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AGNES PELTON

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LEE KRASNER

LEE KRASNER

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The Primal Wing, 1933.

AGNES PELTON FOI UMA SIMBOLISTA VISIONÁRIA, QUE DESCREVIA A REALIDADE ESPIRITUAL QUE ELA VIVIA EM MOMENTOS DE QUIETUDE MEDITATIVA. A MOSTRA DESERT TRANSCENDENTALIST, NO WHITNEY MUSEUM DE NOVA YORK, OFERECE UMA IMPORTANTE OPORTUNIDADE PARA EXPERIMENTAR O TRABALHO DESTA ARTISTA, POUCO ANTES CONHECIDA, E CONTEMPLAR SEUS ESFORÇOS PARA ABRIR “JANELAS DE ILUMINAÇÃO” AO MUNDO ESPIRITUAL

POR GILBERT VICARIO

Agnes Pelton (1881-1961) se esforçou para retratar um reino espiritual além das aparências materiais. Sua descoberta artística veio em meados da década de 1920, em uma série de pinturas abstratas que retratam temas incorpóreos, como ar, luz, água e som. Nas décadas que se seguiram, quando começou a mergulhar no estudo das filosofias esotéricas e ocultas, seu imaginário evoluiu. Ela combinou o poder emotivo de formas abstratas etéreas, como véus delicados e cintilantes, com cores e símbolos místicos para representar a união com a “Realidade Divina” que ela experimentava em sonhos e meditação. Certa vez, ela descreveu seu processo de aplicar meticulosamente camadas finas de pigmento para criar tons luminosos como “pintar com a asa de uma mariposa e com música em vez de tinta”. Agnes recebeu pouco incentivo da crítica para suas pinturas abstratas durante a vida, talvez por estar longe dos centros da arte durante a maior parte de sua carreira, primeiro no relativamente isolado East End de Long Island e depois no deserto do sul da Califórnia. Para ganhar uma renda modesta, pintava retratos e paisagens realistas que vendia para amigos e turistas. Seu maior apoio veio de artistas do breve Grupo de Pintura Transcendental do Novo México (ativo entre 1938 e 1941), que compartilhava sua crença de que a arte abstrata poderia ser um veículo para transportar os espectadores para reinos iluminados.

Departure, 1952.

Room Decoration in Purple and Gray, 1917. The Wolfsonian—Florida International University, Miami Beach.

ANOS 1920

Agnes descreveu o mural , de 1917, como expressão de “crepúsculo em e a beleza poética da noite.” Foi o culminar de suas “pinturas imaginativas”, um grupo de obras que retratou figuras femininas em comunhão com a natureza em paisagens oníricas. Agnes alcançou algum sucesso em Nova York na década de 1910 com elas, mostrando duas na feira Armory Show, em 1913, e em uma coletiva seminal na prestigiosa Galeria Knoedler, em 1917. A artista se mudou para Water Mill, Nova York, em 1921, logo após a morte da mãe, com quem viveu a maior parte da vida. Em 1926, as linhas de forma livre no fundo da composição se tornariam os elementos centrais de suas pinturas abstratas. Temas aquáticos aparecem com frequência na obra de Agnes. Ela descreveu (1926), que apresenta cascatas de água e uma névoa opalescente, como “uma emanação de pensamento puro”. O título original da pintura, , sugere as energias benevolentes que animam e protegem a vida. Não tendo forma própria, mas assumindo a forma de seu recipiente, a água era o símbolo arquetípico de abnegação e aquiescência. Para a artista, a capacidade de a água mudar de forma significava transformação, crescimento psíquico e união espiritual.

The Fountains, 1926.

O tema de (1926), a primeira pintura totalmente abstrata da pintora, é o ar, cujas correntes se aglutinam em faixas circulares de cor. Como muitos artistas de sua geração, Agnes viu uma conexão entre a cor e a experiência da música. A música desempenhou um papel significativo no início da vida da artista. Sua mãe dirigia a Pelton School of Music, no Brooklyn, e Agnes estudou piano durante a adolescência. Ela escreveu em seu diário que o dinamismo de resultou da “interação de diferentes vibrações de cores – cores que chamam a atenção sucessivamente como sequência de sons na música”.

Being, 1926.

Estrelas se tornaram um motivo-chave em sua na obra no final dos anos 1920, concomitantemente com sua intensa investigação da prática espiritual conhecida como Agni Yoga, fundada em 1920 pelo teosofista russo Nicholas Roerich e Helena Roerich. No Agni Yoga, as estrelas são guias para o reino distante da iluminação espiritual, símbolos do conhecimento divino. Agnes escreveu sobre as estrelas como “mensageiros” da “luz transcendental, respondendo através da escuridão aos picos crescentes de aspiração”.

Acima: Sea Change, 1931. À direita: Ahmi in Egypt, 1931. Whitney Museum of American Art, New York.

