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MANUEL VIEIRA, pintor de domingo entre
MANUEL VIEIRA (MV), pintor de domingo entrevistado por ÓSCAR SANTOS (OS), Director do Museu de Arte Moderna de fátima
OS As suas pinturas compõem um universo muito particular.
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MV Bem, eu... OS Muito. Cada pintura um universo particular. E o inverso do articular. Talvez demasiado particular. Sempre o mesmo universo público. Em termos de estilo, ou de referência, para balizar o campo podemos falar do surrealismo? No surrealismo mais kitsch, aquele dos anos 60, feito nas páginas de um caderno escolar com uma caneta Bic? Ou crê-se mais inscrito numa espécie de Chirico à la Walt Disney? Talvez se possa falar de procedimento surrealista na operação do desenho automático. MV Faço cadáveres esquis a solo. Contra mim próprio.
OS Tipo cinco contra um? É um encadeamento sequencial de formas em que a associação de ideias vai inscrevendo um repertório de figuras bastante interminável. Masturbação retórica. Figuras vagamente conhecidas, mas sempre envoltas na treva. Mas o seu estilo não será um pouco monótono? E no fundo, não são sempre as mesmas formas e figuras? MV Claro.
OS As árvores, as paisagens, as rochas, todo um paisagismo antropomórfico, velhos truques do repertório surrealista e maneirista, o corpo feminino que se desenvolve com um entusiasmo vegetal, etc. O tratamento das figuras, por sua vez, situa-se entre um academismo não apreendido à antiga portuguesa e o território gráfico e borrado da banda desenhada. No fundo, como a Vénus de Milo copiada pelo merceeiro de aldeia, a tosca coluna jónica de rude granito.
MV Provavelmente não...
OS Podia responder que o repertório de formas que vai formando é sempre diferente. Que é raro repetir exactamente a mesma figura da mesma maneira. Que talvez existam alguns elementos repetitivos, como no caso do peregrino, do pinheiro manso, da árvore antropomórfica, mas enfim, os elementos da paisagem são a paisagem dos elementos... Tudo está em tudo. O detalhe faz o todo. Isso seria uma inverdade, mas também poderia constituir uma inmentira, visto que o todo só se compreende pela dialéctica entre os opostos. Daí o preto e branco. Vê o mundo a preto e branco? MV Não o estou a seguir...
OS (interrompendo) As composições, mesmo nos desenhos que diz serem improvisados, acabam — sempre por forçar uma composição académica, quando não completamente simétrica, no sentido em que as linhas de força, o rebatimento do quadrado no rectângulo de oiro, enfim, todos esses recursos são visivelmente utilizados de uma forma deliberada. Por vezes adivinha-se que a intenção seria na direcção de uma não composição, de um ordenamento caótico, muito mais interessante, mas acaba por cair na segurança do recurso às normas tradicionais, assim como no caso da utilização da perspectiva que acaba por amarrar figuras por vezes interessantes a um patamar rígido e convencional. Tudo isso é fatalmente datado, ultrapassado, atropelado, tornado obsoleto, desde a própria técnica,
matéria e suportes até ao desenvolvimento de uma tentativa de pôr em cena uma diversidade de possibilidades narrativas em torno de pseudo-formas simbólicas.
MV Aquilo que eu faço...
OS Sim, podia responder que a perspectiva dá obviamente mais uma dimensão ao bidimensional, embora esteja subentendido que o bidimensional o é. Não sei por que haveria de prescindir de um recurso que se lhe apresenta como presente. é precisamente no convite para a entrada no mundo do quadro que este instrumento é útil. Torna as relações entre as formas desenhadas num todo equivalente ao mundo real, dá direcções ao olhar e ao pensamento. Sabe que a tradição europeia está um pouco cansada, mas a si dá-lhe jeito, e acaba por ser o caldo de cultura podre de onde ainda lhe vêm as suas magras referências. MV Eu penso que...
