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por Alexandre Saes e Beatriz Saes
Diretrizes Gerais da Conferência de Teresópolis Carta de Teresópolis – Desenvolvimento Econômico e Justiça Social
por Alexandre Saes e Beatriz Saes
Diretrizes Gerais da Conferência de Teresópolis por Alexandre Saes e Beatriz Saes
O ano de 1945 foi decisivo para os destinos da política e da economia no Brasil. Um ano de importantes acontecimentos para os rumos nacionais. No âmbito interno, vislumbrava-se o fim de uma era: após 15 anos à frente do Estado brasileiro – tendo passado pelo Governo Provisório, de 1930 a 1934, pelo Governo Constitucional, de 1934 a 1937, até o Estado Novo, iniciado em 1937 –, Getúlio Vargas não mais ocuparia o cargo de dirigente da nação. O período autoritário conhecido como Estado Novo, marcado tanto pelo cerceamento de liberdades individuais e políticas, como por um forte centralismo em termos de política econômica, chegaria ao fim em poucos meses. No plano internacional, a Segunda Guerra Mundial finalmente se encerrava. A vitória dos Aliados significava o fim da ameaça nazifascista e punha em evidência as duas grandes potências que passariam a ditar os rumos das relações globais: os Estados Unidos e a União Soviética. O momento, portanto, era de grandes transformações. E foi justamente para responder a tal conjuntura, elaborando diretrizes econômicas que pudessem nortear o desenvolvimento brasileiro, que centenas de representantes dos setores da indústria, do comércio e da agricultura realizaram a 1ª Conferência Nacional das Classes Produtoras (Conclap) – também conhecida como Conferência de Teresópolis, realizada no início do mês de maio daquele ano e que reuniu delegados de 680 entidades representativas dos setores produtivos, abarcando “a totalidade das forças econômicas nacionais”.1 Era o momento de ouvir “todas as vozes, quer representantes de classe, quer independentes, destinadas a interpretar e esclarecer as questões nacionais ligadas intimamente à evolução do país”,2 como indicava a Revista do Comércio em sua primeira edição – em entrevista com João Daudt d’Oliveira, então presidente da Confederação Nacional do Comércio, um dos organizadores da Conferência. Se as realizações do I Congresso de Economia, bem como, do Congresso Brasileiro da Indústria foram bastante saudadas pelas classes produtoras, a Conferência de Teresópolis logrou extraordinário êxito. O teor das reuniões era de maior abrangência do que aquelas dos congressos de economistas e industriais, tendo como foco o debate dos “princípios da política econômica que correspondam aos anseios das classes produtoras e do povo brasileiro”.3 Ponto-chave da Conferência foi certa distância em relação a pautas
1 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945, p. 1 2 “João Daudt d’Oliveira fala sobre o Brasil”, Revista do Comércio, Rio de Janeiro, ACRJ, Ano 1, nº1, dezembro de 1945, p. 39. 3 “A conferência das classes produtoras”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 28 de abril, 1945, p. 4.
mais explicitamente político-partidárias. Tanto a imprensa quanto participantesda Conferência reiteravam uma vocação suprapartidária, neutra e plural, uma reunião de “homens de todas as correntes políticas” movidos “pelo mesmo objetivo de são patriotismo”.4Afinal o encontro seria “de Natureza puramente econômica” e indicaria “os anseios das classes produtoras na sua preocupação constante de trabalho pela grandeza do Brasil”;5 as pautas, então, centradas somente em “assuntos sociais e econômicos”.6 A definição de novos rumos, uma certa atmosfera de transformação e um caráter prospectivo marcaram os debates entre as delegações dos setores produtivos. Tanto foi assim que as entidades participantes estabeleceram a instalação de uma “Comissão Permanente das classes produtoras” (localizada no Rio de Janeiro) como forma de manter uma colaboração contínua com as autoridades capaz de auxiliar na tarefa de “reerguimento econômico” do país.7 Isso tudo também pode ser conferido na própria declaração originada após a Conferência – que foi então amplamente divulgada, reproduzida (em seus itens principais: “Objetivos Básicos” e “Declaração de Princípios”) em vários veículos da imprensa nacional.
