPERCUSSÕES DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA ACERCA DO ÓDIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO E O DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . 234 2. AS REPERCUSSÕES DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA ACERCA DO ÓDIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO NO APERFEIÇOAMENTO DA TUTELA PENAL NO BRASIL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239 2.1. A RELEITURA DO CONCEITO DE CRIMES DE ÓDIO À LUZ DO ÓDIO CONSTITUTIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239 2.2. REPERCUSSÕES DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA ACERCA DO ÓDIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO NA APLICAÇÃO DA LEI PENAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241 2.3. O FEMINICÍDIO COMO CRIME DE ÓDIO E SUAS REPERCUSSÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243 3. REPERCUSSÕES DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA ACERCA DO ÓDIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO NAS INSTITUIÇÕES DO SISTEMA DE JUSTIÇA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247

Sumário 9

4. REPERCUSSÕES DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA ACERCA DO ÓDIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO NA PRODUÇÃO DAS LEIS PENAIS . . . . .

5.1. O CONCEITO DE “EXPRESSÃO” PROTEGIDA PELO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM FACE DO DISCURSO DE ÓDIO SOB O ENFOQUE DO ÓDIO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

5.2. OS EQUÍVOCOS DA CONCEPÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL EM POSIÇÃO PREFERENCIAL (“PREFERRED POSITION”) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

5.3. AS IMPLICAÇÕES DA “ECONOMIZAÇÃO” DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DA TENDÊNCIA NEOLIBERAL DE DESREGULAMENTAÇÃO RADICAL NO CAMPO DO ÓDIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

5.4. REPERCUSSÕES DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA ACERCA DO CARÁTER CONSTITUTIVO DO ÓDIO NOS ESTADOS MODERNOS E OS PARÂMETROS DE PROTEÇÃO EM FACE DO DISCURSO DE ÓDIO . . . . . . .

5.5. O DISCURSO DE ÓDIO PRODUZIDO POR AGENTES PÚBLICOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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5.5.1. A CONCEPÇÃO DE IMUNIDADE PARLAMENTAR EM FACE DA TOMADA DE CONSCIÊNCIA ACERCA DO ÓDIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DO ESTADO MODERNO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303 5.5.2. O DISCURSO DE ÓDIO NO SISTEMA DE JUSTIÇA 305 REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 310

PREFÁCIO DO ÓDIO E DE SEUS CRIMES “...o sujeito que fala nesse discurso, que diz ‘eu’ ou que diz ‘nós, não pode, e, aliás, não procura, ocupar a posição do jurista ou do filósofo, isto é, a posição do sujeito universal, totalizador ou neutro. (...) Claro, sem dúvida, ele faz o discurso do direito, e faz valer o direito, reclama-o. Mas o que ele reclama e faz valer são os ‘seus direitos’ – ‘são os nossos direitos’, diz ele: direitos singulares, fortemente marcados por uma relação de propriedade, de conquista, de vitória, de natureza.

Será o direito de sua família ou de sua raça, o direito de sua superioridade ou de direito da anterioridade, o direito das invasões triunfantes ou o direito das ocupações recentes ou milenares. De todo o modo, é um direito a um só tempo arraigado numa história e descentralizado em relação a uma universalidade jurídica. E, se esse sujeito que fala do direito (ou melhor, dos seus direitos) fala da verdade, essa verdade não é, tampouco, a verdade universal do filósofo. (Michel Foucault, “Em Defesa da Sociedade”. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 60)

A pergunta sobre os impulsos e os acontecimentos mais básicos, constitutivos e dramáticos da experiência humana é simultânea à tomada de consciência da existência. Não importa se na perspectiva do indivíduo ou da sociedade, o ódio, e seu par, o amor, reclamam sentido e implicam modos de ser e de viver; não é à toa que, desde a antiguidade à modernidade, suas correspondências - vida/morte, eros/tanatos, ordem/caos, equilíbrio/destemperança, dike/hybris, paz/guerra – ressoam fundo, tão trágicas e decisivas na literatura e na mitologia, como em Homero, tão vitais e estruturais na análise do eu na psicologia das massas, como em Freud. É com atenção e perspicácia, diante desse cenário embebido no cultivo do ódio e prenhe de manifestações orientalistas e coloniais, que Claudia Maria Dadico nos agracia com esta obra.