ANOS 1930

Em (1931) é retratado o movimento da água, que a artista considerou uma metáfora para a transformação espiritual e a renúncia ao ego. Como muitos artistas de sua geração, ela foi profundamente influenciada por Wassily Kandinsky e seu livro de 1911, . Suas teorias afirmavam que a própria crença na espiritualidade era inerente à arte, bem como a necessidade de dispensar o realismo em favor da pintura daquilo que o artista russo chamou de “vibrações da alma”. Como Kandinsky, Agnes acreditava que a arte comunica as energias universais do mundo visível e invisível por meio da cor, que funciona como “voz” ou uma “vibração” que preenche a consciência do espectador. Em seu diário, ela descreveu o azul nesta pintura como uma “cor emotiva de corpo astral e onda astral” e o azul claro como um “azul místico. . . astral e espiritual.” Os sonhos e visões que Agnes retratou em suas pinturas geralmente assumiam a forma narrativa. Em Ahmi no Egito (1931), um cisne branco – um símbolo tradicional para o corpo feminino – navega em um rio da vida vermelho-sangue, do caos escuro das preocupações terrenas à transcendência e iluminação final, representada pela estrela à distância.

Sem titulo . À esquerda: E Deus fez a mulher.

Montanhas, para Agnes, simbolizavam o crescimento pessoal. Em (1932), ela ressalta seu poder transformador, retratando-as como hospedeiros de chamas ascendentes, que eram centrais para Agni Yoga, uma disciplina espiritual baseada no fogo como uma metáfora para a poderosa força interior desmaterializada que pode guiar cada indivíduo para uma consciência superior. Inspirada por seu estudo da disciplina, Agnes incluiu imagens de fogo em várias de suas obras para significar o “fogo criativo do Universo” dentro de si mesma e nos outros. Como ela notou em seu diário, “No mundo do fogo, percebi a beleza no abstrato como uma força viva”. Agnes criou (1932) vários dias depois de se mudar de Long Island para Cathedral City, Califórnia, uma pequena comunidade perto de Palm Springs, onde ela testemunhou uma tempestade de areia cuja falta de forma a fascinou. Ela descreveu a imagem central da pintura como um “pálido, céu azul claro” rodeado por nuvens “vistas através da areia”. O arco-íris abaixo dessa imagem simboliza a benevolência essencial que ela viu no universo. Para o resto da vida, Agnes derivou inspiração da vasta extensão do deserto. (1933), retrata a força feminina divina do universo, ou Mãe do Mundo, como é conhecida na Teosofia. Agnes retrata a figura como um “Anjo Poderoso” em um trono de jade, circundado por um brilho etéreo. Para ela, a imagem era uma presença viva à qual ela poderia recorrer em busca de orientação.

Mother of Silence, 1933. À direita: Sand Storm, 1932.

Em (1934), um brilho interno ilumina uma urna de cerâmica, usada em muitas religiões para conter as cinzas dos mortos. A artista originalmente chamou a obra de , sugerindo que essa luz simboliza a unidade com o fogo divino na vida após a morte. Como muitas das pinturas de Agnes, funciona como um ícone cristão ortodoxo, oferecendo aos espectadores um vislumbre do reino divino que aguarda aqueles que buscam a iluminação enquanto estão na terra. é o nome comum para o serviço religioso cristão anglicano realizado no final da tarde ou início da noite que envolve canto e música. A referência de Agnes em seu título reforça a conexão da pintura com a oração e a vida após a morte. Na pintura, (1938), inicialmente intitulada , a forma triangular projetando-se da paisagem congelada e apontando para uma estrela brilhante sinaliza um movimento espiritual de problemas mundanos em direção a um plano superior de consciência. A imagem reflete o entendimento de Agnes de que as lutas na terra devem ser transcendidas para atingir a iluminação divina.

ANOS 1940

Agnes pintou (1941) como “uma espécie de Progresso do Peregrino’”, um guia para os espectadores desde o caos do mundo terreno até o reino da iluminação. Para alcançar a “montanha da aspiração” a distância, era preciso viajar “através da escuridão e da opressão, através de um deserto pedregoso. . . Através de um arco simbólico é vista uma montanha de visão, acima da qual se abrem gradualmente, janelas de iluminação.”

Even Song, 1934 Future, 1941

Flutuando no espaço liminar entre a terra e o céu, os quatro retângulos brilhantes na imagem representam quartos iluminados oferecendo consolo e conforto. Para entrar neles, primeiro era necessário passar por “pilares não pesados, mas sólidos, de formas parecidas com pedras”. – 1943 – é uma homenagem ao pai, que morreu de overdose de morfina quando a artista tinha dez anos. A pintura simboliza seu renascimento iluminado, a forma retangular escura de seu corpo na parte inferior da tela convocada para despertar para uma nova vida por uma “flor de trombeta dourada... emitindo luz e som.” No meio da imagem, entre as estrelas luminosas e a distante “montanha da liberação”, uma forma horizontal se eleva, simbolizando as “tragédias passadas” de seu pai. Como Agnes escreveu em seu diário, “As estrelas aparecem, e a figura enterrada abaixo da montanha roxa responde à luz de um novo dia”. No centro de várias das últimas obras de Agnes –(1950), (1952) e (1960-1961) – está a forma do círculo, uma forma sem começo e sem fim. Tem sido frequentemente usado por artistas para sugerir infinito e harmonia autocontida. Não é de surpreender, dada a crença de Agnes de que a arte deve transmitir “a interpretação das possibilidades superiores de visão”, que ela incorporasse círculos em suas composições, como em , onde um deles aparece como uma luz calma no centro de uma tempestade. Agnes morreu em 1961, aos 79 anos. Em 2013, foi fundada a Agnes Pelton Society para promover a vida e o legado da artista.

