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SOBRE O CONCEITO DE BELO NA ESTÉTICA DE KANT: A IMPORTÂNCIA DO GOSTO PARA A AUTONOMIA DA ARTE

ON THE CONCEPT OF BEAUTY IN KANT’S AESTHETICS: THE IMPORTANCE OF TASTE FOR THE AUTONOMY OF ART

Jefferson Martins Cassiano1

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resumo

O objetivo desse texto é apresentar a importância do pensamento kantiano para autonomia do conceito de belo. Para tanto, a análise é realizada em duas etapas: a analítica do belo que versa sobre as condições normativas para a conceituação do belo; e a dialética do belo que examina o uso pertinente dos juízos de gosto e sua necessidade. Nesse sentido, a fim de destacar a importância e influência do pensamento kantiano, os estudos de Erwin Panofsky e Clement Greenberg contribuem para a contextualização. Assim, a tese defendida é que o conceito de belo de Kant promove a autonomia da arte ao fazer do juízo de gosto o tema central da reflexão moderna sobre a estética.

PALAVRAS-CHAVE: Kant; juízo de gosto; conceito de belo; autonomia da arte; estética.

abstract

This text aims to present the importance of Kantian thought for the autonomy of the concept of beauty. Therefore, the analysis is carried out in two stages: the analytic of the beautiful that deals with the normative conditions for the conceptualization of the beauty; and the dialectic of

the beauty that examines the pertinent use of judgments of taste and their need. In this sense, the studies of Erwin Panofsky and Clement Greenberg contribute to the contextualization in order to highlight the importance and influence of Kantian thought. Thus, the thesis defended concerning that Kant’s beauty concept promotes the autonomy of the art when he makes the judgment of taste the central theme of modern reflection on aesthetics.

KEYWORDS: Kant; judgment of taste; concept of beauty; autonomy of art; aesthetics.

introdução

O conceito de belo costuma ocupar o lugar central nas reflexões estéticas. Ora definido como a harmonia entre forma e conteúdo, ora entendido como a experiência pessoal entre o objeto ou obra de arte e o observador, muitas vezes o conceito de belo envolve a qualidade e a interpretação de que alguma coisa satisfaz as expectativas em sua pura contemplação. No entanto, embora o conceito de belo seja comumente definido a partir de traços atemporais, incondicionados e metafísicos, existe uma história que registra as diferentes ‘disputas’ pelo conceito de belo. Assim, embora ‘o belo’ seja um dos maiores interesses da reflexão humana, por muito tempo esteve subordinado às questões do conhecimento e da moral. Pode-se dizer que o movimento de ‘emancipação da estética’ da teoria e da prática se inicia timidamente na era da Renascença, quando o conceito de belo passa a designar a liberdade, imaginação e criação artística. Um passo adiante é dado na Modernidade com busca pela autonomia da estética como disciplina independente que se ocupa do conhecimento sensível. Por fim, pode-se dizer que a autonomia do belo é alcançada na obra Crítica da Faculdade de Juízo de Immanuel Kant (1790). No entanto, isso não ocorre sem que o filósofo construa todo um argumento original acerca das faculdades do ânimo (subjetividade), introduzindo novos temas e influenciando os campos da estética, teoria/filosofia do belo e história da arte.

O objetivo desse texto é apresentar a importância do pensamento kantiano para autonomia do conceito de belo. Julga-se que esse é o passo definitivo para que se possa compreender a autonomia que a arte e a estética contemporânea usufruem. Para tanto, a análise procura descrever como Kant desenvolve seu argumento e introduz temas fundamentais como o juízo reflexionante, sentimento de prazer, princípio de conformidade a fins e o livre jogo harmonioso entre as faculdades do entendimento e imaginação. A partir disso, pode-se compreender a crítica do juízo de gosto em Kant, realizada em duas etapas: a analítica do belo que versa sobre as condições normativas para a conceituação do belo; e a dialética do belo que examina o uso pertinente dos juízos de gosto e sua necessidade. Nesse sentido, os estudos de Erwin Panofsky e Clement Greenberg contribuem para a contextualização a fim de destacar a importância e

influência do pensamento kantiano. Logo, a tese defendida é que Kant promove a autonomia do conceito de belo fundamentando suas condições normativas; nesse caso, apoia-se nos estudos de Panofsky para destacar a evolução do conceito. Além disso, Kant também faz do juízo de gosto o tema central da reflexão moderna sobre a estética e a arte; nesse ponto, o exemplo provém da interpretação de Greenberg que reconhece Kant como o fundador da crítica da arte. Assim, espera-se apresentar que, mesmo sem ter que se comprometer com a totalidade da antropologia filosófica de Kant, sua contribuição é fundamental para compreender o estado da arte e da estética praticada atualmente.

Panofsky e a história do conceito de belo

Segundo o historiador alemão Erwin Panofsky2, a filosofia da arte tem como seu objeto de estudo o conceito de belo. Assumindo o pensamento platônico como referência, na obra Idea: a evolução do conceito de belo (2000), Panofsky considera que o conceito de belo surge de uma posição de subordinação. De acordo com Panofsky, “seguindo o exemplo de Platão, [ele] concedia ao problema da arte um interesse bem mais limitado do que o problema do Belo, problema que, em sua habilidade para combinar as questões, ele vinculava em grande parte ao problema do Bem”3. A tese defendida pelo autor nessa obra é de que já na antiguidade encontrase um conflito entre a subordinação do belo e a autonomia da arte. A análise é dividida em três momentos: a antiguidade helênica, a idade medieval e o século da Renascença; nesse sentido, embora a modernidade kantiana não seja abordada pelo autor, é em favor da autonomia da arte e do belo que Panofsky desenvolve seu argumento. Por isso, considera-se que há no argumento do autor uma interpretação kantiana da história da belo, como se pretende confirmar.

Panofsky inicia seu argumento afirmando que Platão designa o belo como a forma (eidos) das coisas sob o termo Idea. Por Idea deve-se entender o modelo exemplar (paradigma) que doa a forma introduzida na obra. É preciso dizer que o ideal de belo platônico surge da paidéia aristocrata grega de inspiração homérica, o Kalos kai Agathon, o belo e bom. Como afirma o grande helenista Werner Jaeger: “o belo e bom não passam de dois aspectos gêmeos da mesma realidade, que a linguagem corrente dos Gregos funde numa unidade, ao designar a areté do Homem como ser belo e bom”, de modo que “é neste belo e bom da kalokagathia apreendida na sua essência pura que temos o princípio supremo de toda vontade e conduta humana”4. Essa informação é fundamental para o que se segue da tese de Panofsky, pois segundo o autor, Platão cingiu o conceito de belo entre uma concepção ideal (Idea) e outra

2 Erwin Panofsky foi aluno do pós-kantiano Ernest Cassirer e do historiador de arte Aby Warburg; Panofsky é considerado o maior representante do método iconológico que propõe uma forma de análise aplicada da arte em seu contexto cultural.

3 PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo, 2000, p.40. 4 JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego, 1995, p.745.

formal (eidos). Essa separação é essencial para a Teoria platônica das Ideias, especialmente devido a seu caráter normativo; para Platão, a apreensão do belo é interior, de modo que não são as percepções estéticas da sensibilidade (aisthesis) que produzem o belo, mas a comunhão da alma (psyché) que se desvela verdadeiramente (aletheia). É assim que o belo ideal atingido apenas pela prática dialética do filósofo subordina o belo formal oriundo da criação artística. Por isso, em seu famoso discurso do livro X da obra A Republica, Platão repudia a arte como copias (simulacro) de imagens (eikón), pois isso afasta o ser humano da contemplação interior do belo da alma. Em resumo, o belo aparece duplamente subordinado: por um lado ao conhecimento, por outro lado à moral.

Panofsky prossegue afirmando que tão logo se estabeleceu a teoria platônica do belo como Idea, ela foi contestada pelo pensamento de Aristóteles e pelo helenismo posterior de Cícero, Sêneca e Plotino. Com Aristóteles acontece a primeira ruptura, já que o belo passa a ser concebido por meio da emulação artística (mimeses), ligando-o às paixões da alma (em vez de o intelecto). Uma vez destituído o aspecto de modelo exemplar imutável, isso permitiu que o conceito de belo fosse, então, provido de evolução. Nos helenistas posteriores, a Idea platônica adquire uma nova concepção, pensada agora como uma propriedade subjetiva do artista. Panofsky nota que já na Idade Média apresentava-se a necessidade de “contemplar um tipo de beleza que, longe de pertencer aos objetos da natureza para depois ser conferida, por imitação, às obras de arte, reside antes no espírito do artista, o qual, sem mediação, transfere-a para a matéria”5. Agora vinculado à noção de imitação, emulação em vez de mera copia, simulacro, o conceito de belo passa a expressar a possibilidade de aperfeiçoamento do objeto estético; no caso em questão, a natureza é esse objeto. O conceito de belo, ainda mesmo que como imitação da natureza, passa a ensejar de forma tímida, a necessidade do artista de imprimir à natureza a forma de seu espírito.

Não obstante, é no Renascimento que a subjetividade do artista realmente adquiriu força e destaque na concepção de belo. Citando alguns artistas da época Renascentista que já não aceitavam a arte como uma simples reprodução da natureza, como Rafael, Vasari, Alberti e Leonardo da Vinci, Panofsky comenta que “paralelamente à ideia de uma imitação da natureza (...) uma outra ideia aparece na literatura do Renascimento: a do triunfo da arte sobre a natureza; essa dominação realiza-se primeiro graças à ‘imaginação’”; prossegue ainda o autor, “cuja liberdade criadora pode modificar as aparências ao se afastar das possibilidades e das variantes presentes na natureza”, concluindo que “de maneira geral se afaste da simples verdade natural para se elevar a representação da beleza”6 .

5 PANOFSKY, Idea, 2000, p.35. 6 PANOFSKY, Idea, 2000, p.46-47.

Na Renascença o conceito de belo assume um novo campo semântico, pois já não mais se refere ao modelo exemplar de um modo universal, visto que se reporta agora às expressões intuitivas da criação artística (tão desprezada por Platão), vinculando-se ao sentido de liberdade e imaginação. Pode-se ilustrar isso da seguinte maneira: para Panofsky a Idea de belo do grego clássico pode ser assim definida: “a beleza consiste numa harmonia e num acordo das partes com o todo, segundo as determinações do número, de proporcionalidade e de ordem, tais como exige a harmonia, isto é, a lei absoluta da natureza”7. Nesse sentido, o belo estaria determinado pelo conteúdo harmônico que representa, sendo considerado um objeto belo aquele que é por natureza ordenado, proporcional e simétrico. Já na Renascença, Panofsky diz que “na metade do século XVI, difunde-se o hábito de entender por Idea a faculdade da representação, bem mais que o conteúdo da representação artística, de sorte que a expressão equivale ao termo ‘imaginação’”8. Logo, Idea passa a designar a representação que se tem do belo independente da natureza, adquirindo a mesma significação que as noções de pensamento e conceito; podese dizer que se trata de noções reguladoras.

Fato curioso e importante a se destacar é que nesse ponto em que se percebe a evolução do conceito de belo, de acordo com a opinião de Panofsky, “mas falta ainda a afirmação de que essa ideia [de belo], para falar em termos kantianos, seria ‘deduzida’ dos objetos da natureza”9 . A tese do autor é de que pouco a pouco a Idea em sua concepção metafísica da natureza exemplar passa a ser restringida por um conceito de belo cada vez mais expresso na liberdade criativa da arte. No entanto, como alega Panofsky: “ora, é precisamente o conceito de Idea, tal como foi ‘re-semantizado’ na época que permite conciliar claramente essa oposições de sentido que, a bem dizer, não representavam ainda uma contradição”10. Pois bem, o autor se declara ciente de que o Renascimento não problematiza a relação entre a arte e a natureza, ou ainda, entre o conceito de belo e o objeto estético; não obstante, sua tese discorre exatamente sobre o problema dessa relação. Isso somente parece ser possível adotando uma perspectiva de que existe uma autonomia da arte que condiciona a evolução do conceito do belo. Somente em vista dessa pretensão Panofsky pode fazer uma ‘dedução em termos kantianos’ para justificar uma declaração como esta: “uma afirmação, quase kantiana, como a de Giordano Bruno, segundo a qual o artista é o único autor das regras, e segundo a qual só haverá regras verdadeiras na medida em que houver, e enquanto houver, verdadeiros artistas”11. Uma alegação como esta só parece fazer sentido após haver a Crítica de Kant que define claramente a autonomia do belo.

7 PANOFSKY, Idea, 2000, p.53. 8 PANOFSKY, Idea, 2000, p.62. 9 PANOFSKY, Idea, 2000, p.60. 10 PANOFSKY, Idea, 2000, p.68. 11 PANOFSKY, Idea, 2000, p.68.

Kant e a autonomia da faculdade de juízo de gosto

Dada a leitura de Panofsky sobre a evolução do conceito de belo, tem-se: Platão e concepção de belo como Idea e como forma; a interpretação de Aristóteles e dos pensadores grecolatinos até a Idade Média, expressando o belo como emulação (da natureza) e intuição (espírito artístico); por fim a Renascença que atribui à concepção de belo o sentido de liberdade e imaginação (artística). Em nenhum dos casos constata-se a autonomia da arte e do belo, que ainda se encontra subordinada, em alguma medida, às questões de conhecimento (verdade) e/ou moral (bem); isso significa assumir que se justifica o belo ou como aspecto do mundo ou como aspecto da natureza humana. Não obstante, parece ser importante mencionar a contribuição de Alexander Baumgarten para o conceito moderno de belo. Em sua obra Aesthetica (1750), o autor reivindica a estética como disciplina filosófica autônoma destinada ao conhecimento sensível do objeto; ainda, inspirado pelo racionalismo alemão da época de Leibniz e Wolff, Baumgarten se refere ao belo como representação, pretendendo com isso uma teoria do belo12. Todavia, é consagrada no pensamento filosófico a crítica kantiana ao racionalismo dogmático em favor de seu idealismo transcendental que deve se ocupar das condições de possibilidade da subjetividade. Isso significa pensar que, para cada aspecto da natureza humana como conhecer ou sentir, deve haver uma faculdade que lhe serve de condição para essa possibilidade, como o entendimento e o juízo. Pois bem, é em vista desse contexto que Kant escreve sua terceira obra Crítica em 1790, a Crítica da Faculdade do Juízo (doravante mencionada como CFJ).

A princípio, deve-se pontuar que com essa obra Kant não pretende realizar uma teoria do belo, uma história da arte ou mesmo um discurso estético; a CFJ de Kant não se ocupa inteiramente do conceito de belo ou mesmo do juízo, pois se refere à faculdade de ajuizar que possui autonomia em relação ao entendimento e a razão. Logo, isso diz respeito à teoria do sujeito ou à subjetividade, que Kant chama de disposições gerais do ânimo. Por isso, há um grande esforço de Kant no prefácio da CFJ em delimitar o domínio da Filosofia, algo que o faz retomar a questão proposta por Baumgarten acerca da autonomia da disciplina da estética. Kant assegura haver apenas dois domínios da Filosofia: o domínio teórico sobre a natureza e o domínio prático acerca da liberdade da vontade. Ora, isso leva Kant a considerar que entre ambos exista um ‘abismo’ (abgrund); porém, precisamente para essa questão a CFJ serve como um ponto de ‘transição’ (übergang), seja entre o que é determinado por conceitos e o que resta indeterminado na experiência, seja entre as faculdades do entendimento e da razão. O juízo é uma faculdade que opera sem domínio, ao contrário do que fazem o entendimento para a natureza e a razão para a liberdade; por isso, o juízo surge como um termo médio

que permite legislar regras onde não há objetos a determinar, e por isso deve também contar com um princípio legislativo a priori. Ora, o que Kant faz é pensar o conceito de belo a partir de uma faculdade da subjetividade, de um modo que diz respeito mais ao sujeito do que ao objeto; com isso, presta uma grande contribuição para a autonomia da arte/estética, mesmo que indiretamente.

Dessa forma, circunscrito o domínio das pretensões de Kant, é possível avançar sobre dois pontos propostos a partir da leitura de Panofsky: por um lado, a subordinação do conceito de belo pelo conhecimento/verdade e pelo moral/bem; por outro lado, a noção de uma evolução do conceito de belo, que parte da forma de uma Idea para a intuição mimética da natureza, e daí para a inspiração da criação artística. Para o primeiro caso, Kant tematiza o gosto como condição de possibilidade para o juízo estético; já para o segundo caso, aborda o conceito de belo como um tipo de juízo reflexionante. Enfim, estas são as diretrizes delineadas para avaliar a autonomia do belo a partir da filosofia kantiana proposta por sua CFJ.

Kant inicia a CFJ definindo seu programa, isto é, tratando da faculdade de juízo13: “a faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como contido no universal. No caso de este ser dado, a faculdade de juízo que nele subsume o particular, é determinante”, concluindo que “porém, se só o particular for dado, para o qual ele deve encontrar o universal, então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva”14. Ora, nota-se que Kant distingue a faculdade de juízo a partir de sua aplicação: reconhece a aplicação de juízos determinantes em sua relação com a necessidade de universalidade objetiva, isto é, incondicionada em sua validade. Assim, juízos acerca dos discursos epistêmicos e práticos devem exigir conceitos sobre os quais seja possível decidir a verdade do objeto ou a intenção da ação. Nesses casos, juízos determinantes oferecem provas de sua validade deduzida de leis objetivas que devem ser admitidas ou requeridas previamente à existência do objeto ou ação. No caso do juízo reflexionante, mesmo que de modo contra-intuitivo, Kant concebe sua aplicação também ao universal, só que agora subjetivo. Trata-se dos casos em que a existência de um objeto é dada, mas a regra sobre a qual deve ser universalmente ajuizado tem de ser buscado. Esse é o caso dos juízos estéticos, que na perspectiva de Kant não podem exigir validade objetiva, ou então seria preciso afirma que há ao menos um objeto que deve existir sempre e necessariamente como belo em todos os aspectos e circunstâncias. Ora, embora nenhum objeto possa ser em si mesmo necessariamente belo, Kant concebe que qualquer objeto que seja pode exigir um assentimento universal, mesmo que seja impossível determinar objetivamente qual a sua

13 A Crítica da Faculdade de Juízo é composta de duas partes: o juízo estético (formal e subjetivo) e o juízo teleológico (real e objetivo). Segundo informa Ricardo Terra, Kant menciona que inicialmente tratava essa obra como “Crítica do gosto”. Cf. TERRA, Ricardo. As duas introduções a Crítica do Juízo, 1995. Neste texto me ocupo somente da primeira parte da Crítica da Faculdade de Juízo destinada à crítica do gosto, e exclusivamente ao belo, não considerando o sublime. 14 KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.11.

regra de ajuizamento. O juízo reflexionante é compelido a ascender do particular dado para o universal e por isso precisa de um princípio do qual o objeto deve ser pensado; por isso, fazse necessária uma regra para buscar o universal em vista do particular. Assim, Kant se coloca em uma inusitada situação, pois embora o belo seja empírico e privado, a faculdade de juízo reflexionante mantém pretensão ao mesmo tempo subjetiva e universal, na medida em que cada sujeito que ajuíza o belo pode reivindicar uma validade universal que não determina um objeto, mas a totalidade de sujeitos que ajuízam esteticamente sobre o mesmo objeto.

Já nesse ponto, parece suficientemente nítido que o pensamento kantiano acerca do belo como ajuizamento estético se afasta da tradição que chega até seu tempo. Como aponta Paul Guyer, isso se deve à filosofia transcendental que propõe pensar a partir de um sistema de princípios15. Para confirmar isso, Kant afirma que “um princípio transcendental é aquele pelo qual é representada a priori a condição universal, sob a qual apenas as coisas podem ser objetos do nosso conhecimento em geral”16. Na filosofia de Kant, princípios transcendentais são apresentados em suas características reguladoras, isto é, eles têm em vista um sistema organizado ao qual se aplicam regras, pois sempre é necessário haver princípios para ajuizar. Nesse sentido, a estratégia proposta por Kant é atribuir ao juízo reflexionante a forma de um argumento analógico17, a fim de postular certa ‘autorização’ para se pensar de tal forma; tratase de uma função reguladora dos princípios como se fossem regras para pensar, e não para conhecer. Dessa maneira, a ‘Crítica’ de Kant fala em um como se (als ob) para poder examinar (e auxiliar) o mau uso das faculdades, e não para contestar sua validade. Nesse sentido, diante de um juízo de gosto, o conceito de belo atua como se fosse um predicado do objeto mesmo sendo uma disposição subjetiva, na medida em que este juízo reivindica a concordância dos outros. A faculdade de juízo também deve ter seu princípio a priori, por isso Kant diz que “a conformidade a fins (...) tem a sua origem meramente na faculdade de juízo reflexiva”18. O juízo estético, por ser reflexivo e subjetivo, não pode servir de regra a um objeto conhecido, mas pode servir de regra a própria reflexão em si mesma. Para isso, a noção de fim ou finalidade desempenha uma função importante.

Kant define o princípio a priori de conformidade a fins como “o acordo de uma coisa com aquela constituição das coisas que somente é possível segundo fins”19, sendo ‘aquela constituição das coisas’ o conceito do objeto. Ora, o conceito de belo, por ter que ser ajuizado esteticamente, não pode ser determinado em conformidade a fins conceituais do objeto, pois nesse caso

15 Cf. GUYER, Paul. Introduction in: Critique of the power of judgment, 2000. 16 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.13. 17 Cf. KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, §59 18 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.12. 19 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.12..

haveria a representação do fenômeno determinado por conceitos. Kant, contudo, deduz o belo da conformidade a fins no próprio sujeito, e isso quer dizer: a partir do livre jogo entre as faculdades do entendimento e da imaginação. O entendimento representa a faculdade de legislar segundo leis, enquanto a imaginação diz respeito à espontânea produção de intuições possíveis, sem obedecer a nenhum conceito, numa espécie de ‘liberdade da imaginação’20 . Segundo Hannah Ginsborg21, a atividade harmoniosa do livre jogo das faculdades do entendimento e da imaginação (CFJ, §9) corresponde a uma indeterminação na cognição, de modo que a unidade subjetiva da livre relação das faculdades é em si mesma conhecida por meio de um sentimento de prazer. Esta harmonia das faculdades não tem sua orientação para um conhecimento determinado do entendimento, mas para algo que resta indeterminado na intuição da imaginação. Essa reflexão sobre o simples estado da organização do conhecimento em conformidade a fins num livre jogo indeterminado objetivamente se vincula ao sentimento de prazer22 .

A faculdade de juízo em conformidade a fins encontra, enquanto princípio a priori subjetivo, no sentimento de prazer o fundamento de sua reflexão. Para Kant, o “elemento subjetivo numa representação que não pode de modo nenhum ser uma parte do conhecimento é o prazer ou desprazer” de modo que “por isso o objeto só pode ser designado conforme a fins, porque a sua representação está imediatamente ligada ao sentimento de prazer; e esta representação é uma representação estética de uma conformidade a fins”23. O sentimento de prazer se refere ao que é colocado para a reflexão sem necessidade determinação da sensação do objeto ou/e conceito do entendimento. Para que se possa ajuizar sobre o belo é preciso uma representação que permanece na imaginação e um sentimento de prazer pelo qual o sujeito é afetado na mera reflexão. No entanto, considerando que o sentimento de prazer é distinto da faculdade de juízo, de que modo ocorre a relação entre ambos? Ora, o próprio Kant afirma que “a solução desse problema é a chave da crítica do gosto”24. Comentadores experientes como Guyer (1997), Alisson (2001) e Ginsborg (1991) discorrem seriamente sobre essa assertiva de Kant; contudo, não convém aqui assumir tal pretensão, mas apenas apresentar resultados. Kant descreve o sentimento de prazer como consequência de uma comunicação universal das disposições do ânimo, pois o que se comunica no juízo de gosto é sempre algo subjetivo. Isso implica que o

20 Sobre a imaginação estética, Cf. CFJ, p.84. A acepção da harmonia do livre jogo entre entendimento e imaginação, fundamental para compreensão do argumento de Kant, é também um ponto muito polêmico em seu sistema. Essa problematização é um dos principais argumentos destacados por Paul Guyer na sua obra Kant and the claims of taste, 1997; e contraponto para a obra Kant’s theory of taste de Henry Alisson, 2001. 21 GINSBORG, Hannah. On the key to Kant’s critique of the taste, 1991, p.304. 22 Nesse ponto, vale notar que enquanto Panofsky chama a atenção para a liberdade e imaginação como atributos inspiradores na criação artística no período do Renascimento, Kant estabelece entendimento e imaginação como faculdades em harmonia para o juízo estético, isto é, para o poder de comunicar-se universalmente. 23 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.22. 24 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, §09.

sentimento de prazer resultante de uma comunicação universal, desde que a faculdade de juízo seja reflexiva, exige que tal comunicação possa ser entendida como um postulado de validade universal para o juízo de gosto na representação do assentimento de todos os outros. Logo, para Kant quem ajuíza sobre o belo tem a pretensão de também ajuizar em nome de todos os demais.

Enfim, uma vez reunido o princípio a priori da conformidade a fins, a harmonia das faculdades, o juízo reflexionante e o fundamento do sentimento de prazer, pode-se então conceber a tematização do gosto na CFJ. Assim, parece ser possível identificar o momento em que Kant sintetiza esse argumento:

O [sentimento de] prazer está, por isso, no juízo do gosto verdadeiramente dependente de uma representação empírica e não pode estar ligado a priori a nenhum conceito (não se pode determinada a priori que tipo de objeto será ou não conforme ao gosto; será necessário experimentá-lo); porém, ele é o fundamento de determinação desse juízo somente pelo fato de estarmos consciente de que se assente simplesmente na reflexão e nas condições universais, ainda que subjetivas, do seu acordo com o conhecimento dos objetos em geral, para os quais a forma do objeto é conforme a fins25 .

O gosto (ou também experiência estética) significa, no discurso kantiano, uma regra de ajuizamento sobre um sentimento de prazer; e um juízo de gosto denota o poder de comunicarse universalmente. Nessa condição, faz maior sentido algumas afirmações de Kant, tais como o “sentimento de prazer é determinado mediante um princípio a priori a todos”26; e talvez sua principal definição: “o objeto chama-se então belo e a faculdade de julgar mediante um tal prazer (por conseguinte universalmente válido) chama-se gosto”27. Para Kant, o belo que se expressa no gosto é uma experiência estética do objeto que versa sobre um objeto conhecido e, além disso, pode ser constantemente refletido, pensado; com isso, se torna capaz de revelar a harmonia do livre jogo das faculdades.

Na analítica do belo, que tematiza as regras do juízo do gosto, Kant espelha sua exposição nas categorias do entendimento apresentado na Crítica da Razão Pura: segundo a qualidade, quantidade, relação e modalidade. A pretensão da analítica do belo é identificar as condições segundo as quais é possível avaliar um juízo de gosto. O próprio Kant oferece o resultado inferido dos quatros momentos da analítica do belo.

25 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.25. 26 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.20. 27 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.23.

primeiro momento: belo é o que apraz na complacência desinteressada

Kant denomina complacência o interesse que provém da satisfação com a existência do objeto28, e de duas formas: uma é o interesse no agradável, que apraz aos sentidos na sensação; outra é o interesse no bom, que apraz a razão mediante o simples conceito em seu fim. Nesse caso, o agradável produz um interesse patológico por estímulos, enquanto o bom produz um interesse em relação à utilidade e resultado. No caso do juízo do gosto, ele deve ser puramente desinteressado, isto é, não depender da existência do objeto, pois para ajuizar ao belo basta a representação estar ligada ao sentimento de prazer, de modo que “o juízo do gosto é meramente contemplativo, isto é (…) só considera sua natureza em comparação com o sentimento de prazer”29. O interesse que provém do sentimento de prazer, que pode ser tanto agradável, bom ou belo, não pode ser confundido com três modos de prazer, pois se trata de três formas distintas nas quais a representação se relaciona com a complacência no sentimento de prazer. Agradável é o que deleita pelo estímulo; bom é o que é estimado e aprovado pelo valor objetivo; já belo é o que apraz “única e exclusivamente do gosto pelo belo é uma complacência desinteressada e livre”30. Por isso, Kant afirma que o “o juízo de gosto não é nenhum juízo de conhecimento (nem teórico nem prático) e por isso é tampouco fundado por conceito nem por fins”31 .

Segundo momento: belo é o que apraz universalmente sem conceito

Nesse momento, talvez o mais polêmico da CFJ, o objetivo de Kant é explicar como é possível uma universalidade baseada em um sentimento, em vez de conceitos. Para tanto, Kant destaca que a pretensão à universalidade não pode ter por base um sentimento privado, como a satisfação no agradável; contudo, o interesse não-privado é aquele que tem seu fundamento no moralmente bom, porém tal interesse só pode ser representado por conceitos. Já no que concerne ao belo, Kant afirma que “o juízo de gosto (sobre o belo) imputa-se a qualquer um a complacência no objeto, sem contudo se fundar sobre conceitos (pois então se trataria do bom)”32. A complacência universal orientada por um conceito moral tem em vista um efeito prático, enquanto a complacência no belo se liga de maneira simbólica ou análoga, apenas na forma de reflexão, a um efeito prático33. Segundo Kant, “o próprio juízo de gosto não postula o acordo unanime de qualquer um; (...) ele somente imputa a qualquer um este acordo como

28 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.39. 29 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.45. 30 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.46. 31 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.45. 32 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.52 33 Cf. KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, §59.

caso da regra, com vista ao qual se espera a confirmação não de conceitos, mas da adesão de outros”34. Ora, Kant precisa alegar uma tendência natural do homem à socialização para justificar a pretensão de validade universal ao sentimento de prazer. Nesse caso, o sentimento de prazer continua privado e subjetivo, enquanto que é a consciência de sua validade universal que pode ser representada como regra universal para o juízo do gosto por qualquer um. Segundo Kant, “a comunicabilidade universal subjetiva do modo de representação em um juízo de gosto, visto que ela deve ocorrer em pressupor um conceito determinado, não pode ser outra coisa senão um estado de ânimo no livre jogo das faculdades”35 .

Terceiro momento: belo é a forma de uma conformidade a fins de um objeto

Nesse ponto, Kant argumenta que somente a finalidade da forma de um objeto em sua representação pode ocasionar a harmonia entre as faculdades. O argumento defendido é que a harmonia em questão é a harmonia na reflexão, o que significa que somente a ordenação da afetação sensível (sensação) dada à apreensão da imaginação pode ocasionar tal harmonia. Por finalidade sem fim o autor entende que ao julgar um objeto como belo, ocorre uma regularidade estética do objeto em sua forma de finalidade, pois o conceito que poderia servir de fundamento permanece indeterminado. Isso significa que embora o belo seja ajuizado como se fosse uma propriedade do objeto, a finalidade sem fim apenas atribui ao objeto a disposição para produzir certa afetação estética, sem estabelecer quais seriam as propriedades pelas quais o objeto alcança tal disposição. Segundo Kant, “a conformidade a fins pode, pois, ser sem fim, na medida em que não pomos as causas desta forma em uma vontade, e contudo somente podemos tornar compreensível a nós a explicação de sua possibilidade enquanto deduzirmos de uma vontade”, concluindo que, “logo, podemos pelo menos observar uma conformidade a fins segundo a forma – mesmo que não lhe ponhamos como fundamento um fim – como matéria do nexus finalis – e notá-las em objetos, embora de nenhum outro modo senão por reflexão”36. A articulação entre conformidade a fins, que pode ser sem fim, e o sentimento de prazer procura prover uma garantia objetiva para que um sentimento seja transportado para o poder do juízo, quer dizer, ser universalmente comunicável.

Quarto momento: belo é o que é conhecido sem conceito como objeto de uma complacência necessária.

Por fim, o último momento tem a ver com a necessidade inerente do juízo de gosto; essa necessidade deve ser subjetiva, visto que diz respeito à complacência. Kant caracteriza como

34 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.53. 35 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.55. 36 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.58-59.

exemplar o que é explicado como “uma necessidade do assentimento de todos a um juízo que é considerado como exemplo de uma regra universal”37. Kant defende que um juízo de gosto sobre um objeto belo exige um acordo universal porque imputa uma regra universal, a qual, por não se tratar de um juízo lógico de conhecimento, não pode ser efetivamente conceituada. Por isso, propõe uma norma ideal como pressuposto para tomar o juízo com a pretensão de uma validade exemplar. A necessidade de um assentimento universal que deve ser pensada em um juízo de gosto encontra sua condição normativa na ideia de um sentido comum (sensus communis); sob este pressuposto, o juízo de gosto deve ser representado objetivamente, como se fosse uma regra para todo o ajuizamento. Postular o acordo de todos pressupõe, então, a norma ideal do sentido comum que não diz que todos concordariam com o juízo, mas que todos deveriam concordar. Em tal sentido, Kant parece não reduzir o gosto à regra de ajuizamento do sentimento de belo, visto que é levado a admitir uma espécie de sentido comum (sentido comunitário em CFJ, §40) sem o qual parece ser impossível proferir juízos sobre o gosto.

Enfim, esses quatro momentos sintetizam a analítica kantiana do belo.

Há na analítica do belo dois aspectos fundamentais para contribuir com o objetivo desse texto. O primeiro aspecto se refere à preocupação de Kant em preencher as condições normativas sem, contudo, apresentar diretamente os critérios; trata-se de argumentar em favor das condições para que seja possível formular critérios, isto é, defender que para juízos de gosto devem existir certas condições que precisam ser admitidas como critérios que sejam aplicados como se (als ob) fossem regras universais, a saber: o livre jogo das faculdades, o princípio a priori de conformidade a fins e o sentimento de prazer38. O segundo aspecto diz respeito à preocupação com uma espécie de ordenamento do uso do juízo de gosto, já que a maior parte da argumentação de Kant se ocupa da diferenciação entre juízo estético (gosto) e juízos teóricos e práticos. O juízo de gosto sobre o belo não amplia o conhecimento do mundo, e somente indiretamente possui aplicação prática, sendo uma espécie de símbolo para o moralmente bom39; um juízo de gosto sobre o belo tem uma finalidade sem fim, pois belo é o que apraz na mera reflexão.

Entretanto, embora Kant se dedique à elucidação da faculdade de juízo, a experiência estética do gosto, enquanto regra de ajuizamento, não pode prescindir de se assumir como um princípio subjetivo com pretensão de validade universal. O momento em que Kant analisa as consequências de postular o gosto como uma condição subjetiva de validade objetiva é chamada de dialética crítica do juízo estético. Segundo Barry Stocker, o estudo da dialética

37 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, p.80. 38 É preciso mencionar que o programa da analítica do belo suscita várias objeções acerca do formalismo kantiano. Cf. GUYER, Kant and the claims of taste, 1997, cap. 5; Cf. ALISSON, Kant’s theory of taste, 2001, caps. 4-5. 39 Cf. KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, §59.

na filosofia de Kant diz respeito aos limites do uso racional40. Desse modo, tal dialética versa sobre em quais condições o gosto se torna algo comunitário e comunicável. Para tanto, Kant parte do senso popular acerca do gosto: por um lado, se costuma dizer que cada um tem seu gosto; por outro lado, também é dito que sobre o gosto não se discute. Na filosofia kantiana essa situação forma uma antinomia, ou seja, um conflito entre duas proposições necessárias e aparentemente contraditórias.

A partir disso, Kant elabora uma tese e uma antítese do gosto41:

Tese: o juízo de gosto não se funda sobre conceitos: o juízo de gosto tem que se referir a um conceito que represente o belo, ou então não poderia reivindicar validade universal para qualquer um. Essa tese pode ser admitida apenas considerando que o sentimento de prazer não pode ser determinado por conceitos do entendimento, pois o belo não diz respeito ao que se pode conhecer de um objeto, mas a um sentimento que se liga a um conceito indeterminado para se pensar, ou seja, refletir sobre mais do que se pode saber.

Antítese: o juízo de gosto se funda sobre conceitos: o juízo de gosto pode ser motivado pelo direito de expressão válido para qualquer um, mas sem ser conduzido por conceitos determinados, ou então seria possível apresentar provas sobre o belo e decidir sobre quem tem razão. Essa antítese pode ser admitida apenas se o gosto estiver orientado para estabelecer o acordo, conquanto que nada possa ser decidido por provas; o juízo de gosto preza a esperança de que seja possível chegar a um consentimento entre as partes.

A resolução dessa antinomia serve para reforçar o uso correto do juízo de gosto: ele é reflexivo e reivindica o poder de ser universalmente comunicável. Não obstante, a resolução também significa um passo adiante feito por Kant em sua pretensão. Não se trata apenas de preencher as condições normativas do juízo do gosto, mas também de pressupor que certa cultura do ‘bom gosto’ atua como uma forma de condição objetiva para o juízo subjetivo. Quando se ajuíza sobre o gosto, não se quer apenas dizer como ele pode ser emitido; também se quer dizer como ele deve ser proferido. Logo, é preciso admitir que o juízo de gosto não lida apenas com um sentimento privado e subjetivo de prazer, pois significa também o lado universal e objetivo do sentimento de participação baseado numa tendência humana de socialização e numa faculdade de juízo estético que tem no poder de ser comunicável sua condição de possibilidade. Enfim, a importância da crítica kantiana do gosto pode ser avaliada pelo esforço do filósofo em promover a autonomia do belo em relação ao domínio do conhecimento e moral, assim liberando o gosto pessoal da autoridade alheia imposta pela tradição. Sem o sentimento de prazer pelo belo faltaria ao homem o desenvolvimento de uma de suas mais importantes

40 Cf. STOCKER, Barry. Aesthetic illusion: Kant’s dialectic of beauty, 2002. 41 KANT, Crítica da Faculdade de Juízo, 2013, §§56-57.

faculdades: a capacidade de julgar (em busca do consenso); sem a autonomia do gosto não poderia haver uma passagem sobre o abismo entre a natureza (e o que ela faz do homem) e a liberdade (o que o homem faz de si mesmo), ou seja, um mundo cultural e social compartilhado e preparado para o cidadão cosmopolita42 .

Greenberg e o juízo crítico da estética do gosto

Como Arthur Danto apresenta em After the end of art (1995), o século XX é marcado pelo fenômeno do pós-modernismo; logo, os temas em voga eram o fim da arte, o movimento de vanguarda, o kitsch cultural, entre outros. Obviamente, não convém tentar fazer uma leitura anacrônica de Kant sobre esses temas; ao invés disso, importa mais destacar sua influência e o potencial de seu pensamento. Como já mencionado, a CFJ de Kant não se destina nem se confunde com uma teoria do belo, discurso estético ou história da arte, pois trata de uma investigação acerca de uma faculdade que possui um poder de legislar a priori, embora sem determinar conceitos para a natureza e a liberdade. O juízo de gosto é, então, um termo médio entre o objeto da natureza (arte) e a liberdade de uma vontade (produção artística). No entanto, nem por isso a filosofia kantiana deixa de contribuir para as reflexões no campo da estética e da filosofia da arte. Pode-se dizer que a maior contribuição do pensamento kantiano seja reivindicar um tratamento independente para o gosto, assim como pretendia Baumgarten; a diferença entre ambos os autores é que Kant não entende a estética como uma disciplina do conhecimento sensível, mas como um juízo subjetivo com princípios próprios. A fim de examinar as consequências de uma autonomia da arte e do gosto vale observar, mesmo que brevemente, a influência kantiana para o crítico de arte Clement Greenberg, que reconhece Kant como o primeiro pensador moderno sobre a arte.

Greenberg foi um importante crítico de arte americano nas décadas de 1940-60, reconhecido pela sua apologia ao expressionismo abstrato americano, sobretudo o de Jackson Pollack. Greenberg propõe uma interessante interpretação da crítica da arte, especialmente por não buscar laços entre o artista e a história; em seu lugar, oferece uma estética racional. Para tanto, Greenberg recorre a Kant por ter encontrado no ‘método crítico’ a atitude que considera ser a mais importante reflexão sobre a arte moderna. Nesse sentido, define como arte modernista toda aquela que tem por tema a própria arte, sem lançar mão de qualquer outro saber ou autoridade. Isso significa que Greenberg acolhe de Kant principalmente a autonomia da arte e do juízo estético. Para o crítico americano, não há porque postular uma diferença entre experiência estética e juízo de gosto, considerando que este é o único meio para experimentar a arte, ou seja, a arte se experimenta ajuizando. Além disso, ele também concorda com Kant que o juízo de gosto está relacionado a uma complacência desinteressada, pois gostar ou não

de uma obra de arte não é algo que se pode escolher previamente. Portanto, trata-se de algo que não se pode ser ensinado ou governado por teorias científicas.

Um dos principais interesses de Greenberg na filosofia kantiana é sua crítica do gosto: “Kant foi, pelo que sei, o primeiro a declarar (em sua Crítica da Faculdade do Juízo) que os juízos estéticos são de valor não suscetíveis de prova nem de demonstrações, e até hoje não houve quem pudesse refutá-lo”; de modo que, segundo o autor, “após sua época [época de Kant], a questão da objetividade do gosto, do juízo estético, passou a ser considera mais insolúvel do que nunca (...) parece existir, cada vez menos, um modo de pôr fim a desacordos de juízos e apreciação”43, concluindo que, “a medida da superioridade de Kant está no fato de que ele avança em sua direção, e não se esquiva dele”44. Enquanto tema filosófico, o gosto aparece na pauta das reflexões a partir do século XVIII, principalmente entre os empiristas ingleses (Hume, Burke, Hutcheson, Shaftesbury). Não obstante, Greenberg gosta de enfatizar que após Kant, os historiadores e filósofos da arte negligenciaram o tema do gosto. Ora, para o crítico americano, não há como falar da história da arte sem buscar aí, de alguma forma, compreender qual de gosto se trata. Para Greenberg, o gosto é algo intuitivo e involuntário, portanto inevitável e objetivo; além disso, o desenvolvimento da arte somente pode ser compreendido por processos de autocrítica.

Contudo, Greenberg não parece disposto a se comprometer com a antropologia filosófica de Kant em sua totalidade; como o autor afirma: “não sou obrigado a aceitar a definição kantiana das faculdades do conhecimento para perceber que a essência do que ele diz a respeito do papel da atividade cognitiva na experiência fica confirmada pela minha própria experiência”.45 Ora, o fato de que o juízo de gosto proposto por Kant ser considerado impossível de provar não é incompatível com uma de suas maiores preocupações: a ideia de que o gosto é objetivo. Enquanto Kant se esforça para sustentar sua pretensão de universalidade aos juízos de gosto em suas condições de possibilidade formais e subjetivas, Greenberg acredita que os juízos de gosto, ao procurarem pelo assentimento de outros, derivam daqueles que mais se preocupam com a arte e lhe dedicam mais atenção. Assim, o autor declara a existência de um gosto superior (melhor gosto) que garantiria sua objetividade a partir da durabilidade de seus vereditos, ou seja, o conhecimento desses vereditos que perduram no tempo seriam a prova da objetividade do gosto. Nem por isso, Greenberg deixa de se precaver diante dessa asserção: “sei que coloco minha cabeça a prêmio quando ouso afirmar que enxerguei algo melhor que Kant – que, entre tantas coisas que fez, foi quem mais se aproximou da descrição daquilo que se passa na mente

43 GREENBERG, Clement. Estética doméstica, 2013, p.95. 44 GREENBERG, Estética doméstica, 2013, p.233. 45 GREENBERG, Estética doméstica, 2013, p.65.

quando se está em contato com a arte”46 .

Segundo Danto47, a interpretação de Greenberg sobre a leitura de Kant depende de duas convicções. A primeira se baseia na relação entre juízos sobre o belo e a aplicação de regras. Para Greenberg, a finalidade da arte é o cultivo do melhor gosto, e este cultivo resulta tanto do temperamento quanto da experiência. Um crítico de arte ‘kantiano’ diante da questão: ‘qual é o melhor gosto?’, deveria responder que o melhor gosto é aquele que, em cada geração, as pessoas dedicam maior tempo para discutir como aplicar regras e, em certos limites, buscam o consenso entre seus vereditos. A segunda convicção provém de uma estrita segregação do juízo estético do domínio prático. Greenberg extrai de uma tácita universalidade do juízo estético a tese de que a arte é o todo de uma parte. Isso implica que independente de qualquer conhecimento específico sobre a tradição da qual a arte pertence, aquele que possui o melhor gosto está ‘esteticamente em casa em qualquer lugar’.

Por fim, talvez seja preciso se precaver contra alguma postura exacerbada de Greenberg ao compreender o ‘método crítico’ de Kant como uma questão de gosto. De toda forma, é em Kant que ele vai buscar o rigor da reflexão estética, assim como um caminho seguro em direção à autonomia da crítica da arte; crítica que compreende a si mesma no juízo reflexionante. Nesse sentido, arte e gosto, em sua relação recíproca, se convergem na condição de possibilidade uma da outra. Falar em história, filosofia, teoria ou mesmo estética da arte sem fazer apelo ao gosto, tema que na visão de Greenberg o pós-modernismo atual procura evitar, seria o mesmo de falar da arte para não dizer nada. Segundo Greenberg:

A arte pode sobreviver sem o gosto – ouço vozes que remontar a 1913 dizendo isso. O que elas afirmam, sem saber, é que a arte pode sobreviver sem a arte, ou seja, que a arte pode sobreviver sem oferecer satisfações que somente ela oferece. Esse é o verdadeiro significado a arte sem gosto. Bem, se as satisfações exclusivas à arte são dispensáveis, por que então se incomodar com ela? Poderíamos tratar de alguma outra coisa (afinal de contas, existem coisas mais valiosas que a arte, como eu mesmo costumo destacar). Mas, no momento, falamos de arte48 .

considerações finais

À guisa de conclusão, o objetivo desse texto é apresentar como o pensamento de Kant contribui para a autonomia do belo enquanto conceito central da reflexão estética e da arte, a partir da importância que o juízo de gosto passa ocupar após a obra CFJ. Para tanto, dois contrapontos foram utilizados a fim de contextualizar o assunto e, ao mesmo tempo, destacar

46 GREENBERG, Estética doméstica, 2013, p.104. 47 DANTO, Arthur. After the end of art: contemporany art and the pale of history, 1995, p.86-89. 48 GREENBERG, Estética doméstica, 2013, p.106.

a relevância das observações kantianas. A resposta para a primeira parte do argumento diz respeito à evolução do conceito de belo de Panofsky (2000). Como visto, o autor parte de Platão para reconstituir o que chama de evolução do conceito de belo. Embora esse programa se limite até o período Renascentista, cumpre sua função de apresentar que o conceito de belo até esse momento carece de uma reflexão autônoma diante das tradicionais autoridades do Conhecimento, em relação à verdade, e do Bem, em relação ao moral. Nesse sentido, convém citar também Baumgarten e sua exigência de autonomia para a disciplina estética em relação ao pensamento filosófico clássico (ética, metafísica, lógica). O ponto-chave que faz com que a avaliação de Panofsky esteja relacionada com a crítica do gosto kantiana é justamente que sua interpretação enfoca a problematização entre o conceito de belo e o objeto estético. A resposta de Kant para esse problema é a introdução do juízo estético subjetivo e universalizável; desse modo, Kant é o primeiro a expor com consistente rigor regras de ajuizamento como critérios compartilhados, substituindo assim a noção clássica de Idea pela noção moderna do juízo de gosto.

A segunda parte do argumento diz respeito à importância do juízo de gosto, e para tanto, recorre ao trabalho do crítico de arte americano Greenberg (2013); nesse caso, pretende-se mostrar qual posição o legado kantiano ocupa na estética contemporânea. Segundo Greenberg, arte e gosto são indissociáveis quando se trata de arte modernista. A independência da arte alcançada no século XX após os movimentos vanguardistas também pode, de certa forma, ser entendida pela perspectiva kantiana, talvez invertida, de que o gosto tem sua condição de possibilidade no acordo; embora temas pós-modernistas enfatizem mais a tendência ao desacordo. Greenberg é um discípulo de Kant que ainda defende a possibilidade de um juízo comum obtido por meio de vereditos históricos. Porém, pode-se dizer que Kant busca algo mais em sua reflexão: ao defender e justificar o juízo de gosto como o poder de ser comunicável, não deixa de pretender que mais do que o gosto estético sirva de regra de ajuizamento para o belo na arte, também está em jogo um aspecto fundamental da dignidade de toda a humanidade.

bibliografia

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