Tomando o “direito penal do ódio” como fio condutor, nossa autora, desde o prelúdio ao desfecho de seu itinerário, nos convoca a um “pensamento alargado”. Por uma leitura séria e organizada de uma historiografia, de uma teoria do Estado e da sociedade e de uma crítica jurídica que não se enregelam pela fundura do ódio, o que se desvela, antes e além do horror de seus crimes, é a normalização de sua presença. Liberta das envolturas psíquicas das pulsões e da agressividade, como também da “naturalidade” dos desarranjos liberais dos direitos individuais,

PREFÁCIO 11

a autora põe-nos defronte ao esteio e à roda de transmissão da fábrica da moderna sociedade do ódio. Ao entranhar-se na genealogia desse Estado e dessa sociedade, conduz-nos pelo entremeado da filosofia política, da historiografia, do discurso religioso e científico, deixando à mostra o ódio constitutivo em suas medulas.

Como substância primordial nos alicerces da modernidade, o ódio terá o sentido e a função do cimento no edifício jurídico, não do rejunte aqui e ali defeituoso. Após desnudar as profundezas do ódio no Estado, na sociedade e no direito, o esforço da pesquisa e do pensamento não pode parar, até porque nossa autora, além de acadêmica séria e competente, carrega a responsabilidade do fazer ao lado da sede do saber, magistrada experimentada que é. Daí o esquadrinhar da construção jurídica dos crimes de ódio. Desde a história legislativa até a efetividade social, passando por seus fundamentos, sua configuração típica e suas cargas probatórias, todo empreendimento é submetido a uma sondagem de qualidade distinta, contrastada à literatura jurídica tradicional e recorrente.

Comprometida com a concretização do direito, a análise tem que avançar em busca de uma outra arquitetura do social, do político e do jurídico. Se o ódio é constitutivo e estrutural, novas fundações são urgentes, sem o que a “dogmática penal do ódio” amesquinha-se por alheia à gênese, à dinâmica e à persistência do ódio. Não só desdobramentos lógicos de sua tese, há tarefas urgentes e vitais a dar conta, agravadas pelo recrudescimento do ódio neoliberal: lançar solidariedade, justiça e antidiscriminação como fundamentos; revisitar os bens jurídicos protegidos; dar a devida dimensão a violações emblemáticas como o feminicídio; desfraldar o pano de fundo em que a liberdade de expressão e até a voz de agentes públicos se pretendem infinitos, absolutos e desencarnados.

Ao encerrar estas linhas, renovada e generosa oportunidade do diálogo com que a autora me presenteou ao longo de sua pesquisa, permito-me citar Thomas Mann, para depois parafraseá-lo com despudor. Se, na alegoria da ascensão do ódio nazifascista, um sombrio professor provocou no aluno Serenus a certeza de que “certa gente não deveria falar de liberdade, razão e humanidade; melhor seria que se abstivesse disso por motivos de decência”[1], podemos dizer, leitores deste preciosa edição, que Claudia Maria Dadico é daquelas pessoas que devem falar de igualdade, justiça e solidariedade, e que, para nossa felicidade, disso não se absteve.

ROGER RAUPP RIOS Doutor em Direito (UFRGS), Desembargador Federal TRF4, Professor PPGD UNISINOS

Às vítimas cotidianas de todos e tantos ódios no Brasil e no Mundo.

“Os sobreviventes dos novos naufrágios, os que puseram pé em terra e não foram expulsos, terão à sua espera o eterno calvário da exploração, da intolerância, do racismo, do ódio à pele, da suspeita, do rebaixamento moral. Aquele que antes havia sido explorado e perdeu a memória de o ter sido, explorará. Aquele que foi desprezado e finge tê-lo esquecido, refinará o seu próprio desprezar. Aquele a quem ontem rebaixaram, rebaixará hoje com mais rancor. E ei-los, todos juntos, a atirar pedras a quem chega à margem de cá do Bidassoa, como se nunca tivessem eles emigrado, ou os pais, ou os avós, como se nunca tivessem sofrido de fome e de desespero, de angústia e de medo. Em verdade, em verdade vos digo, há certas maneiras de ser feliz que são simplesmente odiosas”.

