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MIGUEL VIEGAS LEAL | ACERCA DA INDIFERENÇA

ACERCA DA INDIFERENÇA

MIGUEL VIEGAS LEAL| Loulé, Algarve.

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António L. refletia nas palavras do médico enquanto mergulhava o corpo num banho de imersão de água fria e os lábios num cálice de vinho tinto. Resumia-se a isso apenas, não haviam velas acesas, incensos, ou luzes a meio gás, não era o ambiente duma parada romântica, porque, aliás, não só já se sabia velho para essas aventuras como o senhor doutor lhe recomendara não exaltar o coração. Vendo bem, havia-o restringido de tantas outras coisas que tentava lembrar-se do que é que de facto podia fazer sem esticar o pernil, e quando encontrava algo para se entreter nem sempre tinha a certeza se era cem porcento seguro. Contudo, há vicíos e hábitos que um homem vai acumulando ao longo da sua vida e dos quais não se pode desfazer mesmo que o corpo já não possua o vigor de os suportar. - Se o senhor doutor não quer que faça nenhuma dessas coisas, por que não se atreve a escrevê-las numa receita médica? Caso contrário, vou esquecer-me delas, e com imenso gosto. - Oiça-me, meu caro senhor António, - era tão eloquente e educado a falar que chegava ao ponto de irritá-lo. - o seu coração está como um equilibrista na corda bamba. Precisa duma vara para se equilibrar, mas ela não é garantia de que não dê um passo em falso, entregando-se assim ao destino do abismo. No seu caso, a vara é cada comprimido que toma e o passo em falso todos estes comportamentos de risco que lhe digo. - ah!, que grande imbecil era aquele homem quando se punha com as suas metáforas, deixando-

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o ainda mais confuso. Preferia que fosse direto e que dissesse que se não morresse amanhã então morreria no dia seguinte. - Não lhe posso prometer que não tenha outro ataque, senhor António. - Os comprimidos não me importo de bebê-los, mesmo a contragosto. Agora, deixar de fumar? Ressacar com esta idade seria morte certa. Um homem não pode viver sem buscar o prazer. - Antes não ter azares que prazeres. O senhor tem que se conformar com a realidade. - que lata a dele! Se todos fossemos inconformados seria o mundo um lugar melhor. Estar conforme é morrer! Setenta e seis anos de vida eram o suficiente para António aperceber-se da sua própria teimosia, que, segundo lhe iam dizendo, vinha a acentuar-se nos últimos tempos, porém essa sua característica não o impedia de discernir que o médico tinha razão. O ataque de coração não fora por acaso, a velhice chegara e as provas estavam todas à sua volta. Bastava, por exemplo, olhar para o botão giratório do volume da telefonia. Acostumara-se desde jovem a ouvir música em altos berros. Anos atrás com os altifalantes a meia potência já os seus ouvidos estremeciam, mas, naquele momento, durante o seu banho rejuvenescedor, o ponteiro encostavase ao fundo da escala e a música já não o fazia vibrar. Tinha a consciência de que mal ouvia, de que, em parte, os seus hábitos também contribuíram para isso, mas, o que haveria ele de fazer, deixar de ouvir, por exemplo, o caos de Bitches

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Brew para sempre? Óbvio que não. Isso só era plausível na cabeça do médico por ser um moço novo ainda, mas para António era impensável continuar os restos dos seus dias a jogar pelo seguro. Ria-se como, na ótica exacerbada do médico, o seu espírito se assemelhava ao de um garoto que acaba de saltar da asa da mãe cheio de garra para absorver e salvar o mundo duma só vez. Nada disso. Fazia dele uma ideia errada. O que aquele senhor de bata branca não compreendia é que António buscava os motivos mais simples para viver, aos quais, está claro, não podia passar indiferente. Teria mais que tempo para ser apático quando

morresse. Entretanto, a porta da casa-de-banho abriu-se, raspando nos mosaicos do chão, de modo que essa reflexão que António L. fazia acerca da sua situação desvaneceu-se sem que desse conta. A sua atenção prendeu-se então na rapariga que entrava na divisão e se aproximava da telefonia, baixando depois o volume e, com consequência, despromovendo os sintetizadores intercalados com o trompete a mera música ambiente. Os saltos altos fizeram-se logo ouvir a cada passo que dava na direção da banheira, e por entoarem por toda a casa António não os costumava considerar como audição agradável, todavia naquele momento pôs-se a apreciá-los apesar de não saber bem porquê. A rapariga, chegando-se junto dele, inclinou-se sobre a banheira e beijou-o na boca, beijo mais fugaz não poderia existir, e, pegando-lhe no cálice de vinho, levantou-se de novo e bebericou dele. Após isso,

