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6º Domingo após Epifania – Lucas 6.17-26
from Proclamar Libertação 43 - 2018-2019
by Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
PRÉDICA: LUCAS 6.17-26
JEREMIAS 17.5-10 1 CORÍNTIOS 15.12-20
6º DOMINGO APÓS EPIFANIA
17 FEV 2019
Samuel Gaussmann
Sermão da baixada: igreja “pé no chão” 1 Introdução: Situando...
O conhecido sermão do monte de Mateus tem uma versão diferenciada em Lucas. Nesse, as bem-aventuranças são temperadas com azedos ais, que são necessários para lembrar a igreja de ter os “pés no chão” para caminhar como Cristo entre o povo, compadecendo-se dele e agindo por e com ele. O cenário de uma baixada é simbólico para essa “descida” do discurso teológico para a realidade dos ouvintes. A adesão ou não ao projeto de Deus personificado em Jesus Cristo é que vai situar as pessoas no terreno das bem-aventuranças ou dos ais. Uma relação desse texto com o tempo litúrgico da Epifania é que a partir do discurso e prática de Jesus surge algo novo (Epifania – palavra grega que significa “aparição”). E essa perícope, tão densa em conteúdo, constitui apenas uma introdução ao sermão.
O profeta Jeremias teve que denunciar os graves pecados de Israel. No desespero diante do inimigo (rei Nabucodonosor), Israel não se voltou a Deus, mas buscou auxílio na inteligência e força humanas (rei do Egito). O profeta afirma que maldito é o ser humano que confia nos recursos humanos e bendito é o que confia em Deus. É um discurso semelhante ao do evangelista, que aproxima a fala de Jesus a um discurso profético.
No trecho da carta paulina, o apóstolo destaca o fato de a fé apurar nossa visão sobre a vida, percebendo que o sentido da vida é maior que a própria vida: Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens (15.19). E isso é tão grandioso que vale tanto para transformar nossa vida no agora (dá sentido e motiva a servir) como nos garante um futuro e, com isso, esperança (ressuscitar como Cristo ressuscitou).
2 Exegese: Chegar mais perto
No v. 17 Lucas descreve o cenário no qual Jesus proferiu o de agora em diante denominado “sermão da baixada” – um lugar plano. Jesus está acompanhado de seus discípulos, seguidores e grande multidão. A delimitação “toda a Judeia”, no texto original, também pode ser traduzida por “toda a terra de Israel”. Tiro e Sidom eram cidades que ficavam no litoral norte do mar Mediterrâneo, fora da terra de Israel, e representam que a mensagem do evangelho será anunciada também aos não judeus, como, de fato, acontece no livro de Atos. As multidões
vieram (v. 18) com interesse em cura e libertação. O problema é que muitos eram curados e libertos, mas não assumiam compromisso com o reino de Deus.
“Jesus disse” (v. 20): aqui inicia o “sermão da baixada”, que finaliza no v. 49. O sermão do monte (Mt 5 – 7) tem 107 versículos e o da baixada apenas 30. Esses sermões refletem uma compilação de ensinos curtos de Jesus que já circulavam entre os discípulos e que ambos os evangelistas usaram, conforme o público a que se dirigiam e seus estilos pessoais. Lucas não registra um sermão completo como Mateus; os ensinos paralelos de sua narrativa se devem ao hábito de Jesus de repetir os mesmos conceitos em ocasiões diferentes. Podemos observar ainda que no sermão do monte a subida à montanha representa algo espiritual, pois as montanhas eram lugar de encontro com Deus. Quando consideramos que Mateus escreveu principalmente para leitores judeus que haviam se convertido ao cristianismo, não podemos deixar de notar um paralelo entre Jesus e Moisés. Mateus registra o sermão em um monte porque quer retratar Jesus como um novo Moisés, que faz uma nova entrega da lei divina a um novo povo de Deus que está sendo formado: a igreja. A planície, por sua vez, simboliza o mundo onde acontecem os dramas humanos, e representa a “descida” de Deus em Jesus na realidade humana para anunciar sua mensagem. Nesse sentido, é interessante avaliar ainda a perspectiva do terceiro evangelho sinótico: Marcos. Em Marcos 4, podemos falar de um “sermão do lago/mar”, pois com exceção do seu final (Mc 4.35-41), parábolas são o tema dominante desse capítulo. Qual o significado do lago, do mar? Na apocalíptica, o mar é o lugar de onde surgem as forças monstruosas dos impérios (Dn 7; Ap 13). Na cosmovisão da época, o mundo era plano e no fim do mar havia um abismo com monstros. Em Marcos, Jesus aparece sempre agindo à beira-mar: lá forma suas comunidades, prega a multidões, cura enfermidades e, finalmente, põe o mar sob controle (Mc 4.35-41). Cada evangelista cria seu cenário ideal para impactar a sua mensagem sobre Cristo.