AGNES PELTON: DESERT TRANSCENDENTALIST • WHITNEY MUSEUM • NOVA YORK • 13/3 A 01/11/2020

Gilbert Vicario é vice-Diretor de Assuntos Curatoriais e Curador-chefe da Família Selig no Museu de Arte de Phoenix.

Awakening (Memory of Father), 1943

REF lexo

JACOB lawrence,

MET MUSEUM APRESENTA UMA SÉRIE POUCO VISTA DE PINTURAS DO ICÔNICO MODERNISTA AMERICANO JACOB LAWRENCE. A SÉRIE ABRANGE TEMAS DA COLONIZAÇÃO EUROPEIA À PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL. A INTENÇÃO ERA RETRATAR, NAS PALAVRAS DO ARTISTA, "AS LUTAS DE UM POVO PARA CRIAR UMA NAÇÃO E SUA TENTATIVA DE CONSTRUIR UMA DEMOCRACIA”

POR ELISABETH HUTTON TURNER

– Jacob Lawrence (1954).

Pela primeira vez, em mais de 60 anos, esta exposição reúne os painéis de (1954-1956), uma série importante, embora subestimada, do célebre artista moderno Jacob Lawrence. Originalmente concebida como 60 obras, abrangendo temas desde a colonização europeia até a Primeira Guerra Mundial, a série resultou em trinta pinturas em têmpera em pequena escala que representam momentos históricos familiares e desconhecidos da história dos Estados Unidos, de 1775 a 1817 – desde o famoso discurso de “liberdade”, de Patrick Henry, até a expansão para o Oeste. Em seu retrato ambicioso desses episódios, Jacob põe em primeiro plano as experiências de mulheres e negros. O estilo angular e dinâmico de suas imagens –compactadas espacialmente para efeito máximo –enfatiza o conflito violento e o sacrifício. Como um pintor negro socialmente engajado e abraçado por críticos de esquerda, Lawrence viveu e trabalhou sob a vigilância do FBI. Além disso, em maio de 1954, a decisão da Suprema Corte exigiu a dessegregação das escolas públicas, catalisando o movimento pelos direitos civis. Nesse contexto, o projeto de Lawrence liga as lutas americanas passadas e presentes que ainda ressoam poderosamente hoje.

We have no property! We have no wives! No children! We have no city! No country! — petition of many slaves, 1773 , Panel 5, 1955. © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/Artists Rights Society (ARS), New York. Foto by Bob Packert/PEM.

Massacre in Boston , Panel 2, 1954-55. © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/Artists Rights Society (ARS), New York. Photo by Bob Packert/PEM

Em uma noite de inverno, em 1770, um esquadrão de soldados britânicos abriu fogo contra um grupo agitado de colonos do lado de fora da Alfândega de Boston. Ressentidos com as restrições da Coroa aos seus direitos, eles zombaram e atiraram pedras nos casacas vermelhas. O tiroteio estourou e cinco americanos morreram na confusão. A eletrizante figuração de Lawrence colocou em primeiro plano Crispus Attucks, um marinheiro de ascendência africana e , que escapou da escravidão para se juntar à causa dos patriotas. Ele se tornou o primeiro mártir da Revolução Americana. Lawrence imaginou o herói agachado no centro da composição, segurando o peito e vomitando sangue. O artista não citou Attucks pelo nome, mas a figura histórica foi bem documentada em um arquivo da Biblioteca Schomburg, no Harlem, onde Lawrence conduziu suas pesquisas.

Paul Revere (1954). Na noite de 18 de abril de 1775, Paul Revere, um ourives e revolucionário, escapou por pouco da captura enquanto cavalgava pelas linhas inimigas pelo leste de Massachusetts para avisar aos residentes que as tropas britânicas estavam

Acima: Defeat, Panel 9, 1954 e I alarmed almost every house till I got to Lexington.—Paul Revere , Panel 4, 1954. © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/ARS, New York.

chegando. Revere relembrou os eventos em uma carta de 1798 da qual Lawrence extraiu seu título. Nesse painel, o artista representou o momento em que o patriota fez uma pausa para sussurrar informações militares ao capitão dos milicianos. Uma capa negra com o cavalo galopando no centro da cena frenética camufla Revere e seus movimentos clandestinos, enquanto várias figuras empunham armas dramaticamente.

Quando o general George Washington não conseguiu reconquistar a Filadélfia dos britânicos, em setembro de 1777, ele liderou o exército continental em retirada para um acampamento em Valley Forge, a noroeste da cidade. Neste painel, Lawrence explora o preço que esses contratempos militares e o clima brutal de inverno cobraram das tropas americanas durante sua estada de seis meses. As figuras enfaixadas e ensanguentadas no fundo – emolduradas por baionetas descartadas – se afastam do símbolo de sua derrota violenta, um valioso cavalo de guerra, respeitosamente coberto enquanto seu sangue se esvai. Em sua finalidade enfática, o título de uma palavra de Lawrence reforça esse ponto baixo na guerra.

Peace , Panel 26, 1956, © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/Artists Rights Society (ARS), New York.

And a Woman Mans a Cannon , Panel 12, 1955. Abaixo: We crossed the River at McKonkey’s Ferry 9 miles above Trenton . . . Panel 10, 1954 © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/ARS, New York.