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atirou um comprimido para o líquido, esperou até se dissolver, e só depois o retornou a António. Se o outro soubesse daquele tratamento ilegal recusar-se-ia duma vez por todas a acompanhar a sua doença. - Não me importava de tomar banho consigo se não insistisse em tomá-lo com água gelada. - enfim, como ninguém era capaz de entender que aqueles banhos atrasavam o seu processo de envelhecimento! A rapariga (sim, era uma prostituta, mas contratada a tempo inteiro) dizia sempre o mesmo, apesar desta vez não ter feito referência às horríveis consequências que, segundo ela, se poderiam manifestar ao nível cardíaco. - Recusar-me-ia a tomar banho consigo qualquer que fosse a temperatura da água. Seria um momento íntimo que ambos dispensaríamos viver. É, ou não é verdade, minha querida? Lia, assim se chamava, acendeu um cigarro dum maço para ali abandonado e sentou-se na tampa da sanita, inclinandose para a frente e apoiando-se com os cotovelos sobre joelhos, juntando estes de modo a que as suas pernas formassem um triângulo com o chão. António L., por instantes, entreteve-se a admirá-la pois não deixava de ser uma criatura curiosa. Não receava mostrar a sua nudez às paredes da casa, porém teimava em percorrê-la de saltos altos o dia inteiro, e quando António a questionava acerca dessa sua particularidade corava como se escondesse um segredo comprometedor. «Não gosto de andar descalça», respondia por vezes, o que era vago demais visto que dispunha de um

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par de sapatilhas; contudo, houve certa vez que disse algo que ia encontra da teoria de L., «Senão não chego aos armários», e não adiantou mais explicações. Isto bastou para que desconfiasse que a rapariga não se sentia bem em ser baixa, envergonhando-se da sua estatura como se tratasse duma deficiência, e somando a isso os seus seios diminutos, cuja aquela posição de tronco inclinado favorecia o seu descaimento, constrastando com a largura das suas ancas. Tudo isso eram disparates na opinião de António. Meu Deus, como a invejava! Quem lhe dera a ele ainda conservar uma pele suave e firme e umas bochechas que não se parecessem com as dum cão, capazes de se segurarem contra a gravidade. Mas, que alternativa tinha ele (e todos os outros) se não envelhecer? Era dos poucos assuntos com os quais só se podia combater resignando-se, esquecendo-se deles, e, por isso, há algum tempo que já se deixara de importar com a arquitetura que o seu corpo ia tomando. Tratavam-se, sem sombra de dúvida, de inquietações de gente nova, e quanto mais velho se tornava não conseguia perceber por que essa malta as tinha, ou por que ele próprio as tivera. Duma coisa ele tinha a certeza, achava Lia bonita enquanto ele se ia transformando numa aberração. - O carteiro passou e entreguei-lhe o envelope com a sua história. Espero que a revista a aceite, o senhor escreve muitíssimo bem. - perante este elogio não pôde ele conter uma gargalhada, que, logo a seguir, puxar-lhe-ia uma tosse

