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GAZETAS
GAZETAS DESENGAVETANDO O POEMA
Na Fundação Casa...
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- Quem gosta de poesia? - Ninguém, senhor.
Aí recitei “Negro drama” dos Racionais.
- Senhor, isso é poesia? - É. - Então nóis gosta.
É isso. Todo mundo gosta de poesia. Só não sabe que gosta.
Sérgio Vaz
por Marcelly Maria Souza da Cruz
Não precisa ser um expert em questões sociais para se ter ideia do atual cenário brasileiro. Segundo a ONU, ocupamos o sétimo lugar no ranking mundial de desigualdades sociais. Aqui, as pessoas são privadas todos os dias, desde seu nascimento, de direitos básicos que deveriam ser garantidos a todos. Elas convivem com a fome, a falta de saneamento básico, dificuldades de acesso à saúde e à educação, dentre vários outros problemas. Dessa forma, inseridos nessa rotina de “sobrevivência”, são reduzidos os espaços e o tempo para temas relacionados à arte e cultura, como a poesia. O que é entendido por arte e cultura, aliás, é algo bem específico e que cria mais um espaço de exclusão. Falando especialmente de poesia, o “Eu-lírico” que figura nas estantes das livrarias e espaço escolar parece ter sido definido exclusivamente por e para pessoas brancas e com melhores condições financeiras. Enxergamos isso nos grandes nomes da nossa poesia do século XX, por exemplo. Se me permite duas perguntas, você consegue citar nomes de poetas negros, de classe baixa ou pertencentes a outro grupo de desprivilegiados que sejam destaque nesse período? Que façam parte dos manuais de literatura e sejam estudados na escola? Talvez você até se lembre de alguns nomes, mas são bem poucos, afinal, a maioria dos autores se encaixa em um certo “nicho” social. A questão é que esse modelo continua se reproduzindo. Chegamos ao século XXI com pessoas que ainda vivem sem espaços de expressão, acesso, representatividade e que não se sentem pertencentes ao mundo poético. O que ocorre aqui é um processo de desumanização daqueles que têm pouco, que os priva de ter voz e lugar de fala, através da escrita. É comum termos acesso apenas a um tipo de poesia específica nas escolas, por exemplo, dita de “prestígio”, mas que nem sempre conversa com quem está sentado em uma carteira após horas de trabalho nem com alguém que tente encaixar a poesia e literatura às suas precariedades cotidianas. Tudo isso dificulta a produção artística destes grupos e, obviamente, a visibilidade posterior. Pode-se pensar que debates como esse são desnecessários, inúteis e precisam ser tratados como secundários, pois o foco deveria ser em coisas materiais que tragam algum “benefício” a estas pessoas marginalizadas. Porém, a cultura, a arte e a literatura também são direitos. É preciso garantir o que consta na Declaração dos Direitos Humanos: “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”. Logo, é essencial defender o acesso e a produção de cultura dentro das margens sociais. Não só porque é um direito, mas também porque tais conhecimentos são necessários para a formação humana. Para Nuccio Ordine, em A utilidade do inútil, “há saberes que têm um fim em si mesmos e que – exatamente graças à sua natureza gratuita e livre de interesses, distante de qualquer vínculo prático e comercial – podem desempenhar um papel fundamental no cultivo do espírito e no crescimento civil e cultural da humanidade. Nesse sentido, considero útil tudo o que nos ajuda a nos tornarmos melhores.” Podemos, então, compreender que tais direitos são tão “úteis” quanto outros, como moradia, alimentação e etc., pois fazem parte da experiência humana, de nossa vida enquanto seres sociais. Ademais, é preciso compreender que a produção poética dentro desta realidade existe e que ela é útil tanto para quem a produz como para quem a usufrui. A poesia oferece a quem escreve a força da expressão, de se posicionar diante das coisas do mundo, de se tornar um indivíduo, ter seu espaço e ser reconhecido, e a quem lê a capacidade de criar empatia, se reconhecer no outro, desenvolvendo o conceito de alteridade. Por isso, privar as pessoas da vivência literária e da poesia é negar sua humanidade. Como disse Antonio Candido em O direito à literatura, “[a literatura] pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.” Poetas como Sérgio Vaz, que citei no início deste texto, produzem obras que possuem a capacidade de ser instrumento de libertação, autoconhecimento, vivência e resistência. É a partir desta escrita que novos debates sobre nossas construções sociais podem ser gerados, pois ela traz realidades que a burguesia ou aqueles que controlam as riquezas do país querem esconder. Isso é possível porque a linguagem tem este poder. No livro A origem dos outros, Toni Morrison afirma que “a linguagem (dizer, escutar, ler) pode incentivar, ou mesmo exigir a entrega, a eliminação das distâncias que nos separam, sejam elas continentais ou apenas um mesmo travesseiro, sejam distâncias de cultura ou as distinções e indistinções de idade ou gênero, sejam elas invenção social ou da biologia.” Detentores desta linguagem de que fala Morrison, os poetas das margens, sejam elas quais forem, são capazes de denunciar, explanar, quebrar padrões de opressão e diversificar o literário através de versos. Em meio ao caos do “desigual”, da tristeza da falta, não só de pão, mas de estrutura, conhecimento, oportunida-
des, igualdades e respeito, eles escrevem sobre o que vivem e o que veem. Reconhecem a existência de fronteiras reais e simbólicas entre as pessoas e buscam eliminá-las, abordando questões de negritude, gênero e classe. O resultado de tudo isso são poemas que conversam com a realidade de muitas pessoas, seja pelo conteúdo ou por sua linguagem própria, que traz a carga cultural daqueles que nunca tiveram voz na sociedade.
AIRAM, poema de Meimei Bastos diz:

acorda o mininu, ajeita o cabelo, confere o dinheiro / e saí. ponto cheio, ônibus lotado, trânsito parado, atraso no trabalho, desgosto do patrão, desconto no salário. vai faltar pro pão! tem problema não. no outro dia, segue pra sua missão. (...)
A autora retrata o dia a dia de várias mulheres brasileiras sem perder o teor literário. Com sua linguagem fora do padrão culto, tanto pelo conteúdo do que historicamente foi entendido como poético como pelo modo da sua escrita, a obra se torna muito importante, pois seu formato e seus “desvios” criam um diferencial dentro da nossa literatura e, principalmente, demarcam um espaço de identidade cultural. Infelizmente, esse espaço de identidade cultural, por mais signifi cativo que seja, não é reconhecido nem valorizado. Os autores e suas obras são jogados à margem das grandes editoras e os grandes meios midiáticos as ignoram como se não fossem arte e poesia. Com essa manobra, que escolhe o tipo de produção cultural a ser publicado, perdemos trabalhos importantes para nossos debates e essa produção literária fi ca invisível para grande parte da população. É lógico que a poesia, ou o direito à poesia, não vai mudar as difíceis circunstâncias que os menos favorecidos vivem, mas ela pode fazer com que as experiências que trazem deixem de ser invisíveis e que, assim, eles possam não ser mais assujeitados. E para quem a produz, pode sobretudo oferecer saídas e consolos, um lugar de expressão e fruição para deleite e resistência. Valorizar a produção poética das margens é contestar o que é publicado pelo grande mercado editorial e, por conseguinte, debatido nas escolas, diversifi cando os horizontes literários e abrindo caminhos para que aqueles que sempre foram fi gurantes tenham a oportunidade de também serem protagonistas da história. Quem sabe desta forma conseguiremos dar alguns passos para mudar a realidade desigual em que vivemos. Para os leitores de poesia, é tarefa já conhecida nadar contra a corrente e fazer com que essa produção saia das gavetas, combatendo o que Jairo Pinto identifi cou em Mercado editorial: “A grande editora / Acostumada a versos brancos / Viu na literatura negra / Poesia marginal / Engavetou.”
Marcelly Maria Souza da Cruz é estudante do Curso Técnico Integrado em Automação Industrial, do Instituto Federal do Paraná, Campus Telêmaco Borba.
>>> Gazetas Vozes do Invisível: poemas com raça, gênero e classe Indicação de Leitura


Organizada por Marcelly Maria Souza da Cruz, bolsista PIBIC-Jr, sob supervisão do professor Daniel Gonçalves, Vozes do Invisível é uma antologia de poesia brasileira contemporânea que aborda autores cujos textos tratam raça, gênero e classe de forma insterseccionalizada.
Disponível em: http://Bit.ly/ Vozesdoinvisivel



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O Slam é um bom caminho para conhecer a produção literária realizada pelas margens e também para participar dela. Vale a pena conferir se não existe algum grupo em sua cidade. Aqui, indico três grupos de Curitiba: @slamdasguriascwb, @slamcontrataque e @slamparaná.