(SARAMAGO, José. História da emigração. In: Outros Cadernos de Saramago.

Lisboa: Fundação José Saramago, 2009.

AGRADECIMENTOS Aos Professores Doutores Fabrício Dreyer de Ávila Pozzebon e Luciano Feldens pela orientação, incentivo e oportunidades de aprendizado.

A todos os professores, colegas e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pelos ensinamentos, compartilhamentos generosos e agradável convívio acadêmico.

Ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, pelo apoio institucional.

Ao querido amigo Roger Raupp Rios, exemplo de magistrado humano, sensível e conectado com os direitos humanos pelas preciosas indicações, trocas intelectuais, companheirismo e estímulo constante.

Aos queridos Adriana Cruz, Alessandro Quevedo, Ana Inês Algorta Latorre, Airton Salbego, Aline Vanin, Ana Paula de Bortoli, Ângela Gil, Antonio Araújo, Analúcia Hartmann, Ary Copetti, Augusto Jobim do Amaral, Aymoré Roque Pottes de Mello, Carla Hendges, César Henrique Poleto, Carlos Colombo, Clara Mota Pimenta, Débora Diniz, Fernanda Bragatto, Fernanda Martins, Francisco Donizete, Gilberto Schäfer, João Marcos Dadico Sobrinho, Jorge Roberto del Gaudio de Sousa, Karine Cordeiro, Liliane Copetti, Luciana Bauer, Luciana Moisés, Márcia Tiburi, Marciane Bonzanini, Marinez Crestani, Márcio José de Moraes, Micheli Polippo, Osvaldo Antonio Dadico, Osvaldo Antonio Dadico Filho, Paulo Gilberto Cogo Leivas, Pedro Araújo, Raquel Soares Bugarin, Silvio Almeida, Talita Marino André, Tani Wurster, Tania Maria Gomes Pereira, Veriano Terto, Vilson Groh, aos servidores da Direção do Foro da Seção Judiciária de Santa Catarina no biênio 2017-2019 e da 7ª Vara Federal em Florianópolis, aos integrantes do grupo Morrua, pela contribuição que cada um, à sua maneira, ao enriquecer o caminho trilhado, tornou possível a elaboração desse livro e sua publicação.

Aos queridos magistrados e magistradas da Associação Juízes para a Democracia, em especial, às juízas e juízes da NúcleA Lédio Rosa por conservarem acesa a luz da esperança num Poder Judiciário mais justo e democrático. À Cristiane Martins da Paula Luz, pela criteriosa e competente revisão. À Donina Eunice Campos, pelo exemplo de mulher inteligente, criativa e batalhadora, pelo estímulo e pela indispensável acolhida em Porto Alegre. À Marina, razão da minha alegria, por me nutrir com suas experiências, seus pensamentos, seus projetos e seu amor.

NOTAS INTRODUTÓRIAS Os crimes de ódio contra grupos politicamente minoritários, determinados por traços identitários (raça, cor, sexo, orientação sexual) ou escolhas fundamentais (religião, ideologia política), apresentam-se como realidade relevante e desafiadora.

A relevância dos crimes de ódio como objeto de reflexão advém de sua natureza de grave violação de direitos humanos, com significativos impactos no tecido social. Dessa forma, o interesse pelo tema veio se intensificando nos últimos anos, diante da profusão de notícias acerca de um pretenso aumento da violência por ódio no Brasil e no mundo, notadamente após o advento de poderosos catalisadores como a Internet e as redes sociais, com suas novas e sofisticadas formas de veiculação e disseminação do ódio em escala mundial.