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de arrancar os alvéolos dos pulmões. A rapariga, por sua vez, deu três passas no cigarro com extrema rapidez. - Ora, minha cara, enquanto não conceber uma análise crítica das minhas escritas nunca me poderei saber como posicionar entre o fracasso e a genialidade. - Mas é a verdade. - A verdade é superficial, ao contrário duma boa mentira. - Como queira. António continuou a observar a prostituta, enquanto esta conservava igualmente o pensamento vazio mas de olhar preso nos azulejos brancos da parede. Ambos permaneceram calados até terminarem o copo de vinho e o cigarro. - A cama está feita. - Vamos, então, querida. Ajude-me só a levantar. - adorava frases com duplo sentido. A rapariga destapou o ralo da banheira. Depois, assentou uma mão atrás do ombro dele, mas não necessitou esforçarse pois ergueu-se sozinho, graças a Deus ainda conservava as suas forças e equilíbrio, a mão funcionara apenas como placebo. Tirou uma toalha do cabide, havia várias de cores diferentes mas escolheu-a à sorte, secou-se, e, terminando a sequência de processos que constituem o ato maior de tomar banho, estendeu-a na porta, o calor era tanto que não valia a pena instalá-la num cordel ao sol. Da casa-de-banho António seguiu Lia até ao quarto, sempre de mão dada e

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com cuidado para que não lhe enfiasse um salto num dedo do pé. Ao abeirar-se da cama reparou como o coração bombeava aos seus ouvidos, o sangue corria-lhe tão depressa que lhe levantava o tímpano, de modo que não precisava de estetoscópio para se auscultar. Não precisava de ser médico para perceber que esse seu órgão não operava nas condições ideais, de tanto bater podia despedaçar-se. Aliás, os ruídos que lhe chegavam aos ouvidos que as suas válvulas produziam ao abrir e fechar atrofiavam-lhe os nervos. Não é suposto ninguém ouvir os seus barulhos internos, a não ser, está claro, os de intestinos. Não comunicou à rapariga a sua aflição, até porque aquelas arritmias revelavam-se sempre inofensivas, mas talvez já se tivesse apercebido das suas mãos trémulas. Logo se atirou para a cama de barriga para cima na ilusão de que se curasse. O tímpano pareceu-lhe menos nervoso, contudo o alívio de pressão nessa região aconteceu com a consequência de a sua nuca também começar a palpitar. Jogou-lhe a mão mas não sentiu nada, o que o fez concluir que era imaginação sua, que por outra razão que não cardíaca se achava com uma sensibilidade aumentada. Pelo menos, era disso que se queria convencer, e tanto assim foi que quando Lia começou a roçar-se nele essa sua preocupação caiu por terra. Até na cama, de cócoras sobre a bacia dele, a miúda não se dignava a retirar os malditos sapatos de salto alto, que

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apesar de não fazerem ruído ali eram capazes de perfurar os lençóis e o colchão, ou, lá está, de se enfiarem nas suas pernas. Tratavam-se, de facto, de objetos que, ainda não sendo dotados de habilidade mortal imediata, poderiam ser considerados como arma branca. De qualquer das formas, António sossegou-se o suficiente para cerrar os olhos, poisar as suas mãos sobre a anca da prostituta, intercalando entre umas festas nas pernas ou um aperto nos seus seios, e sentir o calor interno dela cobrindo-o. Além disso, e voltando ainda aos saltos altos, gostava de pensar neles como uma marca da exclusividade dos seus serviços, sendo essa outra razão para não lhos poder descalçar. Sem aviso, uma dor grotesca comprimiu-lhe o centro do peito, contorceu-se por não estar à espera, e, por instinto, principiou-se a tossir com aflição na tentativa de a expulsar através do trato respiratório. Mas, como seria óbvio, as suas primeiras suspeitas confirmaram-se, a dor não podia ser vomitada, seria simpático demais por parte do seu corpo permiti-lo, até porque prejudicaria um súbito ardor que se desenvolveu instaneamente garganta acima. A rapariga parou os seus movimentos rítmicos, mas conservou-se sobre ele. - Continua. - ainda não haviam razões para ela parar, era impossível António se cansar como quando tinha dezassete anos, a não ser que a dor lhe tivesse ocultado o prazer. Lia encostou a mão à sua testa, em jeito de diagnóstico, porém, António não se achou na condição de protestar ou

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exigir a sua escravidão sexual ao perceber a sua expressão de preocupação. - Está muito quente, senhor L. E o seu coração bate depressa. - como adivinhava a pergunta que ela lhe faria a seguir: Sente-se bem? - mas ele próprio não lhe sabia o que responder, à parte da dor, sim, encontrava-se de cabeça lúcida, de forma que a pergunta correta deveria ter sido «Vai morrer?». - Vou. - disse, corrigindo-a através da resposta. - Vem aí o segundo, a este não me escapo. - Não diz coisa com coisa. Quer um copo de água? - Não tenho sede. Continue mas é a mexer-se que é para isso que lhe pago, minha querida. E depressa que não tenho a vida toda. - consciencializou-se que estas seriam as últimas palavras que conseguiria dizer sem que a dor lhe tremesse a

voz. Momento inoportuno, vieram-lhe à cabeça as palavras do médico, «o seu coração está como um equilibrista na corda bamba», mas, pela primeira vez, não fez juízo delas. Se antes não as respeitava, o que não significava que não acreditava que constituíssem verdade, agora sentia-se despreocupado delas por completo, eram-lhe indiferentes. A sua cabeça iase aligeirando, começava a cerrar-se uma névoa em torno dos seus olhos mesmo conservando-os fechados, mas, apesar disso, conseguia manter o foco no objetivo de se abrir no interior de Lia antes que a dor de peito se lhe tornasse insuportável. Para além de desprezar a verdade medicinal, a

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eloquência com que a cuspia passou a irritá-lo tanto como a má educação dos filhos dos outros, aliás via agora quão grande era a estupidez de se ter deixado afetar por ela, nunca valera a pena. Era estranho pensar assim, eram assuntos que iam contra a sua maneira de ser, mas que agora se tornavam banais, neutros, sem importância. Seria a morte que, depois de se aproximar, lhe lançava o feitiço da plenitude para lubrificar a foice? Tudo levava a crer que sim, apesar de estes lhe serem terrenos desconhecidos, e que ia pisando sozinho. É que tampouco já não lhe apetecia ouvir o trompete de Miles Davis, a que volume fosse, descansados poderiam estar os vizinhos, ou menos ainda acreditava nos efeitos revigorantes dum banho de água fria. De forma igual se estava nas tintas para receber a recusa da revista quanto ao seu texto, daí a quinze dias o carteiro deixaria uma carta na caixa do correio dizendo qualquer coisa como «reconhecemos os elementos narrativos presentes na sua história, contudo não estamos, de momento, interessados na sua publicação». O discurso era sempre o mesmo há anos, bastariam ter-lhe dito quando novo que nunca ultrapassaria a mediocridade, e teria desistido logo aí, mas as pessoas nunca haviam sido francas consigo. Tê-lo-iam dado esse bom conselho, que não tinha talento, e, não valendo a pena, logo dedicar-se-ia a outra coisa. Pior que descobri-la tarde de mais só morrer antes disso. Mas, já não havia nada que fazer quanto a isso, tanto lhe dava. E, quanto ao vinho, se agora o bebesse saber-lhe-ia a água. Idêntico fenómeno aconteceria

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ao ouvir os saltos altos, escutá-los-ia como a uma criança caminhando em bicos de pés. Era assim que, negligenciando a sua vida e os acontecimentos e preocupações que a compunham, António corria para o orgasmo, levando ainda uma ligeira vantagem sobre a dor. Quando, por fim, explodiu de prazer, tornando-se imediatamente também indiferente a este, outra dor maior atravessou-lhe o peito até à coluna, e, não a conseguindo suportar, desprezou também a necessidade de respirar. A morte, que até então, apesar de o obcecar (como a todos os homens), incentivava-o a incoformar-se perante o mundo era a mesma que agora o injetava de ataraxia para com este. Destarte António L. ia sendo transportado com tranquilidade da incoformidade à indiferença, ou, escolhendo as palavras certas, da vida para a morte.

MIGUEL VIEGAS LEAL tem 21 anos, é de Loulé, Algarve. Começou a escrever aos 14 anos, logo que compreendeu que através da escrita podia aceder mundos que de outra forma seriam impossíveis de visitar. Tem contos publicados em vários sites na internet, e tem livros infantis em fase de edição nos EUA, em português e inglês. Obteve uma menção honrosa no II Concurso Literário Francisco Guerreiro, na vertente de prosa, com o conto "a menina que queria desafinar". Espera aprender a escrever cada vez melhor. | MIGUEL.VIEGAS.LEAL@GMAIL.COM 30

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