Lawrence contou com as observações em primeira mão do assessor militar do general George Washington, Tench Tilghman, para descrever a experiência precária dos homens que cruzaram o rio Delaware na noite de 25 de dezembro de 1776. Seu ataque surpresa às forças de Hessian em Trenton, Nova Jersey, levou a um ponto de inflexão na luta revolucionária. Lawrence reinventou a cena canônica como três pequenos barcos densamente lotados, lançados por águas agitadas de inverno. Fundidos em planos interligados, as figuras fortemente camufladas parecem congeladas em um estado agitado. Ao privilegiar homens desconhecidos, Lawrence cria um forte contraste com a narrativa popular que celebra Washington à frente da façanha.

, Cochran Corbin lutou com o marido canhoneiro na Batalha de Fort Washington, no que hoje é Upper Manhattan. Tomando o lugar do marido no canhão, ela atirou bravamente até ser ferida e capturada. Corbin depois se juntou ao “Regimento Inválido”, em West Point. Lutou como uma veterana deficiente, vivendo a maior parte de sua vida na pobreza. Em 1926, tornou-se a primeira mulher enterrada com todas as honras militares em West Point. Mais de 50 anos depois, o Conselho da Cidade de Nova York nomeou em sua homenagem uma praça e dirigiu de lá até o local da batalha – ainda chamado de Fort Tryon Park, em homenagem ao último governador colonial britânico. Destacando seu interesse pelo papel das mulheres na história americana, Lawrence apresenta Corbin como uma heroína comandante, ancorando o flanco esquerdo dos soldados em disparo, enquanto o marido morto está a seus pés.

Georges Seurat, Un dimanche après-midi sur l'île de la Grande Jatte, Etude, 1884 © The Metropolitan Museum of Art, Dist. RMN-Grand Palais / image of the MMA

Henri Matisse, Intérieur à la fillette (La Lecture), 1905-1906 New York, The Museum of Modern Art, don de Mr. and Mrs. David Rockefeller, 1991. Foto © Paige Knight © Succession H. Matisse

In all your intercourse with the natives, treat them in the most friendly and conciliatory manner which their own conduct will admit . . . Panel 18, 1956. © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/ARS, New York.

Victory and Defeat , Panel 13, 1955. Foto: Bob Packert/PEM

. Neste painel impressionante, Lawrence retrata uma parede impenetrável de 22 balas de canhão pretas para simbolizar o cerco de 22 dias em Yorktown, Virgínia, no qual as tropas americanas forçaram os britânicos que ocupavam a cidade a se render. Essa batalha, celebrada pela liderança heroica de Alexander Hamilton e do Marquês de Lafayette, efetivamente encerrou a Revolução Americana. A parede de Lawrence também serve como pano de fundo para a troca de espadas entre dois delegados em nome de George Washington e do general britânico Charles Cornwallis. O artista se concentrou nessa transferência iminente de poder e resolução pacífica criando um espaço entre o casaca vermelha segurando a espada e a mão aberta de um patriota invisível, emoldurados contra um céu cheio de nuvens que simboliza um futuro promissor.

O título deste painel vem de uma carta que o presidente Thomas Jefferson escreveu ao capitão Meriwether Lewis e ao segundotenente William Clark, que lideravam uma expedição pelo Oeste americano. Apesar do desprezo geral de Jefferson pelos direitos indígenas, ele pediu que os exploradores abordassem os povos indígenas com respeito cauteloso – para fazer amizade com eles, tentar desenvolver relações comerciais e coletar artefatos. A pintura apresenta a tradutora e guia da expedição, uma mulher, Lemhi Shoshone, chamada Sacagawea, em um momento de reconhecimento que Clark registrou em um diário em 13 de agosto de 1805. Depois que o grupo encontrou os Shoshone (na atual Idaho), Sacagawea reconheceu seu irmão, o chefe Cameahwait, de quem ela estava separada desde a infância. Lawrence retratou os irmãos vestidos de vermelho e azul vibrantes, imaginando uma reunião terna ao unir suas formas colunares fortes.

Elisabeth Turner é historiadora de arte, curadora e autora do livro Jacob Lawrence: the migration series. JACOB LAWRENCE: THE AMERICAN STRUGGLE • MET • NOVA YORK • 29/8 A 01/11/2020

relevo ALTO

Floating head, Mary Taylor, New York, 1933. © Lee Miller Archives England 2020.

ELISABETH LEE

ELISABETH LEE

, miller

ELIZABETH "LEE" MILLER FOI UMA FOTÓGRAFA NOTÁVEL E UMA MULHER FORTE E MODERNA. COMO MUSA, ELA INFLUENCIOU O SURREALISTA MAN RAY - E O DEIXOU EM FAVOR DE SUA PRÓPRIA CARREIRA. MILLER NÃO SE PREOCUPOU COM CONVENÇÕES, SEJA PRIVADA OU PROFISSIONALMENTE, E SEGUIU SEU PRÓPRIO CAMINHO COMO ARTISTA, FOTÓGRAFA E REPÓRTER DE GUERRA. SUAS FOTOS DE CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO, QUE DOCUMENTAM O HORROR E A LOUCURA DA GUERRA COM UMA VISÃO SURREALISTA, SÃO INESQUECÍVEIS