No Brasil, a despeito da ausência de base de dados oficial de alcance nacional para a mensuração desses crimes, os dados colhidos por organizações não governamentais e por alguns estados da federação permitem visualizar uma realidade alarmante. Documentos sobre os crimes de ódio contra pessoas integrantes de grupos LGBTQIA+, por exemplo, além de descrever cenas brutais de violência1de forma recorrente, revelam a alta incidência desses crimes. Nesse sentido, o último relatório anual do Grupo Gay da Bahia (GGB) contabilizou 445 homicídios de gays, travestis e lésbicas no ano de 2017, o que equivale a uma morte violenta a cada 20 horas2.

Nas localidades em que crimes de ódio são registrados para fins estatísticos pelas autoridades de segurança pública, é possível detectar-se, igualmente, tal tendência de crescimento do número de ocorrências. No Estado de São Paulo, onde a partir de novembro de 2015 tornou-se obrigatório o registro diferenciado para os crimes relacionados a algum tipo de intolerância ou discriminação, chegou-se à cifra de um crime dessa natureza a cada 69 minutos3.

Nesses relatórios, constata-se a frequente prática de crimes com características semelhantes, não apenas contra integrantes das comunidades LGBTQIA+, 1 2 3

EFREM FILHO, Roberto. Corpos brutalizados. Conflitos e materializações nas mortes de LGBT. In: Cadernos Pagu (46). Campinas: Unicamp, janeiro-abril de 2016:311-340. ISSN 1809-4449.

ESTATÍSTICAS: mortes de LGBTS em 2017. Homotransfobiamata, Rio de Janeiro, [entre 2012 e 2018].

Disponível em: https://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/assassinatos-2012/. Acesso em: 8 nov. 2019.

RESK, Felipe. SP registra 1 crime de ódio por hora. Estadão, São Paulo, 20 nov. 2016. Disponível em: http:// sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,sp-registra-1-crime-de-odio-por-hora,10000089434. Acesso em: 18 de jan. de 2018.

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CRIMES DE ÓDIO: DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA POLÍTICA E O DIREITO - CLAUDIA MARIA DADICO

mas também contra integrantes de outros grupos minoritários, a exemplo de pessoas em situação de rua4, índios5, mulheres6, negros7 e estrangeiros8, e que quando são considerados mais de um critério de discriminação, de forma interseccional, os números aumentam significativamente. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de violência contra mulheres negras.

De acordo com o dossiê Violência contra Mulheres Negras, divulgado pela Agência Patrícia Galvão, no ano de 2013, 59,4% dos registros de violência doméstica no serviço referem-se a mulheres negras. O “Dossiê Mulher 2015”, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro aponta que no ano de 2014, do total de vítimas de crimes de estupro registrado, 56,8% tinham como vítimas pessoas negras. Do total de assassinatos de mulheres, no mesmo ano, 62,2% desses crimes vitimaram mulheres negras. Destas, 42,9% das vítimas foram identificadas como pardas e 19,3%, como pretas 9.

Na maior parte dos documentos consultados, há menção à prática da subnotificação, o que é sugestivo de que tais cifras sejam maiores. No que se refere ao 4

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De janeiro a junho de 2013, foram registrados 190 homicídios de moradores de rua no Brasil. (MARTINS, Helena. Violências e mortes de moradores de rua são temas de programa de TV. Agência Brasil, Brasília, 3 jul. 2014. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-07/violencia-e-mortes-de-moradores-de-rua-sao-temas-de-programa-da-tv. Acesso em: 29 jun. 2016).

O Conselho Indigenista Missionário relata que, em 2018, foram 135 óbitos por agressões contra indígenas, incluindo seis vítimas do sexo feminino e um menino de 9 anos, além de 53 vítimas de tentativas de assassinato. (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Violência contra os Povos Indígenas no Brasil - Dados de 2018, Brasília, 2018. Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2019/09/relatorio-violencia-contra-os-povos-indigenas-brasil-2018.pdf. Acesso em: 8 nov. 2019).

O Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil foi elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), com o apoio do escritório no Brasil da ONU Mulheres, da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e apontou que em 2013 foram contabilizados 4.762 homicídios de mulheres, ou seja, 13 feminicídios diários em 2013.