Os “ais” contra os ricos e fartos não aparecem no sermão do monte em Mateus, que aborda a pobreza na dimensão espiritual. O tema da desigualdade social tem grande relevância na definição do ethos, do comportamento desejado dos seguidores de Jesus na comunidade lucana dos anos 90. No cântico de Maria (Lc 1.51-53) se desenvolve esse eixo da adesão aos pobres: 1. derrubou do trono os poderosos; 2. exaltou os pobres; 3. saciou os famintos; 4. despediu vazios os ricos.
Na língua grega existem duas palavras para “pobre”: penēs, que vive apenas com o necessário; e ptochos, que Lucas usa em seu sermão e significa mendigo, desprovido de qualquer sustento. Ptochos provém do verbo que significa “agachar-se” ou “esconder-se de medo ou vergonha”. Em contrapartida ao significado desse verbo, os ricos são descritos como aqueles que se “levantam” e “se exibem”, confiantes no poder de suas riquezas. Na tradição grega de Jesus, não é usado uma única vez o termo mais ameno (penēs), somente ptochos, o que faz de Jesus um porta-voz dos mendicantes miseráveis.
A consolação dos ricos é a sua riqueza, porque é duro para eles deixá-la, como no caso do jovem rico (Lc 18.18-23). A união com Jesus é o fundamento para uma vida plena. Nesse sentido, vale ressaltar que o termo bem-aventurado significa muito mais do que “feliz” (termo usado na Nova Tradução na Lingua-
gem de Hoje – NTLH). Significa desfrutar do favor de Deus. Ter o favor de Deus não significa não sofrer, mas ter sustento também nos momentos difíceis e saber que até nos sofrimentos Deus está presente. No texto grego usa-se a voz passiva, indicando a intervenção do próprio Deus, revelado por Jesus, em sintonia com o conceito de reino de Deus como situação onde reina o poder de Deus, a ação de Deus.
O significado da palavra “ai” na Bíblia está ligado à lamentação e dor, e também pode ter conotação de condenação ou juízo. O Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento assim define essa expressão: “É uma exclamação de dor ou de raiva e deriva de raízes que significam ‘uivar’. Empregado também para expressar desespero (1Sm 4.7), lamentação (1Rs 13.30), insatisfação (Is 1.4); dor (Jr 10.19) ou uma ameaça (Ez 16.23)” (Coenen; Brown, 2003, p. 46). Os pobres e a intervenção de Deus são temas recorrentes na literatura profética de denúncia do pecado e anúncio da graça. Ao colocar nas bem-aventuranças uma contraposição com os ais, Lucas transita do gênero sapiencial, que é típico das bem-aventuranças, para o profético, demonstrando com clareza um perfil de Jesus profeta.
O advérbio “agora” sinaliza a mudança que surge com o reino, já presente na pessoa de Cristo. Na quarta bem-aventurança há algo distinto: aparece a conjunção “quando”. Com isso se demonstra que todas as vezes que os discípulos de Jesus passarem por perseguição, devem manter a confiança alegre, e não o medo. No último ai também aparece a conjunção quando.
3 Meditação: A mudança que precisamos ser!
Em relação à transmissão dos ditos de Jesus das bem-aventuranças, percebemos que Lucas apimenta o material original a que teve acesso. Isso é muito importante para que não se perca o específico de Lucas, pois o texto de Mateus é muito mais conhecido pelas comunidades, e na pregação o “ponto de partida” dos ouvintes será o sermão do monte de Mateus, com os pobres “de espírito” e não com os pobres “de verdade”, que estão nas ruas ao redor de nossos templos.