POR DRIKA OLIVEIRA

Reaberto em maio de 2020, o Museum fur Gestaltung-Zurich apresenta a exposição . Com curadoria de Karin Gimmi e Daniel Blochwitz, a mostra ficará aberta até janeiro de 2021, no prédio Toni-Areal. É a primeira vez que o trabalho de Lee Miller é apresentado na Suíça. O público poderá ver cerca de 200 fotografias da trajetória de Lee, desde as imagens mais famosas de seu tempo, como modelo da revista , àquelas descobertas no sótão da casa em que morava somente após seu falecimento. Estas últimas fazem parte de um acervo com aproximadamente 60 mil documentos fotográficos produzidos por Lee Miller e, mais tarde, escondidos por ela como algo que se quer esquecer. Talvez por ter visto muito de perto aquilo que fotografou, Lee Miller quis perder algo de vista. Ela contava que as fotografias tinham sido destruídas durante a Segunda Guerra. As fotos foram descobertas por Antony Penrose, filho único de Lee Miller, quando ele já era adulto. Ao descobri-las no meio de câmeras, cartas, manuscritos e alguns objetos pessoais, como o uniforme do exército americano, ele redescobriu também a própria mãe. Hoje, Antony Penrose é diretor do , um arquivo privado em Londres que

Fire masks, London, 1941. © Lee Miller Archives England 2020.

David E. Scherman, dressed for war, London, 1942. © Lee Miller Archives England 2020.

se dedica a conservar, catalogar e publicar as obras de Lee Miller e outros artistas ligados a ela. A casa é aberta ao público: um esforço consciente de preservação da obra de Lee, por meio não só da conservação física do acervo, mas, principalmente, por torná-lo acessível. Lee Miller nasceu em 1907, em Poughkeepsie, Nova York. Com apenas 19 anos, foi modelo da revista de moda , a convite de Condé Montrose Nast, fundador da conhecida editora Conde Nast. Nos anos 1920, ela foi capa de uma das publicações mais importantes do período , ilustrada pelo artista George Lepape. À altura de grandes musas do cinema silencioso, como Greta Garbo e Clara Bow, Lee Miller rapidamente se tornou uma das modelos mais bemsucedidas da época. Ela também trabalhou com fotógrafos renomados como, Edward Steichen e Nickolas Muray, e teve incontáveis aparições em revistas de moda. Em 1928, em virtude de uma foto dela publicada em um anúncio de absorventes menstruais, Lee Miller foi muito criticada. Na época, a atribuição de uma mulher “decente” a um anúncio como esse – e o próprio assunto da menstruação em si – era (ainda é) um enorme tabu. Como em um impulso de libertação de sua própria imagem, associada à idealização do corpo de mulher (e não à fisiologia desse corpo), Lee Miller deixou a carreira de modelo para estudar arte.

Lee Miller e Man-Ray, Retrato solarizado de Lee Miller © Lee Miller Archives England 2020.

Já no fim dos anos 1930, ela se mudou para Paris e abriu o próprio estúdio, tornando-se uma fotógrafa de moda e realizando trabalhos relevantes dentro do movimento surrealista. Em Paris, Lee Miller conheceu o pintor e fotógrafo surrealista Man Ray, com quem trabalhou por alguns anos, além de se envolver afetivamente com ele. A relação com Man Ray foi um marco na carreira de Lee Miller. Ela foi modelo principal dele em diversas fotografias e, juntos, redescobriram a técnica da “solarização”, ou “efeito ”, inventado em 1862 pelo francês Armand Sabattier. A solarização consiste na inversão tonal de certas áreas da fotografia e é obtida por meio de uma rápida exposição à luz durante o processo de revelação. O resultado é uma foto que está entre o negativo e o positivo: há um efeito de descolamento da imagem dela mesma por meio de uma linha luminosa, uma espécie de contraluz químico. Muito embora a solarização tenha sido descoberta junto a Lee Miller, a técnica é mais atribuída ao nome de Man Ray –algo bastante comum quando se revisita a história de mulheres que trabalharam com homens célebres. Lee Miller se debruçou mais sobre o estilo surrealista. Em , por exemplo, a cabeça de Mary Taylor, uma jovem atriz da Broadway, parece não ter corpo. Ela está mergulhada em uma escuridão que delineia o rosto dela e a faz saltar da própria imagem. Há algo de fantasmagórico nessa mulher sem corpo, ela parece ter saído de um mar escuro, cujos detalhes não se consegue ver – como o nascimento de uma Vênus surrealista. O surrealismo revolve em torno de um inconsciente, do estranho que habita o familiar. Assim, por meio da fotografia, ligada a uma realidade material e visível, Lee Miller é capaz de revelar também o que não é visível. Por exemplo, em , vemos um corpo sem membros e sem cabeça: um recorte de corpo. Esse processo de fragmentação é um método dissociativo. Ele desliga as relações automáticas que fazemos sobre as coisas; e a colagem cria novas possibilidades de expandir o real.

Released prisoners in striped prison dress beside a heap of bones from bodies burned in the crematorium, KZ Buchenwald, 1945. © Lee Miller Archives England 2020.

