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Telejornalismo, desinformação e negacionismo no Brasil

Adriano Rodrigues de Oliveira

Atelevisão é um meio de comunicação que possui uma inegável influência sobre a vida das pessoas, seja em assuntos privados ou na vida do cidadão no exercício dos seus direitos. Mesmo nos dias atuais, em que ela concorre com as poderosas redes sociais da internet, ainda há milhões de brasileiros e de brasileiras que observam nas telas dos televisores a programação das grandes emissoras, que expõem a sua seleção de recortes e interpretações da realidade. Nesse ambiente onde o debate público é descentralizado em diversas plataformas, com excepcional crescimento de canais independentes na internet, as concessões públicas de televisão e rádio têm importante papel de representar o rigor do trabalho jornalístico, que apresenta os fatos verdadeiros por meio da apuração e da verificação. Contudo, os jogos de poder no Brasil fazem com que nem sempre o telejornalismo das grandes emissoras adote o republicanismo e o interesse público como prioridade.

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O telejornalismo brasileiro, que pode ser exemplificado por meio de seu mais conhecido programa, o Jornal Nacional, na TV Globo, nem sempre esteve ao lado da democracia. As relações dessa emissora com a ditadura civil-militar de 1964 a 1985 são de conhecimento público (https://www.infomoney.com.br/politica/relembre-o-editorial-de-roberto-marinho-apoiando-a-ditadura-e-a-retratacao-da-globo-em-2013/), além de outros episódios de franca manipulação política já na Nova República, como a edição do debate entre Lula e Collor nas eleições de 1989 (https://www.uol.com.br/splash/noticias/2021/03/10/qual-foi-a-mutreta-que-lula-acusa-globo-de-ter-feito-nas-eleicoes-de-1989.htm).

Contudo, a Globo e outras grandes emissoras sempre tiveram suas concessões públicas renovadas sistematicamente. As concessões públicas no Brasil são como uma moeda política: o governo concede, as emissoras recebem e a contrapartida se dá na troca de apoio e retribuição de determinados interesses. Nesse sentido, cabe questionar se há de fato uma discussão séria no país acerca das concessões públicas e cumprimento da lei por parte das emissoras de televisão no Brasil, ou se essas corporações sempre encontram uma forma de garantir seu espaço a despeito das regras do jogo democrático e republicano.

O avanço da internet e das plataformas digitais de comunicação e notícias fez avançar também, por um lado, a pluralidade de conteúdo – inclusive de canais alternativos aos discursos hegemônicos da grande mídia -, e por outro a vulnerabilidade do público em geral às investidas da desinformação e das notícias falsas. Ao mesmo tempo, e por causa do avanço desenfreado dos processos de desinformação, a importância do trabalho jornalístico também se revigora, pois passa a ter um novo papel nesse contexto.

A todo momento diversos conteúdos circulam no ambiente digital. Essa mudança do paradigma comunicacional, que é potencializada pelas redes sociais e pela veloz inovação tecnológica, está diretamente relacionada à crise de credibilidade que vive a imprensa tradicional. Contudo, é possível questionar se a ascensão do debate acerca da desinformação e das notícias falsas também não pode reforçar a necessidade e a importância do trabalho jornalístico profissional, pois o jornalista tem a competência para fazer a seleção e checagem dos fatos que serão noticiados.

Diante da complexidade desse cenário, em que a própria noção de realidade e os rumos do país estão em jogo, não é mais cabível que os veículos de comunicação brasileiros de comportem como meros porta-vozes do poder, como observamos em diversas ocasiões na história do Brasil contemporâneo. Mais do que nunca, o telejornalismo profissional precisa ter compromisso com o Estado Democrático de Direito e com o debate público honesto, e as concessões públicas de comunicação devem ser levadas a sério. A pandemia da Covid-19 trouxe à tona por todo o mundo o debate intenso sobre temas científicos, especialmente sobre saúde pública e biociências, que são técnicos e relativamente estranhos ao público mais amplo. Se por um lado isso leva informações novas e conhecimento a esse público, por outro lado são lançados no debate público ferozes ataques de desinformação e de negação da credibilidade da ciência.

Esses ataques servem apenas a quem quer validar o discurso irresponsável e igualmente mentiroso que vem partindo do Gover-

no Federal desde o início dessa monumental crise, seguindo incessante em sua cruzada pelo enfraquecimento das instituições republicanas e pelo fortalecimento do culto à sua imagem de mito perante seus convertidos. Ressalta-se, ainda, que os fatos recentemente revelados pela CPI da Pandemia no Senado sugerem que por trás do negacionismo inconsequente há também o negocionismo, com transações no Ministério da Saúde típicas do subterrâneo da política brasileira (https://www.cartacapital.com.br/politica/ luis-miranda-reforca-a-pf-que-avisou-bolsonaro-sobre-corrupcao-na-compra-de-vacinas/), o que tem inclusive mudado a percepção do público geral sobre o discurso hipócrita anticorrupção.

Contudo, ainda seria compreensível se esses ataques à ciência, às vacinas e a proliferação de discursos mentirosos como do suposto tratamento precoce para Covid-19 ficassem restritos aos círculos informacionais do bolsonarismo e suas cercanias. O absurdo vem à luz quando observamos a defesa de teses mentirosas e a distorção de informações relevantes para a saúde pública, ao vivo, em pleno programa telejornalístico de uma grande emissora de televisão (https://www.uol.com.br/splash/colunas/ alineramos/2021/06/13/negacionismo-de-alexandre-garcia-compromete-credibilidade-da-cnn.htm). A concessão de espaço na televisão a defensores ferrenhos das teses inconsequentes do bolsonarismo sobre a pandemia, muitos deles com credencial de jornalista, fornece o material perfeito para que os celerados de extrema-direita celebrem suas desinformações perigosas como algo chancelado pelo jornalismo profissional, ou ao menos como sendo uma opinião legítima.

Mais uma vez vale destacar que por trás do negacionismo há sempre o negocionismo. Tanto os jornalistas de grandes emissoras quanto os influenciadores digitais que defendem os interesses políticos e as mentiras do bolsonarismo, foram flagrados recebendo pagamentos do Governo Federal. De fato, não se pode afirmar de forma clara a presença de ilegalidade nesses pagamentos, mas pode-se constatar com toda a certeza que esses indivíduos são “gargantas de aluguel” perigosos à segurança sanitária da população.

Até quando vamos tolerar que concessionárias de rádio e televisão coloquem à disposição da desinformação, do discurso anticientífico, do negacionismo das vacinas e da defesa de remédios imprestáveis um espaço tão importante para a divulgação de informações com credibilidade e seriedade? Até quando vamos colocar essa desinformação em um grau de equivalência com a sensatez, como se fossem “os dois lados”? Nessa toada de normalização do absurdo, não seria tão surpreendente se fossem colocados no telejornal um judeu e um nazista para discutirem o holocausto pelos “dois lados” e isso fosse chamado de “O Grande Debate”.

Em um mundo onde a diversidade informacional atinge um patamar nunca antes visto, em decorrência do avanço da internet e das redes sociais, cabe indagar se o Brasil tem levado a sério o debate sobre a real importância do trabalho jornalístico para a garantia da verdade e da democracia. A pós-verdade vêm tomando espaço a cada dia, e sem o compromisso dos veículos de telejornalismo com a verdade, ela pode tomar todo ou quase todo o debate público.

A construção desse compromisso não se dá somente por reposicionamentos e autocríticas pontuais, mas pela ampla discussão na sociedade civil e nos parlamentos acerca do papel e das obrigações das instituições da imprensa. O que é relatado sobre o mundo e mostrado na TV deve ser contextualizado. O papel central ocupado pelo telejornalismo na atualidade deve ser valorizado e destacado. Contudo, é necessário também cobrar responsabilidade e postura ética dos responsáveis pela informação que será distribuída à sociedade.

Assim, com os riscos reais ao ambiente democrático que observamos hoje, não podemos nos dar ao luxo de ter uma imprensa, sobretudo o telejornalismo das grandes emissoras, que seja descompromissada com a garantia da democracia, da apuração rigorosa dos fatos e informações. E isso passa por levarmos a sério a avaliação das concessões públicas e o combate a desinformação.

Adriano Rodrigues de Oliveira é graduado em Gestão de Políticas Públicas pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) com especialização pela Pós-Graduação Lato Sensu em Comunicação Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Email: adri_oliveira93@ hotmail.com