(MONTENEGRO, Manuel Carlos. Feminicídio: 10,7 mil processos aguardam decisão da Justiça em 2017.

Agência CNJ de Notícias, Brasília, DF, 19 de jun. de 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/feminicidio-10-7-mil-processos-aguardavam-decisao-da-justica-em-2017/. Acesso em: 29 jul. 2018). Nos anos de 2017 e 2018, os casos de feminicídios registraram uma alta de 4% em relação ao biênio anterior, somando 2.357 casos, o que revela uma mulher morta por ser mulher a cada oito horas. (BRANDALISE, Camila; TREVISAN, Maria Carolina. Casos de feminicídio sobem no Brasil enquanto homicídios caem. Universa, São Paulo, 10 set. 2019. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/10/feminicidios-sobem-no-brasil-enquanto-homicidios-caem.htm, Acesso em: 08 nov. 2019).

“No Atlas da Violência 2019, verificamos a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil [...]. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros [...], sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos.”

(INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência 2019. Brasília/Rio de Janeiro/ São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em:http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em: 8 nov. 2019).

Cf. CORREIA, Cyneida. Polícia identifica autor de ataque contra venezuelanos em Roraima. Estadão, São Paulo, 9 fev. 2018. Disponível em: http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,policia-identifica-autor-de-ataque-contra-venezuelanos-em-roraima,70002184905. Acesso em: 22 fev. 2018.

Cf. VIOLÊNCIA e racismo. Dossiê violência contra as mulheres. Instituto Patrícia Galvão, São Paulo, 2015. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-e-racismo/.

Acesso em 27 dez. 2019.

NOTAS INTRODUTÓRIAS 17

crescimento das ocorrências de crimes de ódio, o Brasil parece estar em sintonia com uma tendência mundial.

Com o crescimento eleitoral de partidos de extrema direita na Europa10, discursos xenófobos11 e manifestações de intolerância, racismo e ódio12 proliferam-se em todo o mundo, chegando ao ponto de ser verbalizados, com naturalidade, inclusive por Chefes de Estado13. No Reino Unido, país em que há “uma série de leis introduzidas por diversos governos abrangendo diferentes segmentos dos crimes de ódio, assim como uma riqueza de políticas e diretrizes no campo da justiça penal e de inúmeras campanhas de ativismo”14, o número de crimes de ódio aumentou 30% (trinta por cento) no ano de 2017, sendo que a taxa de aumento nos últimos cinco anos chegou a quase 100% (cem por cento)15.

Na Alemanha, segundo relatório da Anistia Internacional, os crimes de ódio subiram nos últimos anos, com um aumento de 87% (oitenta e sete por cento) nos crimes racistas violentos entre 2013 e 2015 e um aumento de 16 vezes nos crimes entre os requerentes de asilo16. Na França, a “naturalização” dos crimes de ódio por parte de autoridades foi motivo de advertência pelo Conselho da Europa17. Nos Estados Unidos, o percentual de crimes de ódio teve expressivo aumento sob a Presidência de Donald Trump, chegando a 62% o aumento verificado no ano de 2016 em cidades como Washington – DC18.

10 Cf. CHARLEAUX, João Paulo. Por que a extrema direita cresce no mundo, segundo este estudioso. Nexo Jornal, São Paulo, 29 set. 2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/09/29/Por-que-a-extrema-direita-cresce-no-mundo-segundo-este-estudioso. Acesso em: 14 jan. 2018.

11 Cf. EDGARD JÚNIOR. ONU cita aumento alarmante nos discursos de ódio e xenofobia. ONU News, Nova Iorque, 21 mar. 2016. Disponível em: http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2016/03/onu-cita-aumento-alarmante-nos-discursos-de-odio-e-xenofobia/#.WlvfpqinHIU. Acesso em: 14 jan. 2018.

12 Veja-se, exemplificativamente, o ocorrido na cidade norte-americana de Charlottesville, em 13 de agosto de 2017, quando uma manifestação de supremacistas brancos resultou em três mortes, pelo menos 34 feridos e um número indeterminado de pessoas presas. (LLANO, Pablo de. Três mortos na jornada de violência provocada por grupos racistas norte-americanos. El Pais, Miami, 13. ago. 2017. Disponível em: https://brasil. elpais.com/brasil/2017/08/12/internacional/1502553163_703843.html. Acesso em: 14 jan. 2018).