Em 1944, Lee Miller se tornou correspondente do exército americano, sendo, assim, a primeira mulher a cobrir uma guerra para a revista . Como fotógrafa de guerra, ela registrou o “Dia D” e, muito provavelmente, foi a única mulher a cobrir a guerra da linha de frente na Europa. Lee Miller testemunhou o cerco de Saint-Malo, a libertação de Paris, os combates em Luxemburgo e na Alsácia, a ligação russo-americana em Torgau, a Blitz de Londres, a libertação dos campos de concentração de Buchenwald e Dachau. Em Buchenwald, Lee fotografou cinco ex-prisioneiros recém-libertados, em frente a um monte de cadáveres queimados pelos nazistas. No plano aberto da foto, Lee Miller testemunhou o silêncio daqueles corpos entulhados e a quase morte dos

Portrait of space, Ägypten, 1937. © Lee Miller Archives England 2020.

sobreviventes. Em maio de 2020, o fim da Segunda Guerra Mundial completou 75 anos, e sem os registros feitos por Lee Miller seria mais difícil refletir sobre a dimensão dessa catástrofe. No mesmo dia em que Hitler se suicidou no de Berlim, Lee Miller esteve na casa particular do ditador, em Munique. Lá, ela encenou um banho de libertação, naquela que viria a ser uma das imagens mais famosas de sua trajetória. Fotografada por David Scherman, ela, a mulher, ex-modelo, artista de vanguarda e fotógrafa de guerra, entrou nua na banheira de Hitler. As botas do uniforme de Lee, posicionadas à frente da banheira, sujas do chão de Dachau, mostram que aquele espaço foi ocupado pelas tropas americanas. Com a

Lee Miller in Hitler's Bath, 1945 by David E. Scherman. © Lee Miller Archives England 2020.

Nude bent forward [thought to be Noma Rathner], Paris, 1930. © Lee Miller Archives England 2020.

cabeça e o olhar angulados, ela sugere um novo horizonte possível. O banho encenado por Lee Miller é uma espécie de batismo; pela imersão na água, ela lava a memória do ditador. A foto de Hitler, à esquerda do quadro, parece assistir à cena sem nada poder fazer. À direita, vemos uma escultura de traços grecoromanos, que também parece assistir ao banho. Entre Hitler, Lee Miller e a escultura, que formam o eixo da foto, há uma linha do tempo invertida. Um traço que vai do “belo” grego, atravessa o corpo de uma exmodelo da , branca de olhos claros, e culmina na imagem do nazismo, fundado na obsessão pela ideia da “beleza ariana”. A relação entre esses três elementos amplia o sentido da foto e evidencia mais que a derrota de Hitler: escancara mecanismos históricos de dominação do corpo – especialmente o corpo da mulher. Elizabeth Lee Miller não cabe neste texto. Sua trajetória é tão multifacetada que não seria justo reduzi-la a uma única categoria: de modelo da , fotógrafa de moda, fotógrafa surrealista, a primeira mulher correspondente de guerra da revista na Segunda Guerra Mundial e, mais tarde, de cozinha. Ao ler sobre ela, percebe-se o quanto a arte dela é relacionada aos nomes de homens com quem trabalhou, os quais, inevitavelmente, estão também citados neste texto. Edward Steichen, Nickolas Muray, George Lepape, Man Ray, Pablo Picasso, Jean Cocteau: eles certamente contribuíram muito como referência e inspiração para Lee Miller. Mas há que se fazer uma retificação histórica: a obra de Lee Miller é legítima por si só. Lee Miller é, sem dúvida, um dos grandes nomes do século 20.

Drika de Oliveira é diretora de conteúdos audiovisuais na Redes da Maré. Atua como fotógrafa e preservadora audiovisual na Cinemateca do MAM-

Rio. É graduada em Comunicação Social-Cinema pela PUC-Rio. Membro da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA).

NOTAS do mercado,

Glauco Rodrigues

Pedro Américo

Joan Miró Os leilões da massa falida do Banco Santos foram o grande assunto no mercado de arte em setembro. No total de 10 pregões, 8 foram dedicados em maioria à obras de arte, com milhares de lotes. Os primeiros foram transmitidos ao vivo pelo canal de TV Arte1 com direito a efeitos musicais cheios de emoção e grandes disputas, que levaram os valores a patamares nunca vistos. De acordo com Acácio Lisboa, filho do leiloeiro James Lisboa, os lotes foram arrematados por todo tipo de comprador, incluindo muitos nomes desconhecidos. Seria esta a explicação para os valores - novatos sem conhecimento do mercado que, atraídos pela fama da coleção, decidem se aventurar? Seja como for, ainda houve oportunidades para os conhecedores.

Enquanto isto, outros leilões mostram que o mercado segue seu curso normal, com disputas elevando alguns lotes, outros sem lance. A qualidade crescente das obras ofertadas e proporções cada vez maior de lotes vendidos em relação ao início do ano podem indicar uma retomada após a onda de insegurança causada pela pandemia.

RESULTADOS DE LEILÕES (VALORES SEM COMISSÃO)

Judith Lauand, 1955, Têmpera sobre papel, 16 x 28cm, R$29.500 - Lordello e Gobbi- 29/9

Mira Schendel, 1980, Ecoline e tinta sobre papel, 39x29cm, R$73.000 - Lordello e Gobbi- 29/9

Glauco Rodrigues, 1969, AST, 64x76cm, est. R$8.000, vend. R$35.000 - Dagmar Saboya 11/9

Pedro Américo, 1895, OST, 23x31cm, est. R$15.000, vend. R$15.000 - Dagmar Saboya - 8/9

Banksy, 2003, serigrafia, 67x46, 41/500, est. USD19-25.000, vend.USD77.600 - Christie's - 10-23/9

Francis Bacon, 1990, 4 litogravuras, total 51x38x42cm, est. USD37-63.000, vend. USD42.000 - Christie`s - 10-22/9