O paradoxo é recurso comum em Lucas e indica uma ênfase desse autor: a força transformadora da mensagem de Cristo. Destacando o específico de Lucas convém aprofundar os “ais”. Os “ais” de Lucas nos transmitem a incisiva mensagem de que o projeto do reino de Deus não tolera o consumismo. O ser humano é parte da criação, uma engrenagem que deve administrar e preservar o bem da criação. No entanto, a engrenagem da humanidade é que está emperrando o bom funcionamento da criação divina e cada vez mais a está destruindo. O discurso de Jesus é um alerta para que a escala de valores seja revista, que a exploração das pessoas e da criação vão nos levar à ruína. É revolucionário trazer um discurso em que os pobres, os famintos e os que choram são bem-aventurados, são dignos perante os olhos de Deus. Os pobres de antigamente e de hoje só ouvem o discurso de que não são dignos, são desgraçados e nada vai mudar sua sorte. A fé cristã é um meio de empoderar as pessoas para uma luta pela igualdade social. E essa luta vai gerar conflitos, tanto que Jesus menciona que os que agirem de acordo com os valores do reino serão odiados e perseguidos como foram todas as pessoas engajadas pelo reino de Deus. Percebemos isso no v. 23 quando Jesus denota a
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gravidade da situação e remete para a vida eterna a plenitude da causa. Nosso compromisso é agora com os que sofrem e a criação ameaçada, a vitória já a temos pela cruz de Cristo, mas a plenitude da bem-aventurança será na eternidade.
No primeiro lamento de advertência (v. 24), Jesus fala para aquelas pessoas que têm riquezas e/ou são apegadas a elas. Uma palavra me chamou a atenção: consolação. Conforme a tradução de Almeida, esse termo pode ser uma chave de interpretação. É como se Jesus dissesse: “Lamento muito por vocês que são ricos e que têm encontrado nas riquezas o consolo de suas vidas”.
Pode parecer até estranho falar de buscar consolo no atual cenário da igreja cristã, sobretudo nas inúmeras igrejas propagadoras da teologia da prosperidade. Afinal, os “profetas” do sucesso estão nos programas de TV anunciando que crente fiel não sofre, não adoece, não perde o emprego e não passa por qualquer outra dificuldade. Basta apertar a campainha e o Deus garçom vem atender seus pedidos. No entanto, precisamos constatar: somos submetidos a tantos sofrimentos e estamos tão aquém do ideal de Deus para nós, que todos, sem exceção, precisamos ser consolados. Aliás, aqueles que acham que não precisam de consolo são os que mais precisam! Quando alguém perde o emprego precisa de consolo. A experiência de procurar, como ganhar o pão de cada dia para sustentar a família e não conseguir é um corrosivo danoso para a autoestima. Quando se é vítima da violência urbana, precisa-se de consolo. Quantos casos desses conhecemos perto de nós? A violência não faz curva em nossas comunidades. Quando nos sentimos inadequados e não nos encaixamos em nenhum perfil, precisamos de consolo. Jesus deixou um alerta sobre onde estamos buscando consolo. Onde você tem buscado consolo para enfrentar as dificuldades da vida? Naquilo que você possui ou na esperança de possuir algo? Nos seus filhos? Nas drogas lícitas ou ilícitas? No sono? No trabalho duro? Nos estudos intensos? Tenha algo bem claro diante dos olhos: suas posses podem ser roubadas, seus filhos podem não realizar seus sonhos, o efeito das drogas passa e deixa um vazio ainda maior. Depois de uma tarde de sono, o mundo continuará lá. Depois de 12 horas de trabalho, seus medos ainda estarão esperando por você. Um dia você se arrependerá de ter investido tantas horas em estudo e desperdiçado a convivência com as pessoas que amam você.
Aprofundar a busca por consolo evita enveredarmos pelo caminho de que os ricos são maus apenas por serem ricos e os pobres bonzinhos apenas por serem pobres. O texto de Lucas não permite uma rotulação superficial, mas um desnudamento das intenções e ações.
4 Imagens para a prédica: Igreja junto do povo
Assim como Jesus desceu até o povo, cada qual deve descer ao contexto de sua comunidade e perceber em quais aspectos é possível reunir, mobilizar, conscientizar, empoderar.
