Ouvir com os pés: considerações sobre o som e as dinâmicas do caminhar

OUVIR COM OS PÉS considerações sobre o som e a dinâmica do caminhar

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO Departamento de Arquitetura e Urbanismo ARQ1111 PROJETO DE PAISAGISMO

Experiência Paola Dargoni

Imagens Paola Dargoni

Edição de vídeo Paola Dargoni

Áudios Paola Dargoni Erlem M. Ramalho

Filmagens Paola Dargoni Erlem M. Ramalho

Orientação Flaviana Raynaud Duarte Vaz

Locais de gravação Av. Padre Leonel Franca, Gávea Rua Jornalista Alberto Sued, Gávea Est. Monte Sinai, Piraí-RJ

“Todas as coisas são ritmo [...]. Os passos do nosso caminhar são ritmo. As palavras que falamos são ritmo.” 1

QUESTÃO CENTRAL Como os sons afetam nossa percepção da paisagem e o nosso estar/caminhar na cidade?

A ênfase imagética que costumamos dar à vivência do espaço hoje acaba negligenciando outras possibilidades de sentidos através dos quais podemos perceber a paisagem. Ao nos propormos a escutar, podemos ampliar nossa experiência de lugar e perceber outros aspectos da paisagem de forma sensível, criando novas conexões e ampliando as formas como afetamos e somos afetados pelo espaço.

Se vivenciamos e percebemos o espaço através dos nossos sentidos, a audição não pode ser deixada de lado. O som, comumente entendido como “imaterial” por não ser palpável ou concreto, é, na verdade, dotado de materialidade à medida em que é capaz de afetar nossos sentidos. Constitui, assim, grande parte de nosso entendimento sobre o espaço.

PERGUNTAS MOTIVADORAS Como os ritmos da cidade afetam nossos corpos e nossa percepção da paisagem?

Como o som direciona nossa atenção no caminhar na cidade? Nós somos afetados e mutuamente afetamos o espaço sonoramente? Como os contrastes de ritmos na cidade nos afetam?

1.

Falas extraídas do vídeo FOLI (there is no movement without rhythm), produção de Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg, disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=lVPLIuBy9CY

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som — espaço — corpo — percepção — lugar

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SOM E ESPAÇO Som e espaço são inseparáveis. Não apenas porque as ondas sonoras precisam do espaço para se propagar, mas também porque o movimento acontece no espaço, e “não existe movimento sem ritmo” 2 . Sendo um dos sentidos através do quais vivenciamos o espaço, o som se constitui em um formador de memória e canal de afetos: ao ser portador de significados abstratos ou concretos, pode [re] fazer presente o passado.

Se reduzimos a nossa percepção e atenção apenas ao visual, nos limitamos à superficialidade da experiência, vivenciando apenas uma das dimensões da paisagem. Para além da imagem, ela é composta também por dimensões sonoras, temporais, olfativas, do tato, culturais, sociais, políticas etc. Ampliar nosso canal de recepção para os fenômenos do espaço pode abrir, portanto, possibilidades de novos entendimentos e vivências. À medida em que vivenciamos a cidade, percebemos que a apreensão da paisagem é subjetiva. Cada pessoa interpreta os sons dos espaços e, a partir disso, o compreende de diversas maneiras. As variações culturais e temporais que nos afetam são, portanto, definidoras das formas pelas quais essa compreensão do espaço através do som se dá.

A partir disso, compreendo que o som é elemento fundamental na formação de um lugar. Se entendemos lugar como “espaço + significado”, podemos perceber como a forma como atribuímos esse significado ao espaço é atravessada por nossa percepção subjetiva. Essa, por sua vez, depende de nossos sentidos sensíveis e, portanto, também da audição, do som. Por isso, o caminhar se apresenta aqui como uma possibilidade de experimentação dos sons da cidade, o que constitui a experiência de paisagem proposta neste trabalho.

2.