(…) sem outras preocupações que não as do bem geral e colocados acima das competições de partidos, grupos ou pessoas, os agricultores, industriais e comerciantes dedicaram-se em conjunto ao exame minucioso de todos os problemas da economia brasileira, quer em seus aspectos internos, quer em suas relações internacionais. Na consideração desses problemas, destacaram-se desde logo objetivos básicos ou aspirações fundamentais, constitutivos de uma consciência coletiva predominante na orientação de todas as atividades da Conferência, e, em complemento a esses objetivos básicos, os princípios de política econômica que formam com eles um corpo de declarações, capaz de constituir, neste momento histórico, uma Carta Econômica para o Brasil.8
A referida “Carta Econômica” – que ficou conhecida como “Carta de Teresópolis” – trazia a público um diagnóstico dos problemas econômicos a serem enfrentados pelo país, bem como, objetivos e metas (gerais e específicos) a serem adotados pelo governo e pela iniciativa privada. Se se tratava de um “momento histórico” oportuno a uma tal intervenção das classes produtoras – visando a identificação
4 “Caminho para a libertação do Brasil”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 8 de maio, 1945, p. 11. 5 “A conferência das classes produtoras”, Diário Carioca, Rio de Janeiro, 29 de abril, 1945, p. 5. 6 “A conferência de Teresópolis”, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 4 de maio, 1945, p. 2. 7 “O planejamento da economia brasileira”, Diário Carioca, Rio de Janeiro, 2 de setembro, 1945, p. 3. 8 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945, p. 1.
e a proposição de soluções aos problemas econômicos mais amplos –, não deixa de se fazer notar uma “consciência coletiva” quase predominante nas discussões propostas. Essa preocupação com o coletivo, com o “bem geral”, esse ideal de um progresso inclusivo, de um desenvolvimento econômico aliado à “justiça social” ocuparam lugar privilegiado nas aspirações e diretrizes definidas pelos participantes da Conferência. Em suma, tratava-se mesmo de uma aspiração por um “desenvolvimento geral do país”.9 As diretrizes principais ou “objetivos básicos” listados no documento de Teresópolis consistiam no seguinte: (1) combate ao pauperismo, (2) aumento da renda nacional, (3) desenvolvimento das forças econômicas, (4) democracia econômica e (5) justiça social.10 Às diretrizes econômicas, então, eram articuladas metas de cunho social. O combate ao pauperismo deveria passar incontornavelmente pelo amplo desenvolvimento dos setores produtivos. Além disso, com a proximidade do fim do Estado Novo, certa atmosfera de expectativa democrática pairava sobre amplos setores da sociedade. A Carta de Teresópolis, a um só tempo, exaltava a “vocação” democrática “dos brasileiros” e dava ênfase àquilo que deveria ser entendido como “uma verdadeira democracia econômica”,11 isto é, a possibilidade de desenvolvimento pleno dos setores produtivos em todas as suas atividades e na totalidade das regiões do país. Desenvolvimento este que deveria contar com todo o amparo legal, institucional e administrativo – bem como, com relações de cooperação com corporações e governo dos Estados Unidos. Afinal, parecia prudente escolher um dos lados, entre os vitoriosos da Guerra, para se alinhar política e economicamente. A defesa do capitalismo e da liberdade econômica, de um lado, e as possíveis virtudes do socialismo soviético, de outro lado. Diante de tal conjuntura (que está na base do período que seria conhecido como Guerra Fria) – que ainda contava, internamente, com o poder de mobilização dos movimentos sociais, sindicatos e partidos mais à esquerda – os setores produtivos deram a devida importância às questões sociais em suas formulações programáticas. Em resumo, as resoluções advindas da grande conferência das classes produtoras aliavam preceitos ligados à primazia da iniciativa privada (ideias a respeito da liberdade ou da “democracia” econômica e comercial), a determinadas políticas de estado favoráveis ao desenvolvimento e a questões prementes em termos de responsabilidade e de justiça social.
9 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945, p. 2. 10 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945, p. 2-3. 11 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945, p. 2.
