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APESAR DE VOCÊ

POR JULIANO GALISI

A EDIÇÃO 2022 do Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, relatório elaborado pela Repórteres Sem Fronteiras (RSF) há duas décadas, reserva ao País a amarga 110ª posição entre 180 nações. É uma queda de 11 postos da classificação de 2015, quando o Brasil ocupava o 99º lugar. Para o verbete brasileiro, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é considerado o principal responsável pela “deterioração das relações entre governo e imprensa”, sobretudo por “atacá-la regularmente com a mobilização de exércitos de apoiadores nas redes sociais”.

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“Jair Bolsonaro apresentou um comportamento fora da liturgia e institucionalidade com a qual se estabeleceu o relacionamento entre imprensa e poder”, afirma Rogério Christofoletti, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e criador do Observatório de Ética Jornalística. Para Christofoletti, a postura “ofensiva e agressiva” do ex-presidente insuflou aliados e apoiadores a fazerem o mesmo, criando, assim, um clima hostil. Se fosse considerada apenas a falta de segurança dos jornalistas, o Brasil cairia ainda mais no ranking da RSF, para a 124º colocação.

“Órgãos de Estado passaram a perseguir jornalistas, como a Advocacia-Geral da União e o instituto da Lei de Segurança Nacional”, ressalta Christofoletti. Até mesmo o dispositivo legal da Lei de Acesso à Informação (LAI), que completou 10 anos, sofreu sob um governo que obstruiu seus preceitos e processos.

“Ficou evidente uma reinterpretação da LAI, principalmente para que o interesse público não fosse atendido nas requisições”, diz Danielle Bello, coordenadora da Open Knowledge, entidade que promove debates e ações em prol do acesso à informação. “Sabemos que as negativas à informação aumentaram nos últimos tempos. Foi contrariado um princípio de que a publicidade é regra e o sigilo, exceção.”

No fim da última disputa presidencial, a RSF emitiu um comunicado institucional lembrando os principais desafios do governo de Luiz Inácio da Silva nesta área: restabelecer a cultura de acesso à informação de interesse público, adotar um discurso que valorize o trabalho da imprensa e, por fim, a reabilitação da Empresa Brasil de

Comunicação (EBC) como instrumento de comunicação pública.

Em entrevista à CÁSPER, Artur Romeu, diretor do escritório da RSF para a América Latina, detalha o plano de ação para cada um desses eixos. “O governo tem um papel fundamental na prevenção de crimes contra jornalistas. Agir nesse sentido prevê a adoção de uma retórica de valorização do trabalho da imprensa. É o contrário do que se viu na gestão Bolsonaro. Seguindo os passos do trumpismo, o discurso público foi bélico e pintou um alvo no jornalismo, acusando os veículos de inimigos da nação”, diz Romeu.

Para Christofoletti, o “clima de guerra” fomentado pelo governo federal ameaça a liberdade de imprensa e prejudica a própria gestão. “Jornalistas são profissionais que levam informação ao público e, nessa tarefa, facilitam o trabalho de prestação de contas do governo. Cabe a Lula deixar de tratar os jornalistas como inimigos e resgatar a institucionalidade”, afirma. O professor da UFSC e Artur Romeu, da RSF, ressaltam a importância de não se perder de vista os problemas estruturais do cenário midiático no Brasil, como a concentração socioeconômica da propriedade dos meios de comunicação e a perseguição a profissionais de imprensa. Nas oportunidades em que Bolsonaro e Lula se enfrentaram nos debates presidenciais, o petista fez questão de mencionar os sigilos de cem anos decretados pelo então presidente, prometendo revogá-los. Segundo Artur Romeu, o recurso dos sigilos foi “banalizado” por Bolsonaro. Danielle Bello diz acreditar que a promessa de revogação sinaliza uma nova postura por parte do governo, ao qual cabe um trabalho de reabilitação institucional. “É um trabalho de fortalecer a Legislação de Acesso à Informação, recuperando justamente o que já está previsto na lei. Ela é muito clara em relação aos procedimentos, prazos e tipos de informação que podem ser obtidas”, afirma.

A revogação dos decretos de sigilos é necessária, mas não contempla todo o processo de resgate da cultura de acesso à informação.

“A LAI surge para estabelecer uma postura ativa na transparência pública e obteve sucesso, pelo menos até a gestão Bolsonaro, na esfera federal. Ainda há dificuldade em estender isso a estados e municípios. Um dos compromissos do novo governo pode ser estimular a criação desses mecanismos mais descentralizados”, acrescenta Romeu.

O último eixo a ser trabalhado pela equipe de comunicação social da futura gestão diz respeito à Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Rogério Christofoletti e Artur Romeu ressaltam que a in - gerência do governo federal sob a EBC começou já na gestão de Michel Temer. Sob o emedebista, houve a exoneração do presidente nomeado e a dissolução do conselho curador da empresa.

“Temer atacou a autonomia da gestão na EBC. Bolsonaro complementou esse ataque na medida em que unificou os dispositivos de comunicação pública e estatal. A programação da NBR, emissora de comunicação estatal, foi unificada à TV Brasil, que deveria ter um caráter de programação com interesse público”, destaca Renata Mielli, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, uma das entidades promotoras do documento Reconstrói EBC.

“A comunicação da atual TV Brasil, na verdade, nem é estatal, pois promove um pensamento ideológico alinhado ao governo. É um proselitismo político-partidário. Comunicação estatal seria um espaço para divulgar as ações do Estado, e não exatamente do presidente da República, como é feito agora”, completa Renata. Em 25 de outubro, os traba- lhadores da EBC foram homenageados por sua “resistência na defesa da comunicação pública” na 44ª edição do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. A premiação foi concedida em caráter excepcional, justamente pelo aparelhamento ideológico que Bolsonaro adotou na empresa, que, por sorte, resistiu.

Rogério Christofoletti relembra o contexto de criação da EBC. Logo após a fundação da empresa, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), na qual mais de 600 sugestões legislativas foram aprovadas. Segundo ele, há muitos projetos represados ao longo da última década que podem ser retomados. “São 600 teses e sugestões que poderiam sinalizar ao governo federal a construção de um cenário mais plural e democrático para a comunicação social. Seriam medidas para aumentar a pluralidade da mídia, fomentar a cultura criativa, discutir o papel das big techs no discurso público etc”, afirma o professor da UFSC. @

Desde o início da gestão Bolsonaro, pontuação brasileira no ranking da liberdade de imprensa derreteu em 20%

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