Tradução livre do título do vídeo FOLI (there is no movement without rhythm), produção de Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg, disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=lVPLIuBy9CY

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CONTRASTES E DISSONÂNCIAS A experiência de ter vivido tanto em uma metrópole (Rio de Janeiro) quanto em uma pequena cidade do interior (Piraí) aguçou minha percepção em relação aos contrastes nos ambientes sonoros de cada uma. Para além disso, o caminhar na cidade se mostrou como possibilidade de percepção desses contrastes dentro de uma mesma cidade, de um mesmo bairro e, por vezes, dentro de uma mesma rua.

Ao voltar para casa com a mochila carregada de livros uma noite, me deparei com o obstáculo da subida: por morar em um prédio onde não existe elevador, eu teria que subir seis andares de escada carregando um considerável peso nos braços. Simpático à minha situação, um vizinho gentilmente sugeriu que eu tomasse então outro caminho, “a rua de trás” que, segundo ele, “tem uma subidinha leve no começo, mas depois sai direto no terceiro andar”. Seguindo o conselho, me dirigi a essa “rua de trás” 3 , atravessando parte da avenida barulhenta 4 e passando por baixo do começo do túnel que corta o prédio onde moro. Logo no início da subida, uma placa com os dizeres “rua sem saída” (fig. 1) já me dava pistas de que aquela talvez fosse uma rua bem diferente das ruas vizinhas.

Seguindo rua acima, algo captou imediatamente minha atenção. À medida em que subia por entre as árvores que se balançavam com o vento e calçadas estreitas e mal iluminadas, os ruídos massivos da avenida começaram a se amenizar. Poucos metros a frente, o ambiente sonoro já era completamente outro. Na verdade, todo o ambiente era completamente outro, tanto no que diz respeito ao som quanto às relações e dinâmicas que pareciam acontecer naquele espaço. Em vez de carros, motos, buzinas, poucas pessoas apressadas e um ritmo caricato de metrópole, o que encontrei foram crianças brincando na rua, um grupo de pessoas sentado na calçada, conversando, e alguns cães sendo levados para uma caminhada noturna por seus donos. Uma calmaria que me remetia de volta ao interior.

3.

4.

Rua Jornalista Alberto Sued, na Gávea.

Avenida Padre Leonel Franca, na Gávea.

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Cidade pequena do interior... não apenas ambiente onde passei os últimos dois anos de pandemia, reclusa no sítio dos meus pais, mas também onde passei boa parte da infância. Brincar na rua, cena que raramente presenciei no Rio de Janeiro, era comum no lugar onde cresci. Percebi, então, que a falta de iluminação do início da subida (fig. 2) e a gradual transição sonora haviam criado uma sensação de “túnel”. Ao atravessar esse túnel, me transportei para um outro lugar, onde memórias se reavivaram e outros afetos vieram à tona.

Me considero uma pessoa particularmente sensível ao som, tanto em um sentido positivo quanto em um negativo. A música e (principalmente) a sonoridade dos ambientes naturais me sensibilizam. Mas também o barulho incessante dos carros na minha janela — localizada bem acima do túnel Lagoa-Barra, que liga a zona sul da cidade à Barra da Tijuca — não me concedem sossego. Desde que me mudei para cá, saindo de um período de dois anos em um ambiente de quase silêncio absoluto — quase, porque o silêncio absoluto sequer existe —, percebi de maneira mais intensa e cotidiana como o chamado “ritmo da cidade” afeta meu corpo. Aqui me sinto mais agitada, às vezes mais ansiosa, mais ativa e inquieta, quase que com uma dificuldade para relaxar. Talvez seja o hábito sonoro vindo de um outro lugar. Essa agitação também varia de acordo com o período do dia.

No fim de tarde, quando o trânsito no túnel se intensifica e as buzinas soam mais constantes que nunca, também me sinto mais agitada. É difícil, para mim, ignorar os sons, deixá-los de lado e focar em outra coisa. Então, às vezes, o que me resta é esperar. Espero passar a agitação maior, me colocando em um espaço entre, sem conseguir descansar ou me concentrar.