Yayoi, Kusama, 1980, técnica mista, 66x51cm, est. USD30-50.000, vend. USD68.000 - Phillips - 30/9

Joan Miró, 1969, ponta-seca e aquatinta sobre papel, 106x68 cm, P.A (ed.75), est. USD5-7.000, vend. USD15.350 - Phillips - 10/9

PRÓXIMOS LEILÕES

14/10: Phillips / Fotografias 20 e 21/10: Phillips/ Arte Contemporânea 20 e 21/10: Christie's/ Múltiplos e obras em papel 21, 22 e 23/10: Phillips / Múltiplos e obras em papel 22 e 23/10: Christie's / Pós-guerra e contemporâneos

Yayoi Kusama

Banksy

Judith Lauand

ALTO falante,

POR ALEXANDRE SÁ

A OBRA DE ARTE NA ERA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TURÍSTICA. AINDA

.” Michel Foucault

Se ainda considerarmos o espaço-tempo em relação às imagens produzidas contemporaneamente, é possível detectar uma série de questões que trazem mudanças importantes para o legado de Walter Benjamin, especificamente sobre aquilo que foi conceituado no texto , como a equiparação do valor de culto ao valor de exposição, a diluição da aura (tida como sinônimo de distância religiosa e existência única), o surgimento de uma aura outra (que, paradoxalmente, mantinha-se amparada na capacidade de exposição de uma determinada imagem), a potencialização do desejo utópico e paradoxalmente fadado ao fracasso de eternidade, a diminuição considerável do ritual (que, ainda assim, consegue sobreviver em alguns momentos muito específicos) e a presença incontestável de uma sensação de esvaziamento estético, fruto de uma onipresença entrópica. Tais diferenças também englobam um aumento na velocidade e na quantidade de produção das imagens, além de um desejo de captura de realidades que sejam exóticas e distantes o suficiente para que provoquem um efeito potente no observador, seja lá o que isso for. Embora o próprio termo exótico gere um conjunto complexo de referências e prováveis debates, é possível compreender que há, ainda, uma busca pela produção de imagens dispostas em um regimente intermitente entre visibilidade e invisibilidade, legibilidade e ilegibilidade, que têm por objetivo a produção de um tipo de prazer atmosférico ao serem observadas, ao se deixarem invadir pelo olhar atento e não menos curioso do público, ávido por mais e mais imagens; em um movimento cíclico e, obviamente, sem fim. Tal prazer não se relaciona especificamente com sua camada mais superficial, mas de certo tipo de gozo estruturado pela impossibilidade de compreensão total de uma imagem que é, com frequência, composta por sua lógica de fragmentação, fratura e fissura. Se estamos então em um momento de ultrapassagem dessa reprodutibilidade técnica, em que a própria imagem se descobre dentro de um novo processo que faz uso do aparelho para lhe provocar uma dobra, como denominá-la? Como definir um momento onde o que ocorre, de fato, é um giro, uma mudança de grau na própria estética veiculada por essa imagem técnica? Como seria possível nos aproximarmos conceitualmente de um momento de trânsito imagético incansável no qual o deslocamento é regra? Como fundamentar uma experiência estética que parece ser estabelecida em uma relação oblíqua de distância, aproximação e estranhamento? Escolhi, então, o termo turístico. E por chamar esse momento de reprodutibilidade turística. Ainda. Momento esse no qual, mesmo sendo a técnica o eixo primeiro e fundamental, o que se presentifica é a efemeridade do registro, a perecibilidade da experiência provocada e a ligeira certeza de que todas as coisas parecem satisfeitas quando banhadas em sua mais recôndita superficialidade. E se o turismo se baseia fundamentalmente na visita do desconhecido (ou daquilo que ainda lhe resta) e no mergulho em elementos “pictográficos” que abarquem um determinado local, optei então para iniciar esta “viagem fotográfica” por meio da hipótese de que hoje, a público, situa-se no mesmo eixo que o estrangeiro (pois, quando não especializado, desconhece grande parte dos códigos inerentes)

e a obra, compreendida como metáfora do universo da cidade desconhecida a ser visitada/desvendada. Mas por que falarmos aqui de turismo? Por sabemos que estamos vivendo em uma época onde o hedonismo se torna cada vez mais presente e, nesse sentido, por mais óbvio que seja, o turismo é um dos elementos que, pressupostamente, é capaz de satisfazer tal hedonismo. Sendo assim, a experiência turística pode vir a se aproximar de uma ideia, consideravelmente arriscada por sua generalização da própria experiência estética que, embora inquestionavelmente individualizada, se refere à sensibilidade, à recepção e à busca de uma experiência artística que seja capaz de provocar alguma fagulha diante do desconhecido que se apresenta como incógnita. É certo, pois, que o turista está à procura de sensações que estejam fora de todo o interesse utilitário e realiza suas experiências por deleite, para exercitar a impossibilidade de ter tais experiências, aproveitando-as da melhor maneira possível.

O que é procurado no turismo é a distração, a evasão, a diversão, a sensação, o prazer: todas as coisas que se arrumam sob a rubrica prática do exotismo. O exotismo permite a fuga do cotidiano e de suas violências, de se desorientar. Ele deve permitir também a realização de encontros: encontro com outros homens, com outros hábitos, com outras maneiras de pensar e sentir. Com determinadas precauções e dentro das condições que proporcionam o encontro sem perigo, que amortecem o choque com o estranho. Através do exotismo, o turista procura o outro que não ele mesmo, de identidades diferentes da sua, onde o encontro lhe confere o sentimento de sair de si, deixando-o assim crer que ele sabe melhor aquilo que ele é.

