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Opinião

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A leitura como

ponte para o (auto) conhecimento

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Foi preciso desacelerar, fi car mais tempo em casa, olhar para a família, vencer o tédio, reinventar a realidade e as nossas habilidades. Numa batalha árdua contra as plataformas de streaming e as redes sociais, os livros preservaram e conquistaram novos territórios, seja como ferramenta para a sobrevivência psíquica, válvula de escape, hábito resgatado ou novo hobbie

Texto Flávia Cardoso Fotos Arquivo pessoal

Imagem: internet

O EFEITO HUMANIZADOR E TERAPÊUTICO DA LEITURA

Certamente, mesmo os não leitores (re) conhecem os incontáveis benefícios que a leitura proporciona, entre eles, sem ordem de importância, destacamos: o incitamento da imaginação e da criatividade, a aquisição e o aprimoramento de conhecimentos, a ampliação do vocabulário e o desenvolvimento da escrita e do pensamento crítico. No entanto, durante o período de isolamento, a prática leitora tem sido também uma experiência terapêutica, uma forma de cuidar da saúde mental e um caminho para o fortalecimento de vínculos familiares.

Andamos muito doentes porque levamos uma vida fragmentada, estamos dispersos, longe de nós mesmos, longe do outro. Segundo o autor do livro “Literatura como remédio”, Dante Gallian, a Literatura nos coloca juntos. “A leitura de algumas obras nos reintegra. Muitas vezes pensamos, sentimos, enxergamos algo e, de repente, em meio a uma experiência literária, descobrimos que determinado autor conseguiu traduzir o que havíamos percebido e tornou claro o que estava escondido dentro de nós”.

Mais do que nunca, devido à realidade atual, estamos muito preocupados com o futuro, que sempre será incerto, e deixamos de viver o presente, alimentando o sentimento de ansiedade. Segundo o canal de comunicação Agência Brasil, a necessidade de cuidar da saúde mental aliada ao ócio fez com que o brasileiro passasse a ler mais. Com menos opções de lazer, recorrer aos livros foi a resposta para muitas pessoas durante o período de isolamento social. Isso porque, no decorrer da leitura, é possível criar uma conexão com a imaginação e visualizar histórias na própria mente e, com este exercício, esvaziá-la, afastando o estresse, o cansaço e a ansiedade.

A LEITURA SALVA

A respeito dos benefícios da leitura, principalmente em tempos tão difíceis, a RE ouviu a Bibliotecária do Sesi e Mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Marcela Antochio, que nos apresenta como grande verdade só conseguir enxergar os pontos positivos da leitura, primeiramente por entretenimento, mas também pela fuga à realidade que nos cerca. “Em um momento histórico mundial que estamos vivendo, a leitura nos traz o benefício de conhecer outros mundos, de nos cercar com diferentes possibilidades e cenários. Pensando em leitura como matéria prima de argumentação, análise crítica e compreensão dos fatos, ela nos proporciona um entendimento do que ocorre no país e no mundo, dando-nos a oportunidade e autonomia para interpretação dos fatos”.

A RE conversou também com a jornalista e professora Tamires Frasson, idealizadora do Coletivo Literário e Biblioteca Comunitária “Literocupa”, que defende com veemência as transformações pessoais e sociais que o ato de interpretar códigos linguísticos e conteúdos atemporais pode causar. “Costumo dizer que a leitura salva. E realmente salva! Salva do ócio destrutivo, salva do senso comum, salva das falácias, das mentiras às quais estamos expostos diariamente, principalmente neste momento. É uma ferramenta, uma arma, um alimento”.

Vale ressaltar que, além de todos os benefícios já sabidos, a experiência de ler pode desenvolver algo muito escasso nas relações humanas: a empatia. Já que, ao mergulhar num universo paralelo e conhecer outras histórias, lugares e costumes, podemos também enxergar de outros inúmeros ângulos, seja pela visão do autor ou de seus personagens, que podem revelar o quanto a experiência humana é difícil, é trágica, mas é também maravilhosa.

VOCÊ TEM FEITO PAUSAS?

“Precisamos dar um sentido humano às nossas construções. E, quando o amor ao dinheiro, ao sucesso, nos estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves do céu” (Érico Veríssimo –

“Olhai os lírios do campo”)

TRADIÇÃO X INOVAÇÃO

A leitura se disseminou neste último ano por todos os formatos, mas os livros digitais, e-books, alcançaram o dobro de vendas. Neste cenário, torna-se preocupante o impacto econômico-fi nanceiro causado às livrarias físicas, que quase não abriram neste período. É possível que, além do fator economia, haja também efeito no hábito leitor, já que a restrição no funcionamento das livrarias físicas impede o convívio, o manuseio dos livros e a socialização entre leitores.

Para o empresário, proprietário da Livraria Vamos Ler, Antonio Vendrame Filho, é indissociável manter ou desenvolver o hábito de ler sem visitar periodicamente bibliotecas, livrarias e outros ambientes literários. “Em tais visitas podemos analisar capas, temas e assuntos que podem nos interessar. A melhor técnica para aprender a apreciar um produto é conhecê-lo em seu real ambiente”.

Tonico, como é conhecido pelos clientes, acredita que estamos passando por um processo muito importante de mudança do comportamento dos consumidores deste mercado. “Acredito que o futuro das livrarias vai depender de cada empresário, o cenário não é dos piores, mas os livreiros terão que se reinventar, criar um modo diferente de atender seus consumidores, buscando especialização em atendimento e marketing. Será necessário também estudarem a fundo o perfi l de seu público, a fi m de realizar uma curadoria mais assertiva para quem frequenta seus espaços”. Tonico afi rma que o consumidor de livros nunca foi tão valorizado como estamos vendo nos últimos anos. “Um atendimento de excelência é fundamental, seja ele presencial ou virtual”.

FALTA ACESSIBILIDADE E VALORIZAÇÃO

Marcela afi rma que, por ser bibliotecária, sempre surge o questionamento sobre o futuro dos livros e dos espaços físicos. “Será que daqui alguns anos teremos livrarias, teremos bibliotecas? Na verdade, reformulo tais perguntas da seguinte forma: teremos tais ambientes no Brasil? Porque tenho certeza que em muitos países, principalmente os desenvolvidos e que possuem uma estrutura de apoio e incentivo à educação realmente forte, essa questão não seria avaliada, pois são ambientes imprescindíveis para a construção do indivíduo e de uma sociedade ativa. Talvez não tenhamos mais livros impressos, já que o meio virtual está cada vez mais próximo e presente em nossas vidas. Mas a existência de espaços de trocas de conhecimento e informações sempre será necessária”.

A RE conversou também com o jovem leitor Leonardo Barbosa, que representa a geração dos eletrônicos e, para a grande surpresa, apesar de vivenciar a invasão dos e-books, afi rma que, assim como ele, muitos leitores não vivem sem o “bom cheiro” dos livros físicos. “Tenho uma visão muito otimista, acredito que o número de leitores vai crescer exponencialmente, sejam clientes de livrarias ou de e-commerce. Só precisamos que os livros sejam acessíveis. O hábito de ter ainda é visto como uma prática elitista”.

Sobre este pensamento, Tamires compartilha da mesma opinião. “São muitos os fatores que afastam as pessoas dos livros. Um deles é a inacessibilidade. Muitas pessoas não têm nem acesso a livros. Acham que leitura é coisa de gente chique, acreditam que é algo distante, longe da realidade”. A professora, que também é idealizadora de uma biblioteca comunitária no município, afi rma que tem esperanças de que a leitura possa ser mais valorizada, no quesito de sua importância como instrumento de transformação social. “Mas precisa ser mais acessível, estar ao alcance de todos”.

A SOBERANIA NA TECNOLOGIA E SEUS EFEITOS COLATERAIS

Por meio de uma análise de perfi s de redes sociais, a empresa de tecnologia “DNPontocom” revelou que sete em cada dez brasileiros leem apenas os títulos das notícias. Tal constatação explica a disseminação de fake news e a quantidade de interpretações equivocadas de notícias e informações. Ou seja, o Brasil ainda é um país de poucos leitores.

Para Marcela, tal fato está relacionado com a forma com que utilizamos os novos meios de comunicação e entretenimento. “Veja

bem, não estou dizendo que os grandes vilões são as novas tecnologias, redes sociais, entretenimentos virtuais em geral, mas sim o modo como fazemos uso dessas tecnologias; o que era para servir de apoio, transformou-se, ao meu ver, em uma necessidade imediatista, estamos sempre buscando soluções prontas, observações rápidas e que não exijam talvez muita concentração ou análise profunda. Quando falamos em leitura é exigido de nossos cérebros um nível de interpretação que, muitas vezes em nossas rotinas, não queremos explorar. A leitura atualmente anda na faixa contrária da sociedade imediatista, a construção de um ser pensante é algo que leva tempo e, no momento, tempo é algo que não temos em nossas rotinas”.

Um fator muito preocupante com o uso exagerado dos eletrônicos é a falência da imaginação. As pessoas não contam mais histórias, elas mostram histórias. Chegará um tempo em que não conseguiremos mais processar e interpretar as informações que já se encontram prontas.

MÃOS À MASSA (OU MELHOR, AOS LIVROS)

Ainda precisaremos seguir com marcha lenta à vida que tínhamos antes deste trágico período histórico. Portanto, a leitura - e tantos outros hábitos saudáveis - ainda pode ser uma aliada em nosso cotidiano massacrante e incerto.

Segundo o fi lósofo Montesquieu, o gosto é capaz de ser formado. Comecemos por aquilo que nos apetece, que mais nos corresponde, tendo em vista que a sensação é o ponto de partida para o conhecimento.

Leonardo, que decidiu incluir a leitura em sua rotina há três anos, diz que foi uma das melhores escolhas de sua vida. “Eu acredito em um mundo melhor proporcionado pelos livros, posso dizer por experiência própria que a leitura me salvou das grades da ignorância. Reservo de trinta minutos a uma hora por dia para as minhas leituras, pois é preciso manter a constância, mas sugiro que cada pessoa descubra e respeite o seu tempo. Tudo é difícil no começo, mas se temos um motivo para começar, basta não esquecermos dele”.

ENCONTRE O SEU LIVRO

Tamires, que leciona Língua Portuguesa, pratica mediação de leitura diariamente com seus alunos e também com as crianças e jovens que buscam pela sua biblioteca comunitária. Em suas ações de incentivo, a educadora sugere irem com calma, assim como acontece quando a gente começa a aprender a andar: um passo por vez. “Se começou a ler algum livro e não gostou, para e procura outro. Não adianta ir até o fi nal não suportando a leitura, só para concluir por concluir. Se não prendeu a atenção e não atingiu o pontinho mágico, começa de novo, com outro. Forçar uma leitura pode criar uma barreira, o que difi culta o hábito, torna a prática chata”.

Marcela, que também faz mediações de leitura em sua rotina há mais de sete anos, relembra uma citação constante na área de Biblioteconomia: “Todo leitor tem seu livro! Seja ele com muitas páginas, imagens ou quadros, o que realmente importa é experimentar. É preciso ir a uma livraria, uma biblioteca, deixar os olhos se encantarem pela imensidão de possibilidades”.

A bibliotecária ainda afi rma que incluir a leitura na rotina é como incluir atividades físicas, momentos em família ou aquela conversa com os amigos. “Precisamos antes de tudo moldar o tempo a nosso favor e defi nir o que é importante para nossas vidas. A leitura é um momento consigo mesmo, de autoconhecimento, pertencimento e refl exão, ela abrirá portas para muitas transformações pessoais e sociais. É importante enxergar como um momento inspirador, os cinco minutinhos antes de dormir podem ser os mais preciosos do dia”. 

INDICAÇÕES DOS ENTREVISTADOS

Livros de Poesia – Autora Hilda Hilst “Sobrevivendo no inferno” – Racionais MC´s “A insustentável leveza do ser” – Milan Kundera “Torto arado” – Itamar Vieira Jr. “O Senhor dos anéis”, “Hobbit” e “Silmarillion” – J R R Tolkien Trilogia do “Rei Artur” - Bernard Cornwell “Harry Potter” - J. K. Rolling “Fernão Capelo Gaivota” - Richard Bach “O corpo fala” – Pierre Weil “A bicicleta azul” – Reginé Deforges “O príncipe” – Maquiavel “O que eu sei de verdade” - Oprah Winfrey “A grande saída” – Angus Deaton

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