13 CHAMADOS de 'merda' por Trump, países protestam com EUA: 'Racista'. Haiti, El Salvador, Botsuana e outras nações citadas por presidente exigem explicações. O Globo, Rio de Janeiro, 12 jan. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/chamados-de-merda-por-trump-paises-protestam-com-eua-racista-22283112. Acesso em: 14 jan. 2018.

14 HARDY, Stevie-Jade; CHAKRABORTI, Neil. Crimes de ódio. In: CARLEN, Pat e FRANÇA, Leandro Ayres (org.). Criminologias alternativas. Porto Alegre: Canal Ciências Criminais, 2017, p. 345-363.

15 CRIMES de ódio crescem quase 100% no Reino Unido. Sputniknews, Europa, 17 out. 2017. Disponível em: https://br.sputniknews.com/europa/201710179612437-crimes-odio-inglaterra/. Acesso em: 18 jan. 2018.

16 ANISTIA INTERNACIONAL BRASIL. Alemanha: Vivendo na insegurança: Como a Alemanha está falhando no combate aos crimes de ódio. Anistia.org., Alemanha, [2016?]. Disponível em: https://anistia.org.br/ direitos-humanos/publicacoes/alemanha-vivendo-na-inseguranca-alemanha-tem-falhado-combate-aos-crimes-de-odio/. Acesso em: 18 jan. 2018 17 CONSELHO Europeu adverte a França por crimes de ódio. TRT – Rádio e Televisão da Turquia, Turquia, 1º mar. 2016. Disponível em: http://www.trt.net.tr/portuguese/europa/2016/03/01/conselho-europeu-adverte-a-franca-por-crimes-de-odio-442574. Acesso em: 18 jan. 2018.

18 MATHIAS, Christopher. Exclusivo: Novo estudo comprova aumento de crimes de ódio na era Trump. HuffPost Brasil, Estados Unidos, 23 set. 2017. Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/2017/09/20/exclusivo-novo-estudo-comprova-aumento-de-crimes-de-odio-na-era-trump_a_23216886/. Acesso em: 18 jan. 2018.

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CRIMES DE ÓDIO: DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA POLÍTICA E O DIREITO - CLAUDIA MARIA DADICO

Além da relevância, o tema dos crimes de ódio também é desafiador em razão de sua complexidade, o que pode explicar a existência de certo descompasso entre a variedade, amplitude e a velocidade de suas manifestações fáticas e as respostas oferecidas à sociedade pelo Direito, por intermédio seu arcabouço normativo e das interpretações dessas normas efetuadas por seus operadores, plasmadas em decisões judiciais e práticas administrativas e institucionais que, muitas vezes, banalizam o ódio como realidade tolerada, minimizada e invisibilizada.

O aumento das ocorrências e sua complexidade demonstram que o ódio é uma realidade que desafia o Direito ao menos de dois modos diferentes: como crimes de ódio e como discurso de ódio.

No campo específico do direito penal, é comum analisar-se o ódio sob o crivo dogmático de categorias da teoria do delito, sob diversas perspectivas: como motivação, no campo da culpabilidade, atribuível ao maior nível de reprovabilidade da conduta ou à maior periculosidade do agente19; no campo da tipicidade, como elementar de tipos penais fundamentais (crime de racismo) ou circunstância de tipos penais derivados (crime de feminicídio), ou mesmo, por perspectivas hauridas das teorias das penas, de corte retribucionista, como circunstância judicial a merecer maior retribuição expressa na fixação de penas mais severas20.