Em muitos contextos a IECLB parece estar numa bolha, flutuando em “espaço paralelo”: ela não está no “topo do monte” (não congrega multidões nem arrecada milhões), mas ainda não chegou às baixadas. A diaconia seria uma maneira de “estourar a bolha” e viabilizar ser igreja “pé no chão”. Enfatizando nossa
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dimensão diaconal, vamos descer à realidade do povo e traduzir o evangelho em ações. Quais trabalhos diaconais estão sendo realizados em seu contexto? É oportuno distinguir entre assistencialismo e diaconia, esclarecendo esse conceito teológico a partir da prática de Jesus. Nenhuma ação divulga tanto o nome e o jeito da igreja luterana como a ação diaconal.
Fazer placas com o conhecido sinal do curtir das redes sociais e espalhar pelo templo. Questionar: o que curtimos em nossa comunidade? Depois de curtir, provoque o agir! Somos rápidos em curtir e lentos em agir. Mesmo que os “ais” doam nos ouvidos e as bem-aventuranças nos questionem, é isso que abre a mente para uma ação transformada e transformadora. Podem ser confeccionadas ainda outras placas (no estilo das usadas em festas de casamento), com as seguintes frases: • Eu ajudo. • Eu contribuo. • Partiu viver o sermão. • #Jesusmedesafia. • O sermão da baixada me levanta do sofá. • Diaconia: eu pratico! • Conhece? Eu te explico. • Cada dia melhor pela fé. • Pela fé te vejo como irmão. • Ai de mim se não vivo o que eu digo.
5 Subsídios litúrgicos: Bem-aventurados sois!
Explorar o cântico de Maria (Lc 1.51-53): leitura bíblica, cantado (HPD 307) ou declamado, e também Jeremias 17.5-10. Kyrie
Tem piedade, Senhor, porque buscamos consolo naquilo que é ilusório, buscamos segurança naquilo que é transitório. Tem piedade de nossa gente maltratada, explorada e marginalizada. Faze-nos ouvir tuas bem-aventuranças, encontrar motivos para não desistir e forças para lutar. Tem piedade de nossa gente enganada e manipulada, que tem bolsos cheios, consciência turva e coração congelado; faze-os ouvir teus ais para se converter, se transformar e encontrar em ti a segurança e o sossego que procuram. Tem piedade, Senhor! Bem-aventurados os que clamam e buscam por ti!
“Não é porque as coisas são difíceis que não nos arriscamos; é porque não nos arriscamos que elas se tornam difíceis.” (Sêneca)
Bibliografia
COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do
Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003. SOUZA, Fernando Figueiredo de. Mendigos e ricos nas palavras de Jesus segundo Lucas: uma análise de Lucas 6.20-26. 2012. Tese (Mestrado em Ciências da Religião) – PUC, São Paulo, 2012.
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7º DOMINGO APÓS EPIFANIA
24 FEV 2019
Léo Zeno Konzen
PRÉDICA: GÊNESIS 45.3-11,15
LUCAS 6.27-38 1 CORÍNTIOS 15.35-38,42-50
1 Introdução A vida e os caminhos de morte
Duas experiências perpassam as leituras bíblicas deste domingo: “Deus escreve reto por linhas tortas” e o apelo para que nos tornemos semelhantes ao próprio Deus.
A primeira experiência poderia ser chamada com outro nome. Ela expressa a convicção bíblica, judaica e cristã, de que “há males que vêm para o bem” e de que Deus pode transformar pecados humanos em fonte de vida, podendo inclusive transfigurar nossa condição humana pela ressurreição. Que nome daríamos a essa experiência?
Receba o nome que receber, essa experiência está no centro da leitura do Gênesis, que tomamos como referência para a prédica de hoje: o pecado ou o crime dos irmãos de José de vendê-lo a mercadores que o levaram para o Egito, Deus o transforma em fonte de salvação e de vida para o pai deles e para suas famílias. Por outro lado, na Primeira Carta aos Coríntios Paulo reflete sobre a experiência da ressurreição pela qual Deus transforma nossa pobre condição humana, transfigurando-a a maneira da semente que morre como tal, mas se transforma em planta.
A experiência que está no centro do culto de hoje recebe um complemento importante com outra. No Evangelho de Lucas, Jesus propõe o desafio de nos tornarmos generosos, misericordiosos ou perfeitos como é nosso Pai celestial. Esse desafio já se encontra no relato de Gênesis: José supera os sentimentos de vingança e vê no mal que os irmãos lhe fizeram uma misteriosa ação de Deus para tornar-se, posteriormente, salvador daqueles que, de certa forma, o mataram.
