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O jogo do streaming: quem está ganhando?

O JOGO DO STREAMING: QUEM ESTÁ GANHANDO?

Por Monyca Motta

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A indústria musical está em constante transformação, embalada pelo surgimento e declínio dos formatos em que a música é distribuída e consumida. Da transmissão oral ao surgimento das partituras escritas à mão e depois impressas, passando pela invenção do fonógrafo e seus cilindros giratórios até chegar ao formato digital (em um caminho que contornou ainda os LPs, fitas cassete e CDs), a música sempre desbravou mundos. Hoje estamos vendo uma paisagem dominada pelas plataformas de streaming.

Como ficam os compositores e os músicos diante de tanta mudança? Como equilibrar a arte com o jogo dos negócios, especialmente no mercado independente? Não se iluda: esta é uma disputa acirrada; ganha quem adquire uma ferramenta vital: conhecimento.

O artista precisa antes de tudo entender que com sua música nasce também o seu direito, que deve ser protegido e reivindicado a cada uso, e entender como atuam os diversos players do mercado torna esse percurso mais fácil.

São “obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”, diz o artigo 7º da Lei 9.610/98 ou Lei de Direitos Autorais (LDA). O direito autoral nasce com a criação em si, e não com seu registro ou fixação. Porém, para que esse direito gere resultados, não basta existir, é preciso torná-lo protegido e conhecido.

No caso da música, esta nasce com a composição, que pode ser a junção de melodia e letra ou somente melodia, e se multiplica com as gravações; nasceu, é preciso comunicar ao mundo este nascimento.

Esse direito primordial sobre a criação pertence ao autor. É um direito fundamental, constitucional e superior a qualquer outro dele derivado. Somente o autor pode determinar se e como a sua obra será utilizada, e somente ele decide se vai se associar aos outros players do mercado ou não. Dentre estes, estão em primeiro lugar as editoras musicais e as sociedades de autores, que desempenham papéis bem diferentes, mas às vezes complementares.

As editoras musicais representam compositores e negociam suas criações com as gravadoras. Recebem os chamados direitos fonomecânicos e, ainda, atuam para garantir os direitos de sincronização (aqueles pagos pela inclusão das composições musicais em vídeos, filmes, novelas e outros).

Já as sociedades de autores, no caso brasileiras, são associações privadas com o objetivo de defender seus filiados e garantir que estes recebam pela execução pública de suas composições musicais e também de suas gravações. Essas sociedades se reuniram e criaram um Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD).

Cabe ao autor a opção de contratar uma editora para agenciar suas composições. Tem também a opção de se filiar a uma das várias sociedades de autores e nela cadastrar suas obras, nomeando estas como suas mandatárias para a cobrança pela utilização e execução pública dessas composições.

A gravação da obra pode ser feita pelo próprio compositor ou por outros artistas. Daí surgem novos direitos, chamados direitos conexos aos de autor: produtor fonográfico, intérprete, músicos executantes. São todos protegidos da mesma forma que os direitos de autor, nos termos do artigo 89º da LDA.

Com o formato digital e as novas formas de distribuição, o jogo mudou. Empresas “forasteiras” do mercado musical, como a Apple (com iPods e iTunes), passaram a ser protagonistas. Há poucos anos, vieram as plataformas de streaming.

Nesse novo mundo, as gravadoras grandes colocam seus catálogos diretamente nas plataformas. Já para auxiliar os independentes surgiram as agregadoras ou distribuidoras digitais, que fornecem a estrutura necessária para receber e distribuir este conteúdo digital.

Com o streaming, nada é vendido diretamente: o cliente tem acesso a um extenso catálogo de músicas, e o artista, a editora e/ou a gravadora sabem (ou podem saber, já que a transparência dessas informações é muito discutida) quantas vezes determinada canção foi ouvida.

Mas, nesse modelo, onde está o dinheiro? Quem paga? Quem cobra? Quem está ganhando?

QUEM É QUEM

Veja quem são os principais protagonistas em relação aos direitos autorais na indústria da música:

Intérprete Artista que faz a gravação da obra. É o beneficiário dos direitos conexos aos de autor, assim como o produtor fonográfico (gravadora/selo) e os músicos que participam das gravações

Editora musical Registra composições e representa compositores. Recebe direitos fonomecânicos ou de reprodução e garante os direitos de sincronização (vídeos, filmes, novelas,etc.)

Agregadoras ou distribuidoras Empresas que fornecem a estrutura necessária para receber e distribuir o conteúdo digital dos artistas independentes nas plataformas

Sociedades de autores Garantem que os filiados recebam pela execução pública de composições e gravações

Compositor É o autor da letra e/ou da melodia

Gravadoras Fabrica, distribui e promove as gravações feitas pelos artistas/intérpretes. Dividem-se entre majors e independentes. Recebem direitos fonomecânicos e de sincronização (em relação aos fonogramas)

Plataformas de streaming Oferecem catálogo com milhões de gravações. Remuneram as gravadoras/distribuidoras/editoras de acordo com a quantidade de audições. No Brasil também pagam o ECAD pela execução pública

PARA ONDE VAI O DINHEIRO

Entenda como é dividida a arrecadação dos direitos em relação à execução de músicas

41,7% - Intérprete/Artista principal 41,7% - Produtor Fonográfico 16,6% - Músicos acompanhantes

Info: abramus.org.br

Esta é a bola da vez. Apesar de a legislação autoral ter previsto a proteção dos direitos de autor sobre as “criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”, a realidade é que, a princípio, nem a lei nem o mercado estavam preparados para lidar com essa nova forma de negócio.

Como muito bem definido pela cantora e compositora Marisa Monte em entrevista à Folha de S.Paulo em agosto de 2019, em primeiro lugar o acesso proporcionado pela internet causou um deslumbramento generalizado, somente depois procurou-se entender como ficavam os direitos autorais sobre o que era ali disponibilizado, e muitos dos gigantes da tecnologia cresceram nesse vácuo.

Na mesma entrevista, Marisa Monte também reconhece que apesar de a tecnologia ser nova, o problema é antigo: também na época dos suportes físicos não era possível ter certeza de que os números fornecidos pelas editoras e gravadoras refletiam a realidade.

As plataformas digitais obtêm suas receitas por meio de assinaturas e publicidade. Elas criaram fórmulas para identificar e remunerar o conteúdo musical baseadas em número de assinantes, número de plays de cada música em comparação umas com as outras, além de outras variáveis. Mas faltava definir a quem pagar.

Nesse momento, houve conflito, pois inicialmente se entendia que bastava obter as autorizações e efetuar os pagamentos às gravadoras e editoras para distribuir esse conteúdo. Para os independentes, parte desse caminho é trilhado através das agregadoras, a quem delegam a tarefa de receber pelos fonogramas que “sobem” nessas distribuidoras digitais, e lhes repassar.

Mas, no Brasil, o ECAD buscou judicialmente o reconhecimento de que neste mercado havia também o direito de execução pública, entendido aqui como disponibilização ao público desse repertório no ambiente digital. Portanto, passou a arrecadar esses valores, que as sociedades hoje distribuem aos seus associados.

Então, por que ainda é difícil para os artistas independentes entender e receber pelo uso das suas obras e fonogramas no digital? Porque para quem não está vinculado a uma gravadora ou a uma grande editora (ou a algumas entidades que vêm surgindo para atingir esse nicho) existem ainda muitas dificuldades na identificação e na cobrança de seu conteúdo, em especial quando se fala do direito de autor.

Quando as plataformas digitais iniciaram as operações, por haver um vácuo no mercado, muitas delas começaram a funcionar baseadas em grandes acordos com aqueles players que detêm grande parte dos catálogos musicais – por meio de pré-licenças e adiantamentos vultosos, as grandes editoras e gravadoras deram essa segurança jurídica para que estas funcionassem em cada país, recebendo primeiro em troca de identificar e licenciar o conteúdo que representam. E os independentes só tiveram vez quando surgiram as agregadoras e, assim, passaram a receber pelos seus fonogramas e, em seguida, pelas composições musicais.

Em 2016, quando foi feita a primeira distribuição de direitos de execução pública de serviços digitais pelo ECAD e sociedades de autores, a UBC noticiou que seria pago um total de R$ 2,38 milhões a 116 mil titulares de direito autoral. Em 2017, o ECAD assinou um acordo com o YouTube; em 2018, o Copyrights Board norte-americano determinou que fosse aumentado em mais de 40% o valor a ser pago pelos direitos de autor nas plataformas de streaming. Neste 2019, Facebook e Instagram passaram a remunerar artistas pelas músicas utilizadas nas suas plataformas – como sempre, tudo começa pelas grandes gravadoras/editoras e só depois chega ao mercado independente.

Segundo o relatório anual da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), em 2018 o mercado global de música cresceu 9,7% – o streaming cresceu 34% e foi responsável por 47% do total dessas receitas da música. No Brasil, o mercado do streaming cresceu 15%.

Ainda falta muito para que no mercado da música digital haja transparência e, principalmente, igualdade de condições entre os grandes players e o mercado independente. A lição que fica é: o jogo muda, as regras mudam, alguns jogadores caem pelo caminho e outros se levantam, mas neste mercado é preciso ter conhecimento, estratégia e manter o olho na bola. Sempre.