Tais categorias da dogmática jurídico-penal, nas dinâmicas de limitação do poder punitivo do Estado que lhes são inerentes, vão buscar conceitos de ódio em campos extrapenais do saber, com preferência às abordagens da psicologia e da psicanálise. Com isso, acaba-se por privilegiar a compreensão do ódio de forma atomizada, posicionando o indivíduo como o foco preferencial de suas análises. Dessa forma, quando o direito penal busca explicações para o fenômeno do ódio, com a finalidade de discipliná-lo juridicamente nas normas penais, incriminadoras ou não, acaba-se partindo de uma compreensão que o situa, juntamente com o preconceito, como uma “paixão negativa”21, um desvio, uma anomalia ou um acidente.

Deriva dessa concepção do ódio como sentimento ou emoção, confinado nos limites da subjetividade do indivíduo, um debate entre aqueles que defendem 19 Confira-se, por exemplo, a exposição Lucas Montenegro acerca dos fundamentos invocados para a qualificação do homicídio a partir dos princípios da reprovabilidade e da periculosidade. MONTENEGRO, Lucas.

Por que se qualifica o homicídio? Um estudo sobre a relevância da motivação em Direito Penal, por ocasião da Lei do Feminicídio (Lei 13.104, de 2015). Madri, Barcelona, Buenos Aires, São Paulo: Ed. Marcial Pons, 2017, p. 68/112.

20 Em análise crítica, José Milton Peralta refere posicionamentos de Schmidhäuser, Jeschek/Weigend, Roxin e Meissner que, ao vincular os motivos mais reprováveis do crime à necessidade de aplicação das penas maiores, denotam posicionamentos retribucionistas. PERALTA, José Milton. Motivos reprochables. Una investigación acerca de la relevancia de las motivaciones individuales para el Derecho penal liberal. Madri, Barcelona, Buenos Aires: Ed. Marcial Pons: 2012, p. 37/52.

21 SPINOZA, Baruch. Ética. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

NOTAS INTRODUTÓRIAS 19

a relevância penal do ódio como fator que agrega desvalor às condutas criminosas e aqueles que vislumbram o risco de uso do direito penal como forma de intervenção indevida em atitudes internas do agente, suas emoções ou seus pensamentos22.

Essa preocupação não se mostra injustificada, pois a abolição de uma pretensa missão moralizante, orientada para a formação de “indivíduos melhores”, é uma conquista decorrente de séculos de evolução do direito penal contemporâneo, que não comporta retrocessos.

Nesse sentido, há de se destacar que o foco dos estudos dos crimes de ódio, nas molduras dogmáticas do direito penal contemporâneo, é o ódio exteriorizado e suas complexas repercussões no tecido social, fatos que se diferenciam substancialmente do ódio que ocupa o interior dos corações e das mentes.

Outra tendência derivada da concepção do ódio como sentimento ou emoção é a contraposição entre a formulação de expressões ou discursos de ódio com o direito individual de liberdade de expressão ou da liberdade de agir e, a partir da busca de seus limites ou de seu conteúdo substancial, identificar o que seja o ódio a ser enfrentado, sancionado, proibido ou proscrito23.

No campo dos estudos dos discursos de ódio, a abordagem do ódio como sentimento é identificada em alguns estudos que chegam mesmo a considerar equivocado o uso desse termo. Nesses textos, ao tratar de discursos de ódio ou de crimes de ódio, seus autores afirmam que o fenômeno que estão a tratar não diz respeito ao ódio, propriamente, mas a mecanismos próprios da discriminação em razão de determinadas características, reais ou percebidas, das vítimas, motivados por seu pertencimento a determinados grupos e que seria preferível se referir a “crimes de preconceito” no lugar de “crimes de ódio”24 .

Outros autores optam por fundamentar suas análises sobre discursos e crimes de ódio sem afastar o uso do termo ódio, mas, em geral, não aprofundam a investigação acerca de seu conceito e partem de abordagens psicológicas centradas em concepções do ódio identificadas a um feixe de emoções negativas, assim 22 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2013, p. 12; ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 370-371.

23 MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. In: Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Stvdia juridica, n. 65. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 838-848.