Não sei se outras pessoas que vivem aqui também se sentem assim, especialmente a essa hora do dia. “Uma hora você se acostuma”, me dizem. Talvez. Mas ainda não. Por enquanto, o ritmo do meu corpo ainda está acostumado demais a “acompanhar o ritmo do ambiente” para que eu consiga optar por não ouvir a agitação da avenida.

Figura 1. Início da subida para a rua Jornalista Alberto Sued.

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Figura 2. Início da subida para a rua Jornalista Alberto Sued: “o túnel”.

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Figura 3. O caminhar na avenida à noite.

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Além da agitação ao ouvir os sons da avenida diretamente da minha janela, o caminhar por ela também se apresenta como uma experiência bastante inquieta. Ao atravessá-la, atenção aos carros; ao percorrer suas calçadas muitas vezes delimitadas por muros, atenção ao redor. Aqui, não sinto apenas agitação em relação a quantidade de estímulos simultâneos, mas também uma pequena ansiedade associada à iminência de possíveis perigos, principalmente à noite. Já é sabido que o caminhar à noite na cidade, principalmente para mulheres, pode ser uma experiência arriscada. Mas saber e vivenciar são coisas diferentes. Na avenida movimentada e barulhenta, onde não se ouve um possível grito de ajuda e onde ambos os lados — muro ou rua — são impermeáveis, os passos se apertam. A atenção focada à frente, aos lados e à sombra no chão (fig. 3), que pode dar pistas sobre o que (ou quem) vem atrás. O olhar percorre o ambiente, agitado, também porque as pistas sonoras, que poderiam indicar outras movimentações, ficam mudas diante do barulho dos carros. A visão é frontal, plana. Não dá conta de todas as direções do corpo, como a audição dá.

Nesse sentido, a experiência do caminhar na avenida é uma experiência na qual a atenção fica focada, atenta, nunca dispersa. São muitos estímulos, muitas possibilidades, muitas coisas para as quais se atentar. O ritmo, afetado tanto pela própria atenção superfocada em múltiplos estímulos simultâneos — um estado de “vigília em excesso” — quanto pelo próprio passar alucinado dos carros, se acelera. “Uma hora você se acostuma”. Ou uma hora você se cansa.

A alguns quilômetros dessa agitação toda se localiza uma cidade caracterizada por seu sossego e tranquilidade. Sua praça central, conhecida como “Praça da Preguiça”, costumava abrigar uma população de bichos-preguiça que tinha como costume descer das árvores aos sábados de manhã. A população humana da cidade, já habituada ao calendário específico das preguiças, costumava se reunir em pequenos grupos na praça para interagir com animais quando eles desciam. Atração principal da cidade, pelo menos até o momento em que todas as preguiças desapareceram sem deixar rastro — as suspeitas são de que foram roubadas —, as preguiças se moviam em um ritmo que parecia mimetizar o próprio ritmo de vida 12_ ARQ1111 PROJETO DE PAISAGISMO

das pessoas que as visitavam naquela cidade. Como se já não bastasse a calmaria da cidade por si só, em um determinado momento da vida, meus pais decidiram que precisavam de ainda mais calmaria. Se mudaram para um sítio, afastado da cidade já muito tranquila, “para ter mais tranquilidade”. Eu, que já havia me mudado para o Rio de Janeiro naquela época para cursar a faculdade, não tinha chegado a morar de fato naquele lugar. Minha primeira experiência com uma estadia mais prolongada foi durante a pandemia, quando me mudei de volta para aquela cidade e comecei a conviver com um cenário de tranquilidade cotidiana não só oposto ao que eu vivia na metrópole, mas também, de certo modo, contrastante com o que já havia vivenciado naquela mesma cidade. É estranho o quão rápido nos acostumamos ao silêncio. Ou, pelo menos, o quão rápido eu me acostumei. Entendo que, para algumas pessoas, o silêncio é um incômodo. Não para mim. Sempre o apreciei. E, para além disso, passei a apreciar ainda mais à medida em que adquiri o hábito de caminhar no fim da tarde na estrada que leva ao sítio da minha avó, nas proximidades do sítio onde moram meus pais (fig. 4). O caminho é rodeado de fragmentos preservados da Mata Atlântica. Silencioso. Ou quase, porque os sons dos animais e do vento nas árvores não é exatamente um silêncio. De qualquer maneira, estar nesse lugar durante um tempo prolongado me fez desenvolver uma outra sensibilidade para com o som.

