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ONDE O SANTO DE CASA FAZ MILAGRE
Era uma manhã ensolarada de terça, e em meio a correria e ansiedade de chegar na parada de ônibus na hora certa, a empolgação de ter conseguido passar para a escola de dança mais conhecida do Estado, era o que predominava. Uma longa hora de viagem, ônibus lotado, enjoos e comentários: “Cheira limão que passa” “Por que ela não tenta dormir pra não ver o percurso?”, “Pelo amor de Deus Lourrany, não vai vomitar”. Urgh… Tarde demais.
Chegamos na Central de Artesanato Mestre Dezinho e a euforia que existia dentro do meu peito deu espaço ao sentimento de admiração. Logo na entrada eu e minhas amigas começamos a observar algumas artes espalhadas. Faltava uma hora para começar a nossa primeira aula, então fomos desbravar aquele ambiente rico. Por todas as partes encontrei esculturas em madeira com imagens de santos em vários tamanhos diferentes. Fiquei admirando e me questionando: “Quanto tempo levou para serem concluídas?”. Dei dois passos e percebi que a lateral da parede de madeira estava completamente talhada com a figura de um vaqueiro guiando o rebanho e ao fundo várias carnaúbas completavam o típico cenário nordestino. Nesse momento, eu ainda não sabia que anos depois eu escreveria sobre o artista responsável por aliviar a minha tensão naquele dia. Homem experiente, mais de 40 anos trabalhando com arte e desde muito cedo habilidoso em esculpir e entalhar. Ele mesmo me contou isso durante entrevista.
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Ao chegar em sua casa, não tinha como ter dúvidas. Logo na entrada me deparei com uma placa de ferro um pouco retrô, logo entendi o que haviam me falado na rua anterior quando perguntei a um grupo de idosos que papeavam na calçada “Com licença, a casa do mestre Dico fica por aqui?”. Eles me responderam: “Basta seguir em frente, você irá encontrar e nem precisa saber o número da casa”.
Apertei a campainha e fiquei aguardando ansiosamente em frente a porta, para minha surpresa, do outro lado, foi um enorme portão que se abriu e alguém começou retirar lentamente o carro da garagem. Acenei com um pouco de timidez ao perceber que dentro do carro estava o Mestre Dico e aparentemente ele não havia lembrado da nossa entrevista. Naquele momento ele desceu do carro e eu pude me apresentar, aquela expressão de surpresa entregou que ele realmente havia esquecido.
O Mestre me contou que estava saindo para comprar mais cera. Ele explicou que o material seria utilizado para realizar o acabamento de uma enorme peça que estava em processo de restauração e me convidou para entrar. Fui guiada até a oficina, que estava repleta de peças em processo de restauração. Confesso que estava esperando encontrar várias obras de artes inacabadas, madeiras e ferramentas. Foi então que eu percebi, que o trabalho do artesão vai além da criação das belas esculturas, o processo de restauração é imprescindível para manter a arte viva.
Mestre Dico me contou sua história com muita simpatia e empolgação, foi possível observar em seu rosto a alegria de falar sobre seu trabalho e como tudo começou. A história do rapaz que vendia roupas em frente ao Museu do Piauí, como ele mesmo relatou: “ Eu nunca imaginei que um dia iria trabalhar com a restauração das peças daquele mesmo museu.” Foi através de um convite feito por seu cunhado, Mestre Manoel Martins Santos que o Mestre Dico se encontrou na arte santeira. O Mestre Manoel observou que Dico possuía muita habilidade para desenhar e lhe ofereceu um salário três vezes maior para que ele pudesse auxiliar na produção das peças. Foi assim que a carreira do jovem artesão começou a decolar pelo Brasil e até mesmo para o exterior. Mestre Dico atravessou fronteiras com sua arte, uma das exposições que marcou sua vida, foi realizada no Complejo Ferial localizado em Córdova, na Argentina. Para conseguir participar do evento, Dico precisou elaborar campanhas para arrecadar dinheiro. Todo o esforço valeu a pena, o artesão conseguiu expor suas peças entre 22 países e voltou para casa com a premiação de segundo lugar. como diria os seus amigos chilenos: “Em Córdova, o santo de casa faz milagre”. O tempo passou muito rápido, de repente já era meio dia e eu precisava me deslocar até o próximo destino. Mestre Dico me prometeu uma panelada, mas esta ficou para a próxima. Me despedi

Mestre Dico em sua oficina. Foto: Sarah D’arc. Mestre Dico fala detalhes de suas obras. Foto: Sarah D’arc.

com muita alegria por ter sido tão bem recepcionada em sua casa. Fui almoçar em um lugar que me traz muita nostalgia, a Central de Artesanato Mestre Dezinho. Após o almoço, enquanto aguardava a Sarah, fiquei andando pelo local lembrando de tudo que eu aprontava por ali, e sempre esbarrava em uma obra, entre elas, a de José Alves de Oliveira, o famoso Dezinho.
De longe avistei Sarah chegando e logo pedimos um uber para seguirmos até o nosso próximo destino, a casa de Joaquim José Alves, conhecido como Mestre Kim, o famoso discípulo de Mestre Dezinho.
Ao chegar em frente à sua casa, tocamos a campainha por algumas vezes e comentei: “Será que ele também esqueceu?”. Ouvimos alguns barulhos, precisamente um: “toc toc toc”, que logo nos fez perceber que o Mestre estava ao fundo da casa, trabalhando em sua arte.
Após alguns apertos a mais no interruptor, a porta se abriu e lá estava, o saudoso. Entramos e logo na garagem ele nos apresentou dois anjos feitos por Mestre Dezinho. “Essas obras têm mais de 30 anos, e vamos entrar, só não reparem a bagunça porque a casa está em reforma”, disse ele. Em sua oficina, no quintal, sentamos e questionamos sobre o que levou ele a dar continuidade ao trabalho do tio e sogro. Foi mais de uma hora de bate-papo e muitas risadas, ele nos contou que começou desde cedo, na infância, ele usava gilete para fazer paisagens


Mestre Kim produzindo uma peça. Foto: Lourrany Meneses.
nos giz e lápis. “Mestre Dezinho viu a habilidade que eu tinha, perguntou pra minha mãe se ela deixava eu vim morar com ele e aprender mais, e eu vim, nessa mesma casa aqui que eu moro hoje”, nos contou.
Enquanto conversávamos, um cheiro amadeirado e levemente doce, perfumava o ambiente. Esse cheiro me acompanhou durante o dia inteiro, mas naquela oficina eu pude sentir o seu gosto. Sim, gosto. Posso garantir que não é nada bom. Enquanto o Mestre Kim lixava uma de suas peças, me aproximei para tirar uma foto do processo. Neste momento, inspirei partículas de Cedro e de repente um gosto amargo começou a se formar em minha boca. Mestre Kim contou que já passou muitas vezes por situações “desgostosas” como esta, mas este é apenas um dos sentidos que a arte já lhe proporcionou. Kim, assim como Mestre Dico, sentiu na pele o frio de -2ºC de Córdova e ainda contou que não gostou muito da experiência, pois teve dificuldade para se comunicar no local. Essa história nos rendeu boas gargalhadas. As obras do Mestre Kim viajaram por todo o Brasil e atravessaram fronteiras que nem ele mesmo chegou a ir. Mais de 25 de suas obras de arte participaram de exposições nos Estados Unidos e apenas uma pessoa comprou todas as peças. Entre risos e conversas o Mestre nos contou um segredo. O Cedro, (madeira utilizada na confecção das peças) pode custar até sete mil por metro cúbico. Além disso, essa madeira está sempre em falta no mercado. Por isso, a sua estratégia é manter, sempre que possível, um estoque. Essa estratégia ele aprendeu com o seu Mestre Dezinho.
Mestre Dico e Mestre Kim são duas personalidades que representam Teresina e o Piauí. Dotados da sutileza de

produzir arte santeira, são protagonistas da história que tornou uma cultura popular do Piauí, patrimônio imaterial do Brasil.
Porém, a continuação do patrimônio está ameaçado. Os Mestres nos contaram que temem um dia essa arte acabar, já que segundo eles não se encontra mais pessoas interessadas em continuar. Mas mesmo que um dia a arte santeira chegue ao fim, os grandes mestres terão o seus nomes atrelados a obras tão significativas para os seus admiradores.