O turista vive sob a égide do movimento incessante, sobre o prazer, na maioria esmagadora dos casos, amparado por descompassos econômicos, pelo descompromisso diante daquele que visita, para que assim possa, ao fim de sua viagem, descobrir melhor o que vem a ser ele mesmo e o outro. Uma das diferenças fundamentais entre o turista e o flâneur, produto direto da modernidade e de Baudelaire, é que o primeiro joga muito menos com o acaso, com a observação dos movimentos de passagem, embora possa obviamente experimentar acontecimentos casuais que aconteçam ao longo de sua viagem. O flâneur vive e se dilui nos vestígios, tentando “decifrar o que a paisagem labiríntica e impenetrável tem para lhe oferecer”. O flâneur se perde na massa. Está no centro do mundo – na multidão – e está, ao mesmo tempo, protegido, dissimulando-se, ao abrigo dos olhares. Seu desejo é dialético. Seu objetivo é se aproximar daquilo que lhe escapa continuamente, fazendo com que assim persiga o alvo sem cessar, que são, por sua vez, as pequenas relíquias que a paisagem pode lhe oferecer para que, de alguma maneira, consiga anestesiar sua solidão inerente. “O flâneur procura um refúgio na multidão. A multidão é o véu, através do qual a vida familiar se move para o flâneur, em fantasmagoria”. O turista de massa tem objetivos mais claros e alvos mais diretos. Seu alvo não é o de se desvanecer na multidão, mas conseguir observá-la de fora, como através de uma vitrine. O turista sabe que jamais fará parte da sociedade a qual visita, embora em alguns casos seja movido por esse desejo utópico. Tal distância é desejada para que assim consiga discernir melhor o que define os dois polos (visitante e visitado). Seu repertório típico e praticamente clichê é ausência de um comprometimento diante do futuro. O turista de massa esbarra, tropeça em novas paisagens, em outras personagens exóticas e inimagináveis. Por outro lado, seu “outro” e seu “outro-lugar” estão sempre a serviço dele próprio. É importante que ele

“se sinta em casa” para que possa, mais tarde, caso deseje, retornar ao local visitado e assim auxiliar na movimentação de capital, mesmo que para isso a cidade tenha que usar os mais diversos recursos para então propiciar as mais estranhas ilusões. Há no turismo algo de construção involuntária bastante interessante, pois, dentro de uma época de consumo de neoliberal, tudo de uma cidade deve estar preparado para servir de base a esse encontro com o desejo-estrangeiro. E, obviamente, a ficção pode também fazer parte desse jogo. O movimento turístico se sustenta pela separação semântica intransponível e pela distância absoluta entre aquele que visita e aquele que é visitado. Que, pelo exotismo do ambiente e de seu conteúdo, projeta uma imagem “monumentalizada” do outro, da mesma forma que, em um jogo de espelhos bastante específico, auxilia na manutenção de sua própria monumentalidade fantasmática em eterno processo de reverberação. Se pensarmos que a cidade é a construção de uma realidade não natural, em virtude dos seus desejos de comunicação, fruto da produção humana, e composta por uma trama inesgotável de signos e variações estéticas, é possível, então, aproximar a imagem da cidade da própria imagem da obra de arte. A obra como cidade, em imagem de construção e desconstrução. Ou, como nos diz Argan:

Não é difícil compreender como, para todas as correntes artísticas de vanguarda, a problemática do objeto de arte, aliás do objeto simplesmente, se tenha estendido à cidade: a cidade está para a sociedade assim como objeto está para o indivíduo. A sociedade se reconhece na cidade como o indivíduo no objeto; a cidade, portanto, é um objeto de uso coletivo. Não só isso, a cidade também é identificável com a arte porquanto resulta objetivamente da convergência de todas as técnicas artísticas na formação de um ambiente tanto mais vital quanto mais rico em valores estéticos. Quando se fala em crise da arte, fala-se na realidade, em crise da cidade; e a crise da cidade é um dos fenômenos mais graves e perigosos do mundo moderno.

Atravessando então alguma fisicalidade, arrisca-se considerar que o que monumentaliza a obra é a visita e/ou a viagem esporádica daquele que é estrangeiro à sua poética, amparado em uma lógica de potencialização midiática que une de maneira contundente as relações de estranheza eventualmente provocadas. Seria, então, apenas, esse fluxo transitório de “forasteiros” que tornaria possível um refluxo diante do esvaziamento da condição da obra, do próprio artista e da história? Seriam a velocidade e a quantidade da exposição desse trânsito entre público e obra, os responsáveis pela instauração de uma nova sensação de obra e, inclusive, presença? Estamos aqui deslocados da mesma maneira que fotógrafos, turistas voyeurísticos em mundos representados sobre os nossos pés.”

continua...

Alexandre Sá é artista-pesquisador. Atual diretor do Instituto de Artes da UERJ. Pós-doutor em Filosofia pelo PPGF/UFRJ. Pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e Doutor em Artes Visuais pela EBAUFRJ. E-mail: alexandresabarretto@gmail.com

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