A experiência de caminhar nesse lugar, poderiam dizer, é diametralmente oposta à experiência de caminhar na Avenida Padre Leonel Franca. Por um lado, sim.

O ritmo difere, os sons diferem, os objetos de atenção diferem, tantas outras coisas diferem. Mas existe algo que as une, percebi (principalmente ao realizar a investigação desse trabalho), especialmente no caminhar à noite.

Assim como andar em uma avenida barulhenta e cheia de possíveis perigos na metrópole exige estar atenta, andar à noite em um lugar cercado pela mata não é uma atividade a se fazer com a atenção dispersa, tampouco. Nas proximidades da mata, especialmente em um local com pouquíssima — ou quase nenhuma — iluminação, as pistas sonoras são muito valiosas. Com a visão limitada, os ouvidos OUVIR COM OS PÉS _13

Figura 4. Parte da estrada que liga os dois sítios.

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parecem ficar mais atentos que nunca. Percebo então que o elemento que une essas duas experiências do caminhar à noite é a atenção focada. Em uma, por restrições sonoras, o foco fica na visão. Em outra, por restrições de iluminação, a audição se encarrega da atenção maior. A experiência na paisagem, que já seria completamente outra só pelos ambientes muito diferentes entre si, se tornam ainda mais destoantes a partir das diferentes percepções sensíveis.

A convivência com o ambiente próximo à mata, como dito anteriormente, me fez desenvolver uma outra relação com o som. Ao me habituar a caminhar nessas condições, passei a “ler” (na verdade, ouvir) indícios e sinais — e atribuir a eles significados — que, para alguém que só viveu na cidade durante toda a vida, talvez fossem imperceptíveis ou irrelevantes. Por exemplo: a vocalização de alguns animais na estrada perto da mata me dá pistas de que minha atenção deve se voltar para o chão. O som dos sapos, que cantam em coro especialmente à noite, é evidência de que ali talvez existam também serpentes, suas predadoras naturais. Por não desejar pisar em nenhum desses dois animais (ou em qualquer outro que pode estar presente naquele chão), escuto e piso devagar, com cautela. O contraste com o ritmo dos passos na cidade é gritante. Lá, para me proteger do perigo, ando depressa.

Aqui, para me proteger do perigo, ando devagar. Quem me disse isso foi, também, o som. Às vezes essa percepção se dá de forma tão natural que não chego a pensar nela enquanto caminho. É como se fosse, por assim dizer, um “instinto natural” de quem caminha ali.

Através do som, minha percepção e leitura da paisagem direcionam naturalmente minha atenção para objetos distintos, alterando o modo com que me porto naquele lugar. A essa altura da investigação, fico imaginando como alguém que só viveu na cidade durante toda a vida se portaria naquela estrada. Ficaria imediatamente atenta aos mesmos sons que aprendi a perceber na paisagem ou estaria inicialmente estarrecida e sem saber no que prestar atenção? Fico imaginando também como alguém que só viveu na zona rural durante toda a vida se portaria naquela estrada. Estaria atenta aos mesmos sons que eu ou saberia ouvir para além do que eu ouvia? Provavelmente a segunda opção.

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Alguém que viveu e cresceu na capital paulista e alguém que viveu e cresceu na mata. Fico imaginando. A pessoa da cidade sabe caminhar na cidade, a pessoa da mata sabe caminhar na mata. A esse caminhar, os sons dão pistas, ditam o ritmo, guiam a atenção. Acredito estar no espaço entre. Nem totalmente da cidade, nem totalmente da mata. Os dois e nenhum ao mesmo tempo.

Isso me traz de volta à rua da qual falava no início desse texto. Rua Jornalista Alberto Sued. Não sei quem ele foi. Uma pesquisa rápida no Google tampouco me disse alguma coisa relevante. No entanto, assim como eu, essa rua parece ocupar um espaço entre. Nem um silêncio absoluto, nem um barulho absoluto.

