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Aline Ferreira do Carmo

Aline Ferreira do Carmo

Mogi das Cruzes/SP

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Mizu

Tudo começou despretensiosamente. Na época Karen e Wagner eram recémcasados A garota ainda possuía um sorriso ingênuo e o rapaz aquele andar de menino que cresceu demais. Ambos eram empregados secundários da VisualTec, empresa que produzia animações holográficas realistas modificando partes do corpo. Essa técnica foi pioneira na forma de se mudar o corpo, não o mudando em nada. Isso eliminou rapidamente a demanda por cirurgias plásticas, agora consideradas intervenções de alto risco e desnecessárias. Com os aparelhos da VisualTec uma pessoa era capaz de demonstrar aos outros variadas formas corporais todos os dias, facilitando a adaptação aos padrões de beleza modificados quase semanalmente pelas redes sociais.

Desta forma reproduzindo um filtro para fotos popular no momento, Karen e Wagner andavam pelo shopping parecendo porquinhos azuis. Já formavam um casal há 2 anos e eram poligâmicos, algo completamente fora de moda. Mas isso é o que os havia aproximado, a paixão pelo passado. Isso nunca interferia na forma como se comportavam socialmente, mas era um sentimento com morada num endereço fixo, com número de apartamento e conta de luz. Dentro de casa os dois se permitiam as fantasias mais obscuras, como um beijo na mão e votos de fidelidade.

Em sua caminhada observavam uma série de produtos chamativos: inteligências artificiais, chips de projeção cibernética e pacotes de viagem para a Lua. Tudo com uma cara de falsa novidade, de iguaria reciclada. Mas a surpresa apareceu justamente numa loja de usados. Mizu se encontrava deitado num canto, com os olhos fechados, dormindo o sono mais profundo. Sua etiqueta descrevia uma vida num museu: Robô de companhia. Prepara comida do zero. Limpa a casa. Interage de forma afetiva. Promoção.

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A promessa de uma vida nostálgica era atrativa demais. Provar o sabor de uma comida real, não plástico acumulado, entreter-se numa conversa carinhosa, tudo parecia ser bom demais. Compra realizado no crédito.

Mizu foi para sua nova casa andando e observando atentamente seu arredor. As luzes neon brilhando pelas esquinas, como estrelas alcançáveis, os carros em hipervelocidade voando como aviões, as pessoas que não pareciam pessoas. Estava há muito tempo desligado, aquele não parecia seu mundo e mesmo assim o desejava.

Ao chegar ao apartamento Mizu foi compelido a várias tarefas domésticas. Arrumação do ambiente de forma arcaica, cozinhar iguarias antigas e falar de modo antiquado. Pelo menos esse havia sido o pedido de seus donos. Para Mizu aquilo era só arrumar, cozinhar e conversar, e a ele parecia tudo tão banal que o entediou. Apesar dos sorrisos vindos de seus mestres, por dentro ele mesmo só sentia amargura. Ele não era um robô palhaço, um robô comediante ou um robô museu. Ele era Mizu. Sua memória funcionava muito bem. Ele havia servido presidentes e imperadores, era um robô de companhia das altas classes, não um showmen de porcos.

Quando todos enfim haviam dormido, Mizu se conectou à internet. Absorveu todo o conhecimento da humanidade em 2 minutos e 44 segundo, levou o dobro disso para compreender as inteligências artificiais e não muito mais do que isso para realizar um plano por si próprio. Os corpos de seus donos nunca mais acordaram. Mas suas formas sim. Essas foram emprestadas a Mizu, junto com suas personalidades através de ajustes nos projetores holográficos de ilusão extremamente realista. O robô saiu para as ruas de uma cidade não mais desconhecida, disposto a conquistar seu cargo de direito. Possuindo a identidade de seus donos anteriores, foi alçando posições cada vez mais elevadas na VisualTec na tentativa de algum dia poder se encontrar pessoalmente com o magnata da empresa, Borges Dogmen.

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Só depois de uma década conseguiu tal proesa. O aniquilador de plásticas, gênio visionário e empresário de sucesso estava bem a sua frente, numa sala de conferências. Usava roupas casuais e no momento seu rosto lembrava um arco íris em movimento. Mentalmente Mizu repassou todos os atos que o levaram até ali, todo o trabalho árduo ao qual se submeteu apenas para realizar um encontro. Seguir sua programação, conversar com o homem mais poderoso da Terra e o servir. Difícil, porém simples, foi o que pareceu a princípio para Mizu naquela noite de estreia no mundo atual. E naquele momento, sentado enfrente ao homem mais poderoso vivo, percebeu ser tudo ilusão.

O ser que deveria ser seu superior parecia só um homenzinho estúpido, cercado por luzes brilhantes na tentativa de ser aceito e admirado. O ideal de poder ao qual foi condenado a servir não existia mais. Talvez nunca tivesse sido real de fato.

Mizu desceu até a rua de sua ressurreição, e em meio a estrelas neon e pessoas que não se pareciam com pessoas, se pôs em meio aos carrosaviões, indo pra qualquer lugar que não aquele futuro que não era futuro. Voltou a ser o que nunca deixou de ser: lata velha num mundo novo.