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Perfil Zélia

Inquietude,teu nome é Zélia.

Arte, ativismo e educação marcam a vida de Zélia Amador de Deus. Sua trajetória foi homenageada em um curta-metragem.

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Inquieta, questionadora, insatisfeita. Foi assim que a professora Zélia Amador de Deus se definiu. Ela recebeu a equipe em sua casa, na semana em que fez aniversário e recebeu um prêmio internacional em reconhecimento por suas ações para os direitos humanos. Ela também se tornou tema de documentário e será homenageada por uma escola de samba de Belém. E tudo isso não foi conquistado à toa.

A vida da ativista-artista-professora é voltada para e marcada pela educação. “Eu não saberia ser outra coisa na vida, sem ser professora. Eu gosto de ser professora. Sempre gostei. Eu tive a oportunidade de fazer Direito, mas optei por fazer Letras. Fiz Teatro. Não me arrependo de nada e faria tudo de novo!”, afirma Zélia.

Mas tudo começou com o ativismo e ainda na infância. Nascida em Soure, cidade do arquipélago do Marajó, ela veio para Belém por decisão e esforço da avó, Francisca. “Aprendi com ela que eu era preta e que eu não era pior do que ninguém e ninguém era melhor que eu. Ela dizia: ‘tu és preta e vais estudar’. Ela fez toda a movimentação para que eu saísse de lá. Ela dizia que não queria para mim o mesmo destino da minha mãe. Quando nasci, minha mãe tinha acabado de fazer 15 anos de idade. Aprendi desde cedo o que era ser preta e acredito que foi uma grande sorte. Porque, normalmente, as pessoas criavam crianças negras, sem dizer que elas eram negras e que por isso, elas passariam por situações ruins”, analisa.

Mas do aprendizado com avó veio também muita observação e experiências, que marcariam a vida da professora. “Sempre fui uma pessoa intrinsecamente questionadora; questionava desde cedo. A minha avó dizia que eu não podia fazer algo. Aparentemente, eu acatava, mas eu ia por trás fazendo a minha experiência. De coisas simples como ‘não pode comer manga e tomar a açaí’. ‘Não pode tomar vinho de cupuaçu e tomar açaí’. Embora uma questionadora assim: parecia que eu acatava, mas eu ia experimentar depois”, diverte-se.

Como estudante secundarista, começou a se envolver no movimento estudantil. Por essa época, já tinha experiência escrevendo, produzindo e dirigindo peças para a paróquia. “Tudo surgiu dessa minha inquietação, desde cedo. Eu era muito pobre e questionava a pobreza. Não achava que seria pobre para sempre. Não achava que a pobreza era justa. Eu era insatisfeita com a vida que tinha. Insatisfeita sempre! Até hoje sou uma pessoa insatisfeita. O que faço é lutar para que a minha satisfação minimamente se conforme. O que é mais interessante é que nesse processo de insatisfação, tu consegues dar um passinho. Aí, queres mais sempre. Acho que isso sempre fez parte de mim, por isso nunca parei”, explica Zélia, que atualmente está na coordenação da Assessoria de Diversidade e Inclusão Social da UFPA.

Devido à rotina, ela diminuiu o tempo dedicado ao Teatro, mas pontua que esse é um âmbito importante de sua vida. “O Teatro me ajudou muito a ser quem eu sou. Já fazia teatro de paróquia. Mas no primeiro ano da graduação em Letras, entrei também na escola para ser atriz e foi uma espécie de terapia para mim, para que eu me afirmasse como uma mulher negra, para que eu cada vez mais afirmasse o meu corpo”, pontua.

Co- fundadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), ela continua inteira e entregue às lutas coletivas. “O movimento tem tido vitórias porque nunca age uma pessoa única. É sempre um trabalho coletivo, é sempre um trabalho que junta a resistência de todas as pessoas negras, que, em um determinado momento, tomaram consciência de que têm que lutar para recuperar a humanidade que foi arrancada. Desde o porão

dos navios negreiros, esse trabalho já iniciava, e temos a tarefa de continuar com ele”, afirma a ativista.