2 Exegese
O texto de Gênesis 45.3-11,15 é uma pérola encontrada numa mina de pedras preciosas. O livro de Gênesis, com seus 50 capítulos, apresenta riquezas amadurecidas ao longo de séculos, integrando contribuições de diversas tendências teológicas e sedimentando experiências vividas ao longo da caminhada. Não pretende ser um livro científico ou de história contada objetivamente, mas uma espécie de coletânea organizada de relatos que sustentariam a fé e a vida das pessoas, das famílias e do povo inteiro.
Na coletânea de relatos, encontram-se inicialmente os capítulos 1 a 11, que fixam seu olhar para aquém do início do povo da Bíblia. Ao narrarem as origens do universo e da humanidade, projetam para trás a riqueza da luz que a fé no Deus da libertação produzia nos seus olhos, na sua inteligência e no seu coração. A seguir, o livro evoca os personagens que marcaram as origens do povo que se considera eleito: Abraão (cap. 12 a 25), depois Isaque, Esaú e Jacó (26 a 36) e José (37 a 50). É nesse último bloco que se encontra o texto da meditação de hoje (45.3-11,15).
José era um dos doze filhos de Jacó (também chamado Israel, o que é um dos indícios de que o relato integra tradições diferentes). Ele e Benjamim eram filhos de Jacó com Raquel, os demais tinham por mães outras mulheres de Jacó. José contava com uma especial predileção de seu pai, o que gerou a rejeição por parte de seus irmãos. Enquanto os outros filhos de Jacó pastoreavam em terras distantes, o pai lhes enviou José a fim de obter notícias. Para se livrar do incômodo irmão, jogaram-no numa cisterna e só não o mataram porque Rubem os convenceu a terem bom senso. Porém, sem o conhecimento e sob posterior protesto de Rubem, venderam José a uma caravana de comerciantes midianitas, que o levaram ao Egito.
No Egito, José conquistou logo a confiança da corte do Faraó e passou a ocupar alto cargo. Teve de passar, no entanto, um tempo na prisão, por falsas acusações. Foi libertado por ter interpretado corretamente os sonhos do Faraó, por meio dos quais Deus revelava a chegada de dois períodos de sete anos, um de grande abundância (representado por vacas gordas) e outro de extrema carestia (vacas magras). Com essa revelação, o Egito poderia preparar-se durante os primeiros sete anos para enfrentar os posteriores, que seriam de extremas dificuldades. E José foi constituído administrador da política adequada para essa situação.
O período das sete “vacas magras” atingiu também a terra onde vivia Jacó. Tendo sabido que no Egito havia provisões, o pai enviou seus filhos para comprarem mantimentos. No encontro com os irmãos, José os reconheceu, mas eles não perceberam que estavam diante daquele que tinham vendido. José inicialmente foi duro e exigente com os irmãos. Exigiu, inclusive, que buscassem Benjamim, que havia ficado com o pai. No retorno, com a presença de Benjamim, a “novela” cresce em dramaticidade. José faz de conta que vai reter e prender Benjamim, o que provoca um longo e desesperado apelo de Judá, que culmina com a oferta de si mesmo como escravo no lugar de Benjamim.
É nesse contexto de dolorosas emoções que José não se conteve mais e se revelou a seus irmãos. Nosso texto apresenta justamente o momento dessa revelação dramática. Para manifestar-se, José pediu que todos os seus servos egípcios se retirassem e, em seguida, em meio a copioso pranto que podia ser ouvido de longe, deu-se a conhecer (45.1-2).
Os v. 3-4 apresentam as palavras iniciais dessa revelação: Eu sou José. Meu pai ainda vive? Chegai perto de mim. Eu sou José, vosso irmão, que vós vendestes no Egito. As palavras de José causam total perplexidade nos irmãos. Até aqui, eles poderiam imaginar uma tremenda vingança do irmão. Por isso “tremiam diante dele” e não conseguiam responder nada.
A surpresa começa com as palavras que José pronunciou em seguida. Ele pediu a seus irmãos que não se afligissem e não se atormentassem por aquilo que haviam feito com ele no passado. E disse o motivo dessa postura estranha: por contraditório que pudesse parecer, foi Deus quem o havia enviado ao Egito antes deles para preparar-lhes o sustento na carestia e salvar-lhes a vida: [...] não fostes vós que me enviastes aqui, mas Deus. Mesmo lembrando aos irmãos que foram eles que o venderam no Egito, não lhes levou em conta o seu pecado ou crime, porque viu a mão de Deus agindo misteriosamente nesse fato do passado. Por linhas tortas Deus havia escrito reto. Deus havia transformado o pecado em fonte de graça.
Essa “teologia de José” trazia consigo também a superação da violência ou da vingança, ou seja, gerou nele o perdão aos irmãos pelo crime cometido. Ele até ajudou os irmãos a superarem o sentimento de culpa, pedindo que não se afligissem nem se atormentassem pelo fato de o terem vendido. O que terá provocado em José esse perdão e essa exortação para superarem o sentimento de culpa? O texto não tematiza isso, mas dá a entender que foi justamente a percepção de que Deus havia transformado o pecado em graça, a morte em vida e o crime em caminho de sobrevivência.
Passo seguinte foi encarregar os irmãos de buscarem apressadamente o pai com toda a sua família e seus rebanhos. O filho, agora poderoso administrador no Egito, garantiria um espaço de vida para todos eles, não lhes deixando faltar nada.
A perícope que nos ocupa termina com a comovente cena de José beijando e cobrindo de lágrimas todos os irmãos. E os apresenta, agora, conversando com ele. A reconciliação havia prevalecido, no contexto dos misteriosos desígnios de Deus.
3 Meditação
O bom senso e a sabedoria que nos vêm do Espírito de Deus nos recomendam prudência no falar, principalmente quando se trata de Deus, de sua vontade ou de seus projetos. Não convém atribuir a Deus tudo o que acontece em nossa vida pessoal e na sociedade. Muitas vezes, é mais sábio calar do que falar. Outras vezes, é preciso abrir a boca e denunciar maquinações e práticas que prejudicam e até destroem a vida de irmãos e irmãs. Crimes, irresponsabilidades e violências não podem ser contabilizados como vontade de Deus.
No entanto, a mesma sabedoria e o mesmo bom senso que procedem de nossa fé cristã não põem limites à ação divina em nossa vida e na história da humanidade. Embora habitualmente Deus aja por meio da coerência humana com as sábias orientações de sua palavra, ele pode transformar males em fontes de vida. Ele pode tirar vida nova da morte. Ele pode “escrever reto por linhas tortas”.
É o que vemos no episódio bíblico de José, vítima de um horrendo crime de seus irmãos. Pela lógica da teologia da retribuição, os irmãos só teriam castigos divinos a esperar. Porém as más intenções e os atos violentos se converteram nas mãos de Deus em caminho de salvação para eles mesmos e para toda a parentela.
Esse não é único caso do gênero que a Bíblia apresenta. O exílio na Babilônia é talvez o grande evento da história do povo de Israel no qual Deus transforma
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uma enorme tragédia em momento de grande crescimento. Com efeito, o exílio foi um período de intensa reflexão e produção teológica, que originou muitos textos novos e proporcionou amplas releituras daqueles que já faziam parte do patrimônio cultural do povo.
A cruz de Jesus é o exemplo mais contundente: o crime da prisão injusta, da tortura e da morte violenta numa cruz escandaliza qualquer pessoa de bom senso. Como poderia haver positividade nisso? Como poderia Deus fazer desse pecado uma fonte de graça, inclusive para quem praticou o crime?
Paulo é outro personagem que entra nessa lista de surpresas: seu zelo, que chega ao fanatismo, o faz perseguir, prender e consentir com a morte de seguidores de Jesus. Como poderia Deus se valer de uma pessoa desse quilate para transformá-lo em missionário ardoroso de Jesus e do seu evangelho?
Os exemplos poderiam ser multiplicados. Mais do que fazer isso, poderíamos relacionar agora esse tema com o da ressurreição e da misericórdia ou generosidade, propostos pelas outras leituras deste domingo.
A fé na nossa ressurreição também vai na contramão da lógica humana, pois a morte parece ser o mal maior, diante do qual não há o que fazer. Já não se trata do mal do pecado ou de algum crime, mas da barreira da limitação humana: somos mortais. Porém nossa fé afirma convictamente que Deus supera essa barreira, ele transforma esse mal em bem maior. Pela ressurreição, de sementes corruptíveis nos transformamos em seres incorruptíveis.
A generosidade e a misericórdia para com os que nos fazem mal – para não falar de inimigos – é outro tema da sabedoria, que é fruto do Espírito de Deus em nós. Sua prática também supera a cultura da retribuição baseada no mérito e na culpa. Para amar os inimigos e fazer o bem aos que nos prejudicam, é preciso estar em profunda sintonia com Deus, que é rico em misericórdia e “faz chover” sobre justos e injustos. José, vendido pelos irmãos, parece ter assimilado isso, pois não somente perdoou, como também pôs a serviço sua condição que Deus lhe proporcionou “escrevendo reto por linhas tortas”.
A reflexão nos conduz aos nossos tempos. Um exemplo de um “José” talvez tenha sido Nelson Mandela, que passou anos na prisão e depois se tornou um extraordinário estadista, promoveu políticas não de vinganças contra seus perseguidores, mas de integração nacional e de construção de uma pátria solidária.
Concluindo essa meditação, voltamos ao seu início: não podemos nos alegrar com injustiças, sob a alegação de que Deus vai transformar isso em fonte de vida. Ele pode até fazer isso, mas deixemos isso para ele... Deveremos continuar sendo profetas que anunciam e denunciam, missionários e missionárias que propõem práticas de justiça, solidariedade e fraternidade, e questionam a exploração e a exclusão. Mas precisamos também manter as portas e janelas abertas para que Deus transforme situações de pecado e de morte em fontes de vida. Isso permite que não desesperemos em meio aos graves problemas que nos envolvem na vida pessoal, comunitária e social.
4 Imagens para a prédica
Expressões como “Deus escreve reto por linhas tortas” e “há males que vêm para o bem” podem ser proveitosas na prédica. Mas precisam ser contextualizadas, para não induzirem a simplificações injustificáveis. O próprio relato bíblico de José no Egito é uma imagem dessa teologia.
Sementes, para se tornarem plantas, precisam passar pelo mal da morte. Essa imagem pode auxiliar na reflexão sobre Deus como misterioso condutor de nossa história, como também sobre nossa ressurreição.
Deus é providente, ele encaminha as coisas para o bem de seus filhos e suas filhas. Porém não podemos banalizar essa convicção com nossa irresponsabilidade.
Outra afirmação bíblica que pode servir de imagem é: “Para Deus nada é impossível”. Tentar a Deus, exigindo dele milagres ou provas, é certamente condenável. Mas desacreditar em sua força transformadora também não é coerente com nossa fé cristã. De males praticados por nós Deus pode tirar bens. Ele pode transformar o pecado em fonte de graça. Da morte ele pode tirar vida.
Quem é ou pode ser igual a Deus? Essa sábia interrogação também previne contra falsas ambições e contra prepotências humanas. No entanto, na “novela” de José no Egito, José revela ter assimilado o modo de ser de Deus. Manifestou ter aprendido aquilo que Jesus propõe no evangelho previsto para este domingo: Sede misericordiosos [ou generosos, perfeitos] como vosso Pai. Assimilar o modo de ser de Deus, eis o chamamento que nos é feito em nosso batismo!
5 Subsídios litúrgicos
No culto, pode-se fazer pedidos de perdão, tais como: a) Nós confessamos, Senhor, nossas traições a nossos irmãos e nossas irmãs, jogando-os ou permitindo que sejam jogados na desgraça. Perdão, Senhor! b) Nós confessamos, Senhor, nossa falta de confiança na tua amorosa providência, nos momentos de dificuldades e crises. Perdão, Senhor! c) Nós confessamos, Senhor, nossa dificuldade em perdoar aqueles que nos prejudicam ou nos fazem o mal. Perdão, Senhor!
Pode ser aproveitada, também, a preciosa oração de Francisco de Assis, que pede para sermos transformados em instrumentos da paz e manifesta o desejo profundo de agirmos no espírito da misericórdia de Deus e de sua surpreendente providência.
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvida, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
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Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais: consolar, que ser consolado; compreender, que ser compreendido; amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado, e é morrendo que se vive para a vida eterna.
Um abraço fraterno entre os participantes do culto, em momento apropriado, pode ser motivado para evocar o abraço e o beijo de José a seus irmãos, na leitura bíblica de hoje.
Bibliografia
BÍBLIA. Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994. BONORA, Antônio. A fraternidade que salva: Gênesis 37-50. São Paulo: Paulinas, 1987.