24 BRUDHOLM, Thomas. Hatred Beyond Bigotry. In: BRUDHOLM, Thomas; JOHANSEN, Brigitte Schepelern (org.) Hate, politics, Law. Critical perspectives on combating hate. Oxford: Oxford University Press, 2018, p.54; LAWRENCE, Frederick M. Punishing hate: bias crimes under American law. Cambridge: Harvard University Press, 2002, p. 9; REY MARTÍNEZ, Fernando. Discurso del odio y racismo líquido. In: SÁNCHEZ, Miguel Revenga (org.) Libertad de expresión y discursos del odio. Madrid: Universidad de Alcalá, 2015, p. 54.

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CRIMES DE ÓDIO: DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA POLÍTICA E O DIREITO - CLAUDIA MARIA DADICO

como o desprezo, o medo, a aversão, a vontade exacerbada de excluir, segregar ou exterminar25, ou na abordagem vinculada a tipos de personalidade26.

Um dos resultados das abordagens focadas nos sentimentos e emoções é a dificuldade de distinguirem-se, com precisão, os fenômenos da discriminação e do ódio. Nesse sentido, é frequente o recurso a tradicionais classificações que encerram os fenômenos em escalas de intensidade crescente de emoções, em gradação meramente quantitativa27. Essas hesitações conceituais dificultam a articulação com o campo jurídico, uma vez que regulações acerca de um objeto imprecisamente conceituado e compreendido implica respostas insuficientes, inadequadas, incompletas e ineficazes.

Contudo, frise-se, não se trata de abordagens excludentes. O ódio, como termo que agrupa várias formas de intolerância, também se articula “em torno de emoções (crenças, preconceitos, convicções, fantasmas...), de condutas (atos, práticas, procedimentos, leis...) e de um dispositivo ideológico (teorias, mitos, doutrinas, argumentos de autoridade...).”28.

A abordagem aqui proposta busca compreender os crimes de ódio, neles incluídos aqueles que dizem respeito a expressões criminalizadas de discurso do ódio, em referencial teórico diverso, com recurso a categorias da filosofia política, com a finalidade de identificar o ódio em manifestações que retroagem aos albores da Modernidade. Tal busca genealógica permitirá vislumbrá-lo como elemento constitutivo do Estado que, ao internalizar e reproduzir em suas dinâmicas de poder o antagonismo e as ideias de supremacia de um grupo vencedor, situa o fenômeno para além da experiência imediata dos indivíduos e da interação de grupos reciprocamente.

Diante disso, este livro pretende contribuir com o desenvolvimento da temática dos crimes de ódio, sob a perspectiva que identifica o ódio como elemento 25 Tal como as teorias psicológicas fornecidas em: STERNBERG, Robert J.; STERNBERG, Karin. The nature of hate. New York: Cambridge University Press, 2008.

26 ADORNO, Theodor et al. The authoritarian personality, vol. 1. English Edition. London: Harper & Row, 1950.

27 Muito embora tenham total relevância nos campos do saber em que produzidas, as explicações sobre o ódio, numa perspectiva exclusivamente individual, partem de outros pressupostos teóricos e fáticos que prejudicam sua discussão mais ampla e seu acoplamento com o saber jurídico. Nesse sentido, exemplificativamente, situam-se obras jurídicas que conceituam o ódio com base na tradicional “escala de Allport”, difundida e utilizada no âmbito da psicologia social (SOUZA, Regina Cirino Alves de. Crimes de ódio: racismo, feminicídio e homofobia. Belo Horizonte: D´Plácido, 2018, p. 34-50). Allport classifica as ações geradas por preconceitos de acordo com o grau de energia pessoal empregado em (1) antilocução, (2) evasão, (3) discriminação, (4) ataque físico, (5) extermínio (ALLPORT, Gordon. The nature of prejudice. 2. ed. Nova York: Perseus Books, 1992, p. 25-26). A descrição parte dos resultados e, ao buscar explicar as causas, encerra-as nas dinâmicas do preconceito sob uma perspectiva preponderantemente individual, o que, se por um lado é válido e pertinente para os fins a que se propõe, em seu campo de saber, revela-se insuficiente para uma compreensão mais ampla, apta a subsidiar a formulação de instrumentos jurídicos eficazes e sua adequada interpretação e aplicabilidade.

28 BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2016, p. 35.