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Editorial

Um despacho para o Douro e o Vinho do Porto

Corriam os anos de 1974 a 1976. Eram tempos estranhos! Em Portugal e no Douro. O vinho do Porto, que já tinha sido, durante décadas, o principal produto da exportação portuguesa, dava sinais de crise e corria riscos. De organização, de qualidade, de serenidade para trabalhar, de justiça e de rigor. Assim como de falta de diálogo e de cooperação. O edifício corporativo desmoronava-se, sem sucessor conhecido. Quase não havia condições para uma discussão entre grupos profissionais, Estado, exportadores, produtores, lavradores, técnicos e outros com intervenção directa.

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Havia também os riscos externos, resultado de crises económicas internacionais, mas sobretudo de acções e iniciativas da concorrência. Apesar de a produção do vinho do Porto estar, há séculos, na vanguarda da economia portuguesa e do comércio externo, verdade é que todo o sector se ressentia de atraso e estabilidade. O contributo dos enólogos, por exemplo, era ainda diminuto, pois nem sequer havia, em Portugal, nem na região, um curso superior de Enologia.

A Comissão Administrativa da Casa do Douro, Federação de Viticultores, era nomeada pelo governo e presidida por um Capitão do Exército. Sempre fora nomeada pelo Governo, durante a ditadura e o Estado Novo, mas agora, em liberdade, não se compreendia. A nomeação de pessoas sem experiência do sector era bem sinal de que o governo tinha uma visão peculiar dos problemas da região.

Em grande parte, o vinho do Porto era exportado a granel, em contentores ou cascos de madeira, não em garrafa! Perdia-se e desperdiçava-se em qualidade, valor de exportação, confiança e reputação.

Na Região Demarcada do Douro, era sobretudo o vinho do Porto que contava, pela fama, pela qualidade e pelos preços. Não havia vinho DOC, sendo que os vinhos de “consumo” ou de “pasto” eram geralmente de fraca qualidade e baixo preço, serviam muitas vezes para produzir aguardente e eram comercializados sem qualquer protecção. As boas garrafas de vinho do Douro contavam-se pelos dedos da mão.

As principais empresas portuguesas de comércio do vinho do Porto estavam “intervencionadas” pelo Estado e administradas pelo governo, que nomeava as suas direcções.

Os estrangeiros do sector, sobretudo ingleses e franceses, estavam desconfiados e receavam o futuro.

A organização das cooperativas, que assegurava grande parte da produção de vinho a granel e que recolhia uma proporção elevada dos vinhos dos pequenos produtores, estava endividada

e tinha dificuldade em cumprir as suas obrigações junto dos cooperantes.

Uma ameaça era muito especialmente receada: uma parte do vinho do Porto dos anos anteriores tinha sido “beneficiada” (fortificada) com aguardente estrangeira, importada, feita com álcool artificial, sintético, como então se dizia. As análises do Carbono (C-14) tinham revelado tal facto que ameaçava destruir um produto e um mercado com séculos de idade e reputação. Os nossos competidores esforçavam-se por suspender ou mesmo revogar o título ou o certificado de origem, o que era uma fatalidade. Vários concorrentes europeus tentaram convencer os portugueses de que nada aconteceria de grave, se cumpríssemos o seu desejo: bastava rever o certificado de origem e retirar a alusão a aguardente natural ou álcool vínico. Era a mesma coisa que aceitar um suicídio para matar a doença!

Não havia eleições para os órgãos representativos dos agricultores. O grémio dos exportadores tinha sido extinto. Os grémios da lavoura extintos estavam. O Instituto do Vinho do Porto mantinha-se periclitante. A vindima de 1975 fez-se com o credo na boca…

Não havia nada que se parecesse com um Museu do Douro. O Instituto do Vinho do Douro e do Porto ainda se chamava apenas Instituto do Vinho do Porto. Com sede na cidade do Porto, sem sucursal à altura na região. Era obrigatório o “trânsito” do vinho do Porto pelo Entreposto de Vila Nova de Gaia!

As relações entre produtores, lavradores, comerciantes, intermediários, técnicos, enólogos, funcionários do Estado e o Instituto do Vinho do Porto estavam no seu pior estado desde sempre.

Em 1975, assistia-se a uma ameaçadora descida das exportações, em quantidade e em valor.

Tempos perigosos, aqueles! Mas também eram tempos de entusiasmo! Pensava-se então que muito era possível, que eram momentos de reforma e que eram grandes as oportunidades de acção. Admitia-se, acreditava-se que era possível traduzir em acto as esperanças de tanta gente, de criar paz no sector, de aumentar a justiça, de abrir as portas à produção de vinho do Douro DOC, de valorizar os vinhos ditos de consumo, de aumentar os preços pagos à lavoura pelos bons vinhos, de procurar novos mercados exteriores, de controlar as plantações, de fiscalizar as fraudes e de estabelecer novas relações entre os protagonistas, os que formavam o triangulo essencial: a lavoura, a exportação e o Estado.

Foi com o pensamento nos trabalhos necessários e no muito que havia a fazer, que se criou a Comissão de Reorganização do Sector dos Vinhos do Porto e do Douro composta por cinco pessoas executivas: Comandante

Carlos Mesquita, Eng.º Carlos Torres, Dr. Mário Graça Pereira, Dr. Luís Roseira e Dra. Maria Helena Martins. Além deles, duas dezenas de membros de um Conselho Consultivo e de representantes das organizações, das instituições da região e do sector. Entre outras tarefas, esta comissão tinha como missão dialogar com toda a gente, todos os interessados na Região Demarcada, nas vinhas e nos vinhos do Porto e do Douro. Em poucos meses de intenso trabalho, o relatório da comissão foi apresentado. O despacho de 3 de Julho de 1976 resulta em boa parte das reflexões e das discussões havidas nesta comissão.

Este despacho não esconde a sua vontade: a de reformar o sector e a região, incluindo aspectos relativos às vinhas, aos vinhos, às finanças, ao crédito e ao ensino, incluindo uma Enoteca Nacional e um Instituto de Desenvolvimento da Região do Douro. Eram tempos de grandes ambições!

Muito do que se sugere neste despacho foi indefinidamente adiado, algumas sugestões eram impossíveis, outras erradas. Mas muitas fizeram vencimento. Por exemplo, a criação do IVDP (ou alteração de designação e âmbito do anterior IVP) e a transferência da sua sede para a Região. A criação do Museu do Douro, com sede na Régua, era expressamente sugerida. Também a transferência para a Região de parte do Entreposto de Gaia estava ali patente. O desenvolvimento dos conselhos interprofissionais foi igualmente sugerido.

Entre todas as esperanças, avultava uma, talvez de pouca importância política e económica, mas de enorme valor simbólico: a criação de um Museu do Douro. A ideia vinha de trás, dos primeiros anos do século XX! Era uma pretensão vezes sem conta renovada e afirmada. Antão de Carvalho, Nuno Simões, Guerra Tenreiro, João de Araújo Correia, Rui Machado, Gastão Taborda, Miguel Torga… Eis apenas alguns nomes ilustres de quem muito se interessou pelo Douro e que, a seu tempo, defendeu a criação de um Museu. Foram precisos quase cem anos para concretizar a ideia e realizar o projecto. No Douro, é assim: tudo é difícil e demora tempo.

ANTÓNIO BARRETO

Janeiro de 2021