Carta de Teresópolis – Desenvolvimento Econômico e Justiça Social por Alexandre Saes e Beatriz Saes
No primeiro número da Revista do Comércio – que, terminada a Segunda Guerra, era então relançada, em dezembro de 1945 –, em suas páginas iniciais, o editorial inaugural dava o tom dos debates entre as classes produtoras travados naquele período. “As classes produtoras e o momento nacional”, esse o título da coluna de abertura, que fazia um balanço do momento presente tendo como foco as discussões e resoluções resultantes da Conferência das Classes Produtoras. As palavras do editorial estavam sintonizadas aos princípios e valores afirmados na Carta de Teresópolis. Saudando o renascimento da liberdade de expressão e de imprensa no país – ocorrido entre o final de fevereiro e início de março do mesmo ano – o periódico dava destaque ao período de transição vivido pelo país, enaltecendo aí o papel das classes produtoras: a “missão orgânica” destas. A Conferência de Teresópolis havia sido um marco para os rumos econômicos do país na medida em que convocou a totalidade das classes produtoras reforçando seu papel de liderança e “definindo os deveres superiores de que são responsáveis para com a nação”. Responsabilidades que seriam ainda maiores em um contexto de cerceamento político, como ocorrido durante o Estado Novo: uma vez “suspensas as atividades do Parlamento e dos partidos”, caberia, então, “à indústria, ao comércio e à agricultura o estudo e o debate dos problemas fundamentais da vida brasileira”.1 Repercutindo trechos da referida Carta e episódios marcantes da Conferência, a Revista dava ênfase ao compromisso público e à vocação coletiva, “de união”, como características próprias às classes produtoras naquele período. Em resumo, os setores produtivos como ocupantes de uma posição fundamental “na vida nacional, como centro de equilíbrio entre as forças econômicas, sociais e políticas”.2 Se as páginas iniciais do periódico apresentavam um editorial contundente, em suas páginas finais, outra publicação de enorme relevo. Nada menos que a Carta das Nações Unidas, assinada em junho daquele ano – quando a Guerra vivia seus capítulos derradeiros –, que estabelecia as bases de uma cooperação entre nações de amplo espectro. A “paz universal”, o desenvolvimento de “relações amistosas entre nações” (fundamentados no “princípio de igualdade de direitos e autodeterminação dos povos”), a defesa e o estímulo aos “direitos humanos” e às “liberdades fundamentais para todos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”, bem como, o estabelecimento de “uma cooperação internacional para resolver os
1 “As classes produtoras e o momento nacional”, Revista do Comércio, Rio de Janeiro, ACRJ, Ano 1, nº1, p. 9. 2 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945, p. 18.
problemas de caráter econômico, social, cultural ou humanitário” – seriam esses os “propósitos e princípios” da então fundada Organização das Nações Unidas (ONU), tanto para “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra” quanto para “promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla”.3 Numa ponta, o editorial em defesa do papel das classes produtoras; noutra ponta, a carta das Nações Unidas. Entre ambas, todo um conteúdo voltado a temas econômicos – a exemplo da entrevista com o então presidente da Confederação Nacional do Comércio e um dos membros mais atuantes da Conferência de Teresópolis, João Daudt de Oliveira, bem como, de um longo artigo a respeito da história das relações econômicas entre Brasil e Estados Unidos. Ou seja, o próprio conteúdo da Revista do Comércio funciona como um parâmetro relevante para se pensar as questões em jogo no período. Desse modo, aquilo que era chamado de “problemas fundamentais da vida brasileira”, os desafios sociais e entraves econômicos diagnosticados no momento, apontavam a necessidade de dois “remédios”: desenvolvimento econômico e justiça social. Embora pareça razoavelmente difícil apontar um profundo consenso entre todos os representantes do setor produtivo signatários da Carta de Teresópolis – “pelo contrário”, havendo entre eles “divergências quanto a uns tantos pontos essenciais”, como apontava outra revista do setor4 –, esse diagnóstico amplo e as devidas soluções mais gerais, bem como alguns outros pontos fundamentais definidos na Carta, consistiram em preceitos que correspondiam a anseios de boa parte do setor. A iniciativa privada assumia um papel central nas diretrizes estabelecidas na Carta. O setor produtivo, pois, como o principal norteador do país no rumo do desenvolvimento. Assim, uma defesa contundente do primado da iniciativa privada. Do mesmo modo, seria o Estado o responsável por complementar as ações desta, nas áreas em que os empreendimentos ficassem aquém do necessário – seja por insuficiência de poder ou capacidade, seja por se mostrarem não convenientes ao setor privado – para o desenvolvimento econômico e social.5 A “liberdade” ou “democracia” econômica – em contraposição à prevalência de organismos autárquicos de controle da produção e de circulação – deveria nortear o novo ordenamento econômico, impulsionando o mercado interno e a industrialização do país – industrialização então vista como solução para os objetivos de desenvolvimento e de modernização. Resumidamente, tratava-se de uma defesa das classes produtoras como aquelas capazes de conduzir tais processos de desen-
3 “Carta das Nações Unidas”, Revista do Comércio, Rio de Janeiro, ACRJ, Ano 1, nº 1, dezembro de 1945 p. 109. 4 “Estatuto econômico para o Brasil”, Digesto Econômico, ACSP; FCESP, Ano 2, nº 5, abril de 1945. Veja também nosso texto “Os Congressos Brasileiros de Economia e da Indústria (1943-1944)”, no seguinte endereço: […...]. 5 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945.
volvimento; ao Estado caberia dar as condições e complementar as ações privadas – seguindo mesmo as orientações e diretrizes definidas pelos produtores. Ambos, então, coordenadamente, poderiam promover as novas etapas de nosso desenvolvimento e sanar os problemas de então: inflação (“monetária e de crédito”), “improvisações” em setores estratégicos, desequilíbrio na distribuição de matérias-primas (falta de controle em relação à exportação de gêneros de primeira necessidade), atraso e mau gerenciamento de obras públicas, racionamento de produtos básicos, gargalos físicos e técnicos relativos ao crescimento econômico.6 Como destacado anteriormente, os objetivos maiores delineados pelas classes produtoras não se limitavam ao aumento da geração de riqueza. Paralelamente aos avanços econômicos – isto é, junto a inúmeras diretrizes, metas e recomendações de teor político-econômico –, a Carta também punha em evidência questões relativas à “harmonia social”, a um progresso das condições de vida de toda a sociedade, ao combate à pobreza, enfim, àquilo que se poderia entender, em um sentido amplo, como “justiça social”. Em sintonia com as discussões do plano internacional do período – com o estabelecimento da ONU e o final da Segunda Guerra, como já mencionado – e para além do crescimento econômico, estavam na ordem do dia temas relativos às mazelas humanas, aos efeitos da guerra, à pauperização das populações e a demais problemas humanitários. Em alguma medida, o “aumento da renda” e o combate à pobreza defendido pela Carta de Teresópolis implicavam em diminuição das desigualdades. Tratavase mesmo de uma aspiração por “um regime de justiça social”, de “uma crescente participação de todos na riqueza comum”. Do mesmo modo, atuando de maneira conjunta, Estado e iniciativa privada deveriam empreender uma “cruzada” no “combate ao pauperismo”, e isso “não apenas por princípios de solidariedade humana e de sentimento patriótico, mas ainda pelos compromissos e responsabilidades que decorrem dos Convênios Internacionais firmados pelo Brasil”. Donde,a importância do contexto global para as formulações discutidas em Teresópolis.7 Em boa medida, parte dessas ideias em torno de um valor como o de “justiça social” também funcionava como uma maneira de responder a certos setores organizados da sociedade – em especial movimentos de trabalhadores, sindicatos e outros movimentos sociais. A reivindicação por melhores condições laborais – melhores salários, diminuição da jornada de trabalho, respeito à legislação vigente etc. e que já ocorriam mesmo durante o Estado Novo8 – não foram, portanto, ignoradas pelas classes produtoras. Não menos importante, a visibilidade adquirida
6 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945. 7 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945. 8 Paoli, Maria Célia. Trabalho e conflito na Era do Estado (direitos sociais, cidadania e leis do trabalho no Brasil – 1930/50), Departament of Social History, Birkbeck College, London University, 1988.
pela União Soviética no contexto internacional (que se constituiria, a partir dali, em um dos dois blocos hegemônicos que polarizaria a geopolítica no período da Guerra Fria), e, com isso, as possíveis virtudes do socialismo (real) que daí poderiam advir, também podem ter contribuído para a centralidade das temáticas sociais. A pauperização e o desamparo de amplos setores da população poderiam servir como combustível – para dizer o mínimo – para movimentos anticapitalistas e para outros tipos de protestos e manifestações com alto potencial disruptivo no interior da sociedade. Muitas dessas questões subjazem a importância que a expressão “harmonia social” adquiriu na Carta de Teresópolis, uma vez que “eliminando incompreensões e mal-entendidos entre empregadores e empregados, permita o trabalho harmônico, a recíproca troca de responsabilidades, a justa divisão de direitos e deveres, e uma crescente participação de todos na riqueza comum”.9 Era imprescindível, portanto, que tal temática figurasse no centro das atenções empresariais. A harmonia entre as classes ou a “paz social” mostrava-se, pois, em muitos sentidos, um projeto necessário para o estabelecimento de um novo patamar de desenvolvimento no país.
9 “Carta Econômica de Teresópolis”, Conferência das Classes Produtoras do Brasil, maio de 1945.