Zélia tornou-se professora da UFPA em 1978 e é uma das fundadoras do Grupo de Estudos Afroamazônico (Geam), que foi o responsável pelo projeto de cotas raciais na Instituição. “Nós temos que estar na universidade e a nossa presença tem forçado a universidade a mudar. Hoje, todas as universidades falam em descolonizar a educação, em saberes outros para além dos de origem europeia. Isso graças aos que estavam historicamente longe das universidades, que não entram sozinhos; você carrega no corpo, histórias, memórias. Por isso as cotas são importantes. Quando você entra sozinho é mais fácil subsumir, mas com um grupo maior é mais fácil se afirmar”, destaca a professora emérita da Instituição, que adota a reserva de vagas desde 2013.

Seu nome é uma referência quando se debate políticas afirmativas no Brasil, e para ela, essa é uma das grandes vitórias para a sociedade. “A aprovação da lei de cotas é fruto de uma luta histórica do movimento negro. A branquidade racializou os negros, os indígenas, mas ela não tem raça, ela não precisa de raça, é algo que não diz respeito a ela. É nessa hora que a branquidade começa a pensar em raça e começar a falar. É quando sai do seu silêncio secular. Para falar e garantir o que historicamente era direito exclusivo dela: as vagas em universidades públicas. E ainda descobrem o branco pobre, que estava secularmente na sociedade brasileira, mas não era enxergado. Só passou a ser visto quando o movimento negro vem para a cena com a reivindicação de cotas para negras e negros”, analisa a intelectual, explicando que, ao contrário de outros estudiosos, não usa o termo branquitude, para que não seja confundido como o antônimo de negritude. “A negritude é um processo de luta, já a branquidade está posta desde a colonização. Nenhum branco precisou lutar para se afirmar como branco”.

Amador, Zélia

Foi a atriz Zélia Amador quem primeiro tocou o jornalista Ismael Machado. Ele ainda era adolescente quando começou a frequentar o Teatro Waldemar Henrique e a conheceu. Como estudante universitário, ele a encontrou no espaço acadêmico, como professora da UFPA. Depois, como profissional, ela se tornou fonte de matérias. “Eu tive uma matéria indicada ao prêmio Abdias Nascimento, em que Zélia foi uma das entrevistadas. Ela deixou de ser só uma fonte e passou a ser alguém mais próximo, por quem sempre tive respeito e admiração”, confessa o jornalista e roteirista paraense.

No ano passado, em meio à pandemia, ele, ao lado de outros profissionais, iniciaram uma produtora, a Floresta Urbana. A empresa submeteu um projeto e foi contemplada no edital de cultura afro da Lei Aldir Blanc, viabilizado pela Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (FADESP), em parceria com a Secretaria de Estado de Cultura (Secult). “Já fizeram matérias e vários trabalhos sobre ela, mas nunca houve um documentário. Antes de começar, eu liguei para ela e pedi autorização. E nunca vou esquecer a resposta dela: pode, só não sei se vai dar caldo”, diverte-se o jornalista.

Em pouco mais de 22 minutos, a trajetória de Zélia foi contada, desde o Marajó até os dias de hoje. Machado comenta que começou o roteiro, mas no meio achou que “estava chato” e reescreveu. Os recursos do edital proporcionaram a remuneração de 15 pessoas. “Isso tudo deu sentido social para o que fizemos e estamos felizes com o resultado. Só na noite de lançamento foram mais de três minutos de aplausos. O trabalho tem repercutido não só no Pará, mas em outros estados e até fora do país. Não era para ser polêmico; era para ser uma homenagem, e conseguimos em uma linguagem que não ficou cansativa. A Zélia tem uma importância muito grande nos espaços por onde anda, porque ela abre caminhos. Na universidade, por exemplo, ela acaba servindo de espelho e de referência”, destaca. O documentário está disponível gratuitamente no site com o mesmo nome do curta e no Youtube.

Acesse o QR ao lado para ver o documentário.