OS Aí está, não pensa. Vive no mundo dos pintores que, como os macaquinhos da mente, vivem em sótãos gotejantes e atiram a tinta para a tela a perguntarem-se a si próprios: «o que será que isto quer dizer?», convencidos de que o seu inconsciente fabrica arte, como os intestinos processam a matéria fecal. é esse, portanto o ouro espiritual que pretendem minerar. A total falta de responsabilidade para uma coerência lógica apreensível ao funcionamento de um dispositivo intelectual de utilidade pública tornou esse tipo de atitude sem qualquer sentido numa época em que somos obrigados a explicar as imagens com as muletas da dialéctica. Os poços de petróleo do romantismo, as minas de ouro do simbolismo, os castelos de vento do surrealismo, fazem parte da estrada dos contos de carochinha da arte moderna. Assim como a arte do inconsciente, ou a mão de Deus a guiar o artista. No máximo, seria ainda tolerável, no domínio da assinatura de um suposto génio, o artista Xamã que caricaturiza até à náusea essa atitude, tomando ao mesmo tempo do seu lado um discurso verbal coerente e panfletário, realizando trabalhos nas áreas não tradicionais, tornando a sua vida em guião de telenovela em que todos os actores, todos os elementos do cenário que é a vida são talismãs de um culto inculto.
MV O que quer dizer com áreas não tradicionais? OS As técnicas e os procedimentos que são associados às vanguardas do século XX, como as instalações, a vídeo arte, a multimédia, a interdisciplinaridade, a obra aberta...
MV Aquilo é tudo feito à mão. OS O que quero dizer é que o que se ensina há algum tempo e o que se mostra desde há um tempo nos museus são precisamente as técnicas e procedimentos que encarnavam uma atitude de quebra com a arte de museu e que se dirigiam a um outro tipo de participação na ruptura do jogo cultural. Agora, claro, um pobre pintor de sótão volta a ser um pobre pintor de sótão, porque não lhe é permitido participar no que se tornou hoje o jogo académico e no que se tornou hoje a arte de museu. Ao recusar entrar no jogo de toda a gente, recusa entrar no mundo da Arte, tornando-se uma curiosidade de rodapé. E como é mais conhecido como um cantor obsceno e beberrão, o seu destino é a campa rasa da cultura. Não vai para os Prazeres ou para o Pierre Lachaise. MV Os Prazeres são mais perto de casa. OS é verdade que tentou mudar o rumo com o Orgasmo Carlos. O Orgasmo Carlos é um xamã, mas um xamã saloio.
MV Não. é um saloio, mas um saloio xamã.
OS O problema é que o elemento cómico de baixo nível reduz essa invenção a mais um fantasma indecente. Não interessa agora a tradição obscena galaico-portuguesa, o Bocage e outros, podia ter utilizado o alter ego para, com praticamente a mesma atitude, ter um discurso mais consentâneo com o admissível (é escusado insistir nas gigantescas vaginas peludas), isto é, o sério, isto é, aquilo que é considerado sério e importante, isto é, aquilo que nos chega dos centros culturais mundiais como aquilo que é mais sério e importante. Não é o caso de um discurso obsceno, quase paralelo ao discurso das canções dos Ena Pá 2000. Isto é, podia ter quebrado o discurso mágico visual infantil dos seus desenhos e pinturas com um discurso adulto, mas foi cair no erro simétrico, caiu numa obscenidade também infantil, na caricatura do Adulto, na recusa de comprar um bilhete para a lotaria do mundo da Arte. Depois de tudo isso, pelo contrário, o personagem mantém-se fiel à sua própria miséria moral. MV Como assim, o personagem? OS Exactamente. A sua espessura é a espessura dos seus personagens. Mudando de assunto, sabe o que eu acho? Assim como na metáfora dos extraterrestres do filme do Carpenter Eles vivem, existe uma equipa alienígena, no sentido simbólico, a tomar conta da economia mundial. E, paralelamente, uma equipa alienígena a tomar conta do jogo cultural, e mais concretamente na Arte contemporânea. Também decidem o que se vai fazer, quem vai fazer, e tudo isso tem a ver com o dinheiro e poder. Aquilo que um artista periférico pode fazer ainda se está para ver. MV Faz-se o que se pode, na periferia. OS Sem dúvida que a complexidade da civilização não pode ter contemplações para pueris cavaleiros com elmos da Skip e távolas redondas desenhadas à mão levantada. Pretende-se que um artista penetre nas fibras musculares da sociedade e que ofereça um paraíso passageiro. E caro. A perfeição da construção da verdade eterna do momento em que se está. Um ídolo ao qual se paga para que se possa acreditar. Que todos possamos fazer com que acreditem. A relíquia de um santo pesada em ouro. Que importa a província? Tens que falar na linguagem universal. Ora a verdade universal é a que é mais transmitida e que é mais conhecida. E é a última, é sempre a última. E estão sempre a acontecer coisas novas, há sempre um novo artista, há sempre um novo filão, um novo nicho. Talvez tenhas sorte e um dia se virem para o teu artista saloio. Mas terias que ser um peso pesado das relações públicas e não és. A arte tem que ter títulos em inglês porque o mundo cultural fala inglês. Na Idade Média era o latim. Se queres pensar em arte pensa nas línguas daqueles que detém hoje a hegemonia cultural. MV Não sei se concordo...
OS Claro, tens razão! Isso é completamente saloio. O fugir da periferia através da mimese do centro. Chimpanzés, papagaios. Apetece-me dizer qualquer coisa foleira acerca da Verdade e das nossas raízes e de como só na nossa autenticidade (que é uma palavra de publicidade) podemos desenvolver um trabalho artístico sério. E a verdade, tem razão, é que a nossa base é o nosso país, a nossa língua, seja lá qual for. E o cheiro a cozido aos domingos e a matança do porco que nos fez vomitar e as pernas grossas das varinas nos eléctricos. Os mergulhos no rio no Verão. MV Como o professor Marcelo?...
OS Enfim, a praia, a nossa memória e a de todos os navegadores e santos e padeiras de Aljubarrota, vinte e cincos de abris, todo o nosso típico país à beira mar plantado que é um reservatório insondável de monstruosidades úteis e pulposas. Mas, e pergunta bem, e os valores morais e metafísicos? E a verdade imanente? Porque é que a arte boa não come a arte má? Como no mundo dos peixinhos... O que é que disse? MV Eu não disse nada... O que é que isto tem a ver com peixes? Há peixes na arte? OS Não há peixes na arte. O que há é donos de aquários. Que negoceiam com outros donos de aquários.
MV Mas Jesus expulsou os vendilhões do templo. OS A arte não é um templo. A Arte pode ser um deus e os objectos de arte são como ex-votos. De qualquer maneira a arte não é mais a pintura de igreja maneirista ou barroca. Essas pinturas são, aliás pagãs, na sua multiplicidade de figuras e na sua complexidade. Se queres uma arte onde vejas o absoluto, experimenta um enorme Rothko monocromático, por exemplo. Deus é abstracção.
MV Uma abstracção para pôr em cima do sofá.
OS Um enorme sofá.
MV E uma pequena abstracção.
OS De qualquer maneira o senhor pensa que a sua arte diz qualquer coisa às pessoas comuns, mesmo que essa coisa não seja propriamente o que lhe diz a si. MV Uma senhora que trabalhou lá em casa gostava bastante das minhas pinturas. De uma em especial. Gostava, pronto.
OS Não interessa o que a arte parece dizer seja a quem for, do ponto de vista da ressonância íntima. Pode tilintar ou não tilintar no clítoris da alma, o que interessa é aquilo que se deve dizer que se pensa, aquilo que se deve pensar. Mais ainda, a forma de não dizer aquilo que não se está a pensar.
MV Podia repetir? OS Eu sei o que o Vieira está a pensar. O Vieira está a pensar: eu construo um mundo onde gosto de caminhar. Sou um peregrino que pinta o seu caminho de Santiago. E sou surpreendido por aquilo que deveras pinto. Transforma-se o pintador na coisa pintada. A árvore no centro do mundo, o Lago, as árvores-molduras, as mulheres-castelo, os barcos de garrafas, as ilhas. As tocadoras de cavaquinho sem face, mais árvores de maternos seios, o cavalo-loba com uma marreca que é uma Nossa Senhora, apresentam-se como personagens dentro de paisagens como palcos com o infinito como linha do horizonte. E por que não pianos loucos perseguindo pauliteiros de Miranda sobre um autêntico e gigantesco tapete de sela do general Custer? Por que não enxames de abelhas formando a efígie da mulher do Presidente da República dentro de um sabonete, penetrando nas cavernas horizontais do monte Vesúvio? Por que não um navio-zigurate num mar de abacates assaltado por freiras-pinguim armadas com mocas de Rio Maior magenta? MV Porque não!
OS Exactamente! O Vieira diz: Eu não faço esse tipo de arte! Isso jamais me passaria pela ca-
beça. Não é qualquer coisa que serve. Ainda acredito na alucinação como prelúdio da iluminação e na salvação pela Arte. E no redemoinho encantatório, na esfinge e no êxtase como experiências para-estéticas. Talvez por uma nova Pataestética onde o Arthomem (ver o primeiro episódio) possa afirmar o primado da embriaguez da alma, da intoxicação pela pintura, da vida pela Arte, etc. e antes pelo contrário.
MV A Pataestética? A patetoestética? OS É um pouco o contrário do que preconizam as revistas de saúde. A arte contemporânea só faz verdadeiramente sentido num mundo onde o inconsciente é atirado para debaixo do tapete. Deve haver uma explicação harmoniosa, hipnótica e apreensível de todos os elementos que constituem uma obra de Arte, sem ironias e sem devaneios de LSD, olhos a chorar, sóis verdejantes e corpos humanos em xadrez, ou seja lá o que for de monstruosidades hiperfigurativas e redundantes, porque toda essa panóplia nauseante nunca fez qualquer sentido. É verdade que é demasiado fácil fazer mau surrealismo. Mais difícil é fazer bom surrealismo. Mas isso é aplicável a toda a arte e sobretudo à contemporânea. Quando não distinguimos uma obra de arte da esfregona deixada pela senhora da limpeza, não quer dizer que somos atrasados mentais...
MV Quer dizer que não se devem deixar esfregonas em salas de museu.
OS O que quer dizer é que se o contexto pode produzir uma transformação de leitura num objecto, onde é que poderá começar e acabar o contexto? Não vivemos todos numa instalação? E a que escala? A determinada altura os nossos cansados e treinados nervos poderão contextualizar absolutamente qualquer coisa como obra de arte e quando todos estivermos treinados nesse exercício seremos, na realidade, todos artistas contemporâneos. Tudo é arte, todos somos artistas, logo a arte já não é necessária (nunca foi) nem os artistas. A própria textura da realidade é permeável à arte, como um queijo suíço. As suas pinturas são a instalação de pigmentos, óleos e vernizes sobre uma superfície de tela esticada numa grade de madeira que por sua vez está instalada num espaço que será expositivo, por sua vez, porque a tela está lá. Assim, a tela é que dá o carácter expositivo ao espaço e não é o espaço expositivo que dá o carácter de objecto de arte ao quadro. Ou tanto faz e nada faz. Tudo isto parte da textura da realidade. Que saudades do modernismo, que saudades do neoclássico, do barroco, do renascentista, e que bom é o contemporanismo, o contemporaneonanismo.
MV O Contemporaneonanismo? OS No fundo, dá para tudo. Dá para os Santos e mártires, para os vendilhões, vendedores de banha da cobra, para os defensores do sagrado, para os sofistas, para os matraquilhos gigantes, para o galo de Barcelos, e até para o Orgasmo Carlos. Mudando de assunto, esta exposição mostra desenhos a preto e branco de dimensões generosas. Porquê o preto e branco...
MV Estou a ver que já não há muita coisa a dizer. OS Ficamos por aqui.