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Eni Ilis

Eni Ilis Campinas/SP

Formiga

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A um passo de meu próprio espírito A um passo impossível de Deus Atenta ao real: aqui Aqui aconteço. (Orides Fontela)

Talvez, chegue o tempo em que as formigas leiam Kierkegaard. A formiga na pétala da flor, não é algo a se estranhar. A flor no vaso trincado, não é algo a se estranhar. O vaso trincado na mão ossuda, não é algo a se estranhar. A mão ossuda com luva, não é algo a se estranhar. Que todos concordem e concordam que a luva foi necessária para não sujar a mão ossuda. Que todos concordem e concordam que a mão ossuda tenha que segurar o vaso trincado. Que todos concordem e concordam que no vaso trincado tinha flor e nesta a pétala em que estava a formiga, indecisa formiga. Não sabia se dava o passo adiante ou atrás, porque não sabia se a sombrinha abriria no exato momento em que tivesse que abrir. Todas às vezes que testou, quase funcionou, quase falhou e ela não sabia se daria certo na hora em que deveria dar certo. Indecisa formiga na pétala da flor. Tão certa do caminho. Tão certa da pétala. Tão incerta do próximo passo. Contudo, a pétala bem firme na flor que está bem firme no vaso trincado segurado bem firme pela mão ossuda com luva. O trincado do vaso , contudo, não dúvida de seu próximo passo e avança lento e empurra a terra que não resiste e se deixa empurrar e empurrada cai e fica aqui e depois em outro aqui, a cada fôlego renovado de queda. E a formiga tão incerta com sua sombrinha na pétala da flor, não se volta para trás e não se decide ir além, ao contrário da mão ossuda enluvada que segura o vaso trincado. Vai além num ir tão reto que nem parece se mover. No chão, a terra caída testemunha

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essa trilha, sem desvio, estável constante. Ainda mais que não surgiu a brisa, não surgiu o vento. E para seguir assim, porque tudo certo e se certo, não atrapalha a formiga que tem que decidir e não decide, apesar de estar na pétala de flor com a sombrinha. Não esqueceu nada, mas não decidiu. Ah! Triste formiga! Tudo tão certo estável constante para que a dúvida se adense justo em ti! Ínfima formiga! Ainda bem que a formiga não chora. (Não essa, ao que se saiba). Chorasse, a lágrima poderia rolar e cair na pétala e ela distraída com sua indecisão, pisar tropeçar e quedar como a terra empurrada do vaso trincado na mão ossuda enluvada. Ainda bem que a formiga, essa pelo menos, não chora sua tristeza. Chorasse, talvez fosse melhor. Se aliviaria e aliviada, decidiria, mas a formiga, como dito, não chora. ´ E se chorasse, não é algo a se estranhar. Seria estranho se fosse a luva, se fosse a mão ossuda que segura firme o vaso trincado que parece já não ser tão firme para a flor que tem a pétala firme para a formiga dar o próximo passo com a sombrinha. A flor com a formiga em sua pétala parece não perceber porque não lhe cabe perceber e se percebesse, o que poderia fazer? E se soubesse o que poderia fazer e não o fizesse por alguma razão? Flor tem razão? Razão de ser? Razão de estar no vaso trincado? E o vaso, então? Tem razão de ser e razão do trincado que não deteve o seguir da mão ossuda que o segura? Não estivesse o vaso trincado, seguraria com luva? Seguraria firme? A terra não se espalharia em queda, por certo. E, se essa for a razão? Lágrima terra em rastro estável constante? O que faz, então, a formiga na pétala da flor com sua sombrinha? O que faz? Faz estar na pétala que é o chão do que antecede, isso o que faz e não é de estranhar. Concordam? Concordam, sim concordam. E concordam também que há que varrer o chão dessa terra caída aqui e ali e lá. Varrer o chão dessa terra, não é algo a se estranhar. Como não é algo a se estranhar que as flores sequem, as flores murchem. Concordam?