Os dois e nenhum ao mesmo tempo.

Captando minha atenção inicialmente pelo contraste com a avenida vizinha, essa rua, a “rua de trás” do prédio onde moro, é uma mistura de silêncio e barulho. É uma mistura também de momentos de vazios ocasionais e de crianças brincando, pessoas conversando e eventualmente alguns cães apreciando seus passeios noturnos. É uma mistura e um encontro, ao mesmo tempo. Crianças que moram no Conjunto Residencial Marquês São Vicente (conhecido como Minhocão da Gávea), um prédio de habitação social notavelmente de classe mais média baixa e com uma história associada a ocupação da classe proletária que seria expulsa da Gávea nos anos 40 —, se encontram para jogar com crianças que moram nos prédios do outro lado da rua, que pertencem ao condomínio Jardim Pernambuco, conhecido por suas mansões e por ter um dos metros quadrados mais caros do Rio de Janeiro e do país. As crianças, alheias a isso, se encontram e brincam juntas na rua entre, a “rua de trás” de ambos os prédios.

Penso que, para além do fato de ser uma rua sem saída, a rua Jornalista Alberto Sued recebe pouca movimentação durante o dia e durante a noite também por ser relativamente “escondida”. Sua entrada, demarcada por uma catraca e por um túnel de árvores mal iluminado, não é exatamente um ambiente que chama atenção, principalmente em meio aos muitos estímulos e luzes da Avenida Padre Leonel Franca. A “rua de trás”, parece, se estreita em um cantinho. Ela não parece querer chamar atenção ou atrair para si os olhares e espetáculos da metrópole.

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Figura 5. Crianças brincando na rua Jornalista Alberto Sued à noite.

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Apenas algumas pessoas a conhecem. Pessoas que, ao atravessar o “túnel” de entrada, se transportam para um outro lugar. Um lugar ainda dentro da metrópole, ainda afetado por suas dinâmicas e sons, mas destoante, diferente, com um outro ritmo. Nem a metrópole em toda sua potência, nem a cidade pequena em toda sua tranquilidade. Os dois e nenhum ao mesmo tempo. O espaço “entre”.

Talvez eu tenha encontrado um túnel do tempo. Porque, para mim, para além do ritmo e das dinâmicas visíveis — e audíveis — naquele espaço, existe também o componente da memória. O som de crianças brincando na rua, de pessoas chegando cansadas do trabalho ou conversando nas calçadas, dos cachorros passeando entusiasmados, da vizinha parando para perguntar como vai a tia de não-sei-quem... São os sons da infância. Não são os sons da minha vida atual no Rio de Janeiro, e tampouco são os sons da reclusão pandêmica no sítio dos meus pais. É um som anterior, muito antigo. É um som de antes. E o túnel me transporta para lá.

Isso tudo, é claro, é só meu. As memórias, as percepções, os afetos. É curioso pensar como um contraste sonoro pôde fazer tudo isso emergir. E justamente o som, que possui um caráter tão efêmero e transitório, mas que pode se eternizar memórias e construir afeto. Pode fazer presente novamente o passado.

Dito isso, percebo como a relação que tenho com a rua Jornalista Alberto Sued se diferencia das demais. Caminhar por lá não apenas me transporta de volta e me faz imersa em memórias, mas também me permite, no presente, estar na cidade de uma outra forma. Ao contrário da avenida ou da estrada próxima à mata, o caminhar nessa rua permite que minha atenção fique dispersa. Sem ter que estar atenta a todo meu redor ou ao chão por perigos iminentes, consigo estar de uma outra maneira. As pistas sonoras ainda captam minha atenção, mas de uma maneira distraída.

Assim, concluo consciente de que aprendi a ouvir com os pés. E a ouvir dos pés, também, porque seu ritmo fala. Ele segue, se alinha com o ritmo que lê no ambiente. A percepção sonora, em conjunto com as percepções dos demais sentidos, ditam o ