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Sobre pensar com o coração

Confira uma reflexão, a partir da trajetória de Joan, sobre a arte como possibilidade de existência para mulheres negras

Em “A poesia não é um luxo”, um dos ensaios presentes no livro Irmã outsider (Editora Autêntica, 2019), Audre Lorde diz que, ao olharmos “a vida ao modo europeu, como apenas um problema a ser resolvido, confiamos exclusivamente em nossas ideias para nos libertar, pois elas, segundo nos disseram os patriarcas brancos, são o que temos de valioso”.

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Gostaria de reforçar que foram os “patriarcas brancos”, vulgo colonizadores, que nos disseram aquilo que devemos valorizar. Ora, não foram também eles que, ao invadir a África e as Américas, achando feio tudo aquilo que não era espelho, nos definiram como sub ou super-humanos ao animalizar nossos traços ou hipersexualizar nossos corpos? Não foram eles que inventaram a categoria raça, criaram um conceito de humanidade, rotularam e escravizaram tudo aquilo que não estava à sua imagem e semelhança?

Professora, escritora e ativista, é idealizadora do projeto Encruzilinhas, voltado ao debate de textos sobre negritude, gênero e feminismos.

Memphis, de Tara M. Stringfellow, narra as desventuras de três gerações de mulheres nos segregados Estados Unidos. Logo no primeiro contato que tive com o romance, outras mulheres vieram ao meu encontro mediar minha leitura. Com seu texto incluso na coletânea Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais (Bazar do Tempo, 2020), María Lugones me fez pensar na colonialidade de gênero e em como essa narrativa privilegia homens

(ainda que negros) em detrimento de negras (ainda que mulheres). D. Conceição Evaristo — salve, rainha! — lembrou-me de que, quando nós nos escrevemos, nos “inscrevemos na História”, construímos tradições outras, nos definimos nós mesmas. Mas foi com Audre Lorde que tive a conversa mais potente sobre as vidas de duas das nossas protagonistas, Joan e Miriam, mãe e filha.

Miriam mostra-se totalmente conformada com as atribuições que a sociedade lhe impôs. De fato, acredito que até mesmo seus desejos estão dentro da moldura que a branquitude lhe ofereceu. É interessante notar como a autora nos apresenta essa personalidade “na forma”, “dentro do limite”, marginada. E a árvore genealógica da família, presente nas primeiras páginas do romance, parece nos dizer: é isso, vocês serão sempre assim, não há escapatória.

A mãe de Joan, Hazel, trabalha como enfermeira e defende que não há outra possibilidade de profissão para mulheres negras que não aquelas que são pautadas no cuidado. #estamosaquiparaservir. Até mesmo sua irmã, August, que questiona o que já ganhou “daquele homem branco [Deus]”, renunciou à promissora carreira como cantora para trabalhar como cabeleireira. A família North não encontra rumo fora das fronteiras do ofício protocolar.

Mas, graças à Deusa, nem todas conseguem permanecer na moldura. Joan desmarginiza-se e deseja ter sucesso como artista plástica. O pensamento limitante-colonizador não basta para Joan. É preciso mais para viver, é preciso muito mais para se inventar uma existência, não é mesmo, Toni Morrison?

E é nessa sanha, nesse misto de raiva e rebeldia no qual as margens da obra se fundem aos limites de Joan, que Audre Lorde também grita: a poesia não é um luxo! Tomando de empréstimo sua máxima e pedindo licença, poeta, ouso dizer que (a relação com) a arte não pode ser um luxo. Ainda mais para mulheres negras.

Como a autora ressalta no mesmo ensaio, [a poesia] “é uma necessidade vital de nossa existência. Ela cria o tipo de luz sob a qual baseamos nossas esperanças e nossos sonhos de sobrevivência e mudança. [...] Os horizontes mais longínquos das nossas esperanças e dos nossos medos são pavimentados pelos nossos poemas, esculpidos nas rochas que são nossas experiências diárias”.

Para Joan, que carregava tantos medos e traumas, marcada pela violência sofrida na infância, a arte parecia representar, ainda mais, uma forma de expandir seus horizontes, de conquistar a sua liberdade — cujo gosto, ao finalmente experimentá-la, aproxima-se do da delícia das “tortas de amora quentes” da mãe.

“Talvez eu soubesse o tempo todo. Talvez isso fosse algo que sempre esteve em nós: esse dom. Talvez cada uma de nós o carregasse, sem saber, como uma moeda perdida em um bolso fundo. Minhas mãos provavelmente sabiam o que fazer, as instruções dentro de mim de alguma forma, colocadas lá eras atrás”, pondera Joan ao final.

Audre Lorde bem reforça que “as dores emergem dos nossos sonhos, e são os nossos sonhos que apontam o caminho para a liberdade”. Assim sendo, Joan, viva sua arte e cure dores por meio dela; as suas, mas também as de Miriam, August, Tara, Audre, Toni, Conceição, Maria Carolina. Será por meio dos seus-nossos poemas-esculturas que conseguiremos escrever novos finais a todas!

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Guia de perguntas sobre Memphis

1. Qual a sua visão sobre a construção das protagonistas da história? Quais efeitos a alternância de suas trajetórias produz ao longo da leitura?

2. O livro mostra eventos ligados aos direitos civis nos EUA. O que você achou da forma como a autora trouxe à tona esses acontecimentos históricos?

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