13 minute read

Mulheres na história da Capoeira

Mulheres em movimento nas lutas sociais e sindicais

contribuição ao necessário debate sobre mulheres nas lutas sociais

Advertisement

Vamberto Ferreira Miranda Filho Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) E-mail: elgeboh@yahoo.com.br

Jalícia Lima Santos Muricy Licenciada em Educação Física na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) E-mail: jaliciamuricy@outlook.com

Resumo: O presente texto é parte dos resultados do Trabalho de Conclusão de Curso, no formato de monografia, intitulado “PIBID na Capoeira: uma discussão de gênero”, desenvolvido a partir de uma investigação-ação com estudantes do ensino médio, em uma escola pública da cidade de Jacobina-BA, no período de 2014-2015. Destacamos a pesquisa teórica sobre as históricas lutas das mulheres por espaço na Capoeira. Apontamos a necessária articulação dessas lutas com a luta pela superação da sociedade de classes.

Palavras-chave: Mulheres. História. Capoeira.

Introdução

A conquista do espaço da mulher na Capoeira ocorre concomitante à luta das mulheres trabalhadoras na sociedade de classe. A Capoeira, assim como os esportes e as lutas de maneira geral, historicamente esteve associada ao universo masculino. As qualidades físicas não eram os únicos motivos pelos quais se justificavam a ausência das mulheres nas práticas corporais esportivas, mas também os valores culturais impostos pelo Estado Capitalista, socialmente aceitos, referenciados nos aparatos ideológicos e reforçados pelos aparatos repressores.

Nesse sentido, este texto tem por objetivo refletir sobre alguns aspectos do processo histórico de lutas das mulheres por espaço na Capoeira, apontando para a única forma de emancipação concreta das mulheres, a saber: o fim da sociedade de classes, uma vez que é nesse modelo de sociedade que as mulheres trabalhadoras sofrem com os diversos tipos de opressões, vendem sua força de trabalho e não possuem garantias mínimas de sobrevivência, como educação, moradia e saúde.

Mulheres na história da Capoeira

No Brasil, entre os séculos XIX e XX, os esforços por parte de intelectuais da elite eram os de designar os papéis de gênero e adestramento dos corpos masculinos e femininos na divisão do trabalho para o controle social. Isso seria preparar as mulheres para a maternidade e os homens para a vida pública. Essa construção da corporalidade feminina perpassa pelas relações de classe, gênero e raça. O corpo reprodutor, meigo, frágil e delicado se encaixaria apenas para as mulheres da elite, pois as negras escravas, as mulheres trabalhadoras, deveriam aguentar longas jornadas de trabalho e exploração, sob a pena de serem torturadas e/ou terem seus corpos violentados pela repressão. Porém, apesar dessa contradição, o modelo de corpo e sexualidade feminina seguia a ideologia da família burguesa (ADELMAN, 2003).

Desse modo, não era permitida a prática feminina em determinados exercícios físicos e em modalidades esportivas e de lutas, alegando incapacidade biológica e a importante função reprodutiva. O fato é que as mulheres da elite tinham acesso à educação, recebiam orientações de comportamento moral e sexual normatizadas, reproduzindo os valores da família, da escola, da igreja e das demais intuições ideológicas de hegemonia burguesa, enquanto as mulheres trabalhadoras, que ganhavam a vida nas ruas, trabalhando para garantir o sustento da família, tendo seus comportamentos ditados pela necessidade de sobrevivência, eram criticadas e perseguidas pela sociedade (Oliveira; Leal, 2009). A partir do século XX, passaram a considerar que algumas formas de atividade esportiva e exercício físico leves pudessem ser benéficas “para a saúde das ‘futuras mães e esposas’. Mas, mesmo havendo uma clara prescrição sobre

Mulheres em movimento nas lutas sociais e sindicais

quais os esportes que se consideravam adequados às mulheres, estes deviam ser praticados só por mulheres jovens e solteiras”. Entretanto, ainda que se tenha avançado, mesmo que de maneira tímida, no campo dos esportes, esse acesso se restringia às mulheres de classe dominante (ADELMAN, 2003, p. 446). Essa divisão social de classes nos permite identificar que os tipos de opressões sofridas pelas mulheres correspondem à classe as quais pertencem. Segundo Andrea D’Atri (2008, p. 20), “nós mulheres integramos diferentes classes sociais em luta, por isso, não constituímos uma classe diferente, mas sim um grupo policlassista”; padecemos de diferentes formas subjetivas de opressão, apesar de sermos genericamente mulheres. Ou seja, no sistema capitalista, com a exploração de uma maioria de pessoas que são condenadas a vender sua força de trabalho para garantir a sobrevivência, enquanto a minoria se beneficia de lucros cada vez maiores, a luta das mulheres também se distribui como a luta das mulheres burguesas, as que exploram e são exploradas e oprimidas, e a luta das mulheres trabalhadoras, as que são exploradas e oprimidas, pelo machismo e patriarcado histórico. As mulheres operárias, camponesas, assalariadas,

Essa divisão social de classes nos permite identificar que os tipos de opressões sofridas pelas mulheres correspondem à classe as quais pertencem. Segundo Andrea D’Atri (2008, p. 20), “nós mulheres integramos diferentes classes sociais em luta, por isso, não constituímos uma classe diferente, mas sim um grupo policlassista”, padecemos de diferentes formas subjetivas de opressão, apesar de sermos genericamente mulheres.

são as mais oprimidas, pois, além de sofrerem com o patriarcado machista, não possuem garantias mínimas de existência, como saúde, moradia e educação. Contudo, todas as formas de opressão servem aos interesses de dominação da burguesia em promover a supremacia masculina.

As formas de opressão e de subjugação da mulher na sociedade vêm sendo explicadas pelo determinismo biológico, de ordem natural, em que a mulher é de natureza frágil, emotiva, preparada para a maternidade, desprovida de racionalidade, sendo incapazes de realizar determinadas tarefas e tomar decisões sem a orientação masculina, de modo que são encarceradas na esfera doméstica e excluídas como inúteis das categorias e cargos que compõem a esfera pública. Entretanto, podemos provar por meio do materialismo histórico que a hierarquia de gênero, a divisão sexual do trabalho (exploração), o patriarcado, o machismo, não se sustentam como natural, e sim como histórico e social, servindo aos interesses econômicos de produção e reprodução, em diferentes modelos de sociedade (TOLEDO, 2008; D’ATRI, 2008; CISNE, 2012; GOLDMAN, 2014).

Engels (2009), em seu livro “a origem da família, da propriedade privada e do Estado” – escrito no século XIX, destrinchando os estudos antropológicos sobre as famílias primordiais, a organização dos diferentes modos de produção e divisão de trabalho na família –, apontou as características estruturais das sociedades primitivas. Os papéis desempenhados por homens e mulheres em diferentes contextos estão ligados à criação dos meios de produção e reprodução para manutenção das propriedades privadas e dos mecanismos de controle social desenvolvidos pelo Estado para garantir seus objetivos mercantilistas. Engels, em 1884, provou que a opressão das mulheres se materializa nos fundamentos da história e não da biologia, sendo esta a base das construções culturais e sociais que sustentam a sociedade burguesa.

Com esses elementos, não nos causa estranheza quando nos deparamos com registros e ocorrências históricas na capital baiana em que as mulheres trabalhadoras reivindicavam seus direitos, muito menos quando enquadradas por delitos, crimes, e por estarem adotando comportamentos “inadequados” e/ ou incomodando a (des)ordem pública. Essas eram mulheres das camadas sociais populares, que eram oprimidas não apenas pelos homens, mas também pelas próprias mulheres; mulheres brancas da elite dominante, que cumpriam as demandas do Estado burguês e não se associavam com as mulheres do povo e nem assumiam as suas reivindicações. Este contingente de mulheres vivia no cenário urbano, assumia não apenas a vida doméstica, mas também as ruas da cidade e disputava esses espaços sociais com os homens. A rua era considerada um espaço perigoso, lugar de crime e violência, por isso, um am-

biente eminentemente masculino, mas as mulheres que dependiam da circulação nas ruas para vender seus produtos e mercadorias, dentre outros afazeres e prestações de serviços, como os das prostitutas, faziam uso do espaço público tanto quanto os homens (OLIVEIRA; LEAL, 2009).

Assim como as mulheres trabalhadoras, a Capoeira era estigmatizada. Porém, a Capoeira era “diretamente associada ao homem por comportar elementos constitutivos de masculinidade, a exemplo do biótipo e das ações de violência física” (OLIVEIRA; LEAL, 2009, p. 117). Apesar de serem poucos, no final do século XIX e ainda nas primeiras décadas do século XX, encontramos registros da presença das mulheres na capoeiragem, em que participavam de disputas corporais com homens. Maria 12 Homens, Calça Rala, Satanás, Nega Didi, Maria Pára o Bonde, Júlia Fogareira, Maria Homem, Maria Pé no Mato, dentre outras mulheres “desordeiras”, “valentonas” que tinham “a pá virada”, aparecem na história convivendo no meio da malandragem das rodas da Capoeira, nas brigas de ruas com golpes de navalhas, facas e cacetes, sofriam repressão policial e viravam notícias de jornais locais. A imprensa, por sua vez, denunciava o comportamento moral dessas mulheres, com o intuito de repreendê-las a não provocar esses comportamentos nas mulheres da alta sociedade (BARBOSA, 2005; OLIVEIRA; LEAL, 2009; SOUZA, 2010; MENEZES, 2008).

Essas mulheres estão presentes no imaginário popular brasileiro, suas façanhas aparecem nas cantigas de Capoeira e em demais manifestações populares: “Dona Maria do Camboatá, ela chega na venda, ela manda botar, Dona Maria do Camboatá, ela chega na venda e dá salto mortá, Dona Maria do Camboatá, ela chega na venda e começa a gingar”, “Salomé, Salomé, Capoeira é pra homem, menino e mulher”; “Ai, ai, Aidê, joga bonito que eu quero aprender” 1 .

Elas participavam ativamente da vida urbana em cidades como Salvador, Rio de Janeiro e Belém do Pará, sendo consideradas pela sociedade burguesa como “vagabundas”; foram mulheres pobres, despossuídas, que em sua vida privada eram mães, esposas, donas de casa, trabalhadoras e tiveram um papel fundamental na conquista do espaço público. São mulheres negras libertas, fortes, corajosas, que travaram a luta nas ruas, incomodando a (des)ordem pública, no enfrentamento político pela garantia de viver e desfrutar socialmente do labor do seu suor, à custa da repressão policial; vítimas da segregação social, opressão e machismo, faziam o uso de seus corpos para reivindicar e legitimar seu espaço social (BARBOSA, 2005; OLIVEIRA; LEAL, 2009).

As mulheres acompanharam os rumos dados à Capoeira. Se nas ruas elas arrebentavam nas rodas (como “intrusas”), com a passagem da Capoeira para as academias, na década de 1930, passam a prestar serviços administrativos, cuidando da organização dos grupos; mas, com esses cargos, não acrescentaram contribuições para os elementos do jogo de Capoeira. Com raras exceções, a mulher “era vista quase exclusivamente como uma peça de apoio na estrutura social do jogo/luta/dança/ritual” (BARBOSA, 2005, p. 11). Mulheres na história da Capoeira

Assim como as mulheres trabalhadoras, a Capoeira era estigmatizada. Porém, a Capoeira era “diretamente associada ao homem por comportar elementos constitutivos de masculinidade, a exemplo do biótipo e das ações de violência física” (OLIVEIRA; LEAL, 2009, p. 117). Apesar de serem poucos, no final do século XIX e ainda nas primeiras décadas do século XX, encontramos registros da presença das mulheres na capoeiragem, em que participavam de disputas corporais com homens.

No entanto, a partir das décadas de 70 e 80, as mulheres passam a atuar de forma mais ativa no jogo de Capoeira, marcando presença e se destacando nas rodas, nas academias e grupos, em números cada vez maiores. Rosângela Costa Araújo, a contramestra Janja, afirma que a mulher deixou de ser novidade na Capoeira e passou a representar quase a metade do número dos/as praticantes de Capoeira, de modo que não podem mais ser ignoradas e nem reduzir sua participação na prática e nem na organização dos grupos e academias, podendo ocupar cargos de dirigentes, com graduações de professoras, contramestras e mestras de Capoeira (BARBOSA, 2005).

Barbosa (2005) critica as influências econômicas e sociais que a Capoeira sofreu e a dialética que envolve a Capoeira Regional. Se, por um lado, a Capo-

Mulheres em movimento nas lutas sociais e sindicais

eira Regional foi se legitimando como “esporte brasileiro”, ganhando espaço na sociedade civil – isso porque a classe média passou a frequentar as academias na década de 70, de certo modo valorizando a arte-luta –, por outro lado, com essas características, passa a perder suas raízes, sua ancestralidade. Nesse sentido, a Capoeira Angola se encarregou de reforçar e reafricanizar a Capoeira, na tentativa de valorizá-la, uma vez que a Capoeira tratada como esporte correria (e corre) o risco de perder sua herança negra. Na década de 80 e 90, a Capoeira Angola ganha mais força e é também nesse período que as mulheres passam a estudar a Capoeira Angola por sentirem-se atraídas pelo estilo de jogo.

Apesar das contradições históricas e dos desafios enfrentados pelas mulheres negras, trabalhadoras e pela Capoeira, podemos considerar que, com muita luta e resistência, avançamos no campo social, político e cultural. Desde as últimas décadas do século XX, podemos encontrar relatos de mulheres que se tornaram professoras, contramestras e mestras de Capoeira, seja ela Angola ou Regional, a exemplo de Rosângela Costa Araújo (Mestra Janja), que graduou-se em Educação Física e em História, é baiana e treina Capoeira desde 1981. Ela começou Capoeira Angola no Pelourinho/GCAP, na Bahia, inicialmente com os mestres Moraes e Cobra Mansa e, em seguida, também com o mestre João Grande. Fátima Colombiana (mestra Cigana), primeira mulher a tornar-se mestra de Capoeira no Brasil, é formada em Educação Física, Filosofia e Pedagogia, nasceu no Rio de Janeiro, mas

Apesar das contradições históricas e dos desafios enfrentados pelas mulheres negras, trabalhadoras e pela Capoeira, podemos considerar que com muita luta e resistência, avançamos no campo social, político e cultural.

começou a praticar a Capoeira em Belém do Pará, em 1970, com o mestre Bezerra; em 1975, conheceu em São Paulo o mestre Canjiquinha e, com ele, seguiu para Salvador. Edna Lima é uma reconhecida professora e performer de Capoeira, é graduada em Educação Física, pós-graduada em Ciência Desportiva e desenvolveu um programa nacional de ensino de Capoeira para escolas superiores no Brasil. Mestra Cristina (Rio de Janeiro), mestra Elma (Florianópolis) e mestra Brisa (Salvador), entre outras professoras e contramestras, têm desenvolvido significativos trabalhos no Brasil e no Exterior (SANTOS, 2011).

Considerações finais

Essas mulheres têm estudado a Capoeira e se dedicado à sua prática, contribuindo diretamente com seu ensino-aprendizagem, legitimando o espaço feminino na Capoeira e suas manifestações. Porém, apesar dos avanços e reformas políticas nos mais diversos aspectos da vida da mulher, em especial da mulher trabalhadora, a única forma de emancipação concreta das mulheres em sociedade é através da superação do capitalismo e do fim da sociedade de classes.

Apesar da opressão sofrida pelas mulheres não ter surgido com o capitalismo, esse modelo de sociedade possui traços particulares, convertendo o patriarcado como “um aliado indispensável para a exploração e a manutenção do status quo”, introduzindo as mulheres e as crianças em sua maquinaria de exploração para ampliação de seus mercados (D’Atri, 2008, p. 25).

Os papéis de gênero no capitalismo correspondem às necessidades de crescimento econômico e concentração de renda nas mãos da burguesia, que se constitui como minoria hegemônica. Nesse sentido, o que deve unir as mulheres é a contradição de classe, pois é daí que surgem as desigualdades, as opressões e explorações que vivem as mulheres trabalhadoras. Portanto, defendemos que a única maneira de emancipar as mulheres seja a ruptura com o modo de produção capitalista.

nota

1. Essas canções são popularmente cantadas nas rodas de Capoeira.

Mulheres na história da Capoeira

ADELMAN, Miriam. Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 11(2): 445-465, julho-dezembro/2003. Disponível em: <http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2003000200006>. Acesso em: 18 set. 2015. BARBOSA, Maria José Somarlete. A Mulher na Capoeira. Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies, Volume 9, 2005, p. 9-28. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2575271. pdf>. Acesso em: 10 jun. 2014. CISNE, Mirla. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. São Paulo: Outras Expressões, 2012. D’ATRI, Andrea. Pão e rosas: identidade de gênero e antagonismos de classe no capitalismo. São Paulo: Edições Iskra, 2008. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala Educacional, 2009. GOLDMAN, Wendy. Mulher, estado e revolução. 1. ed. – São Paulo: Boitempo: Iskra Edições, 2014. MENEZES, Lilia Benvenuti de. A mulher na capoeira. Revista textos do Brasil. Ministério das Relações Exteriores 2008. p. 86-89. OLIVEIRA, Josivaldo Pires; LEAL, Augusto Pinheiro. Capoeira identidade e gênero: ensaios sobre a história social da capoeira no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2009. SANTOS, Silvia Macêdo dos Anjos. Mulher e Capoeira: reflexões da convivência, lugar social e participação na diversidade.In: Grupo Conviver (org.). Diversidade e convivência: construindo saberes. Salvador: EDUFBA, 2011. SOUZA, Eliane Glória Reis da Silva. Capoeira: sua história e as relações de gênero. Rio de Janeiro, associação nacional de história: 2010. Disponível em: <http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/ resources/anais/8/1273245402_ARQUIVO_SimposioDoc.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2014. TOLEDO, Cecília. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. 2. ed. São Paulo: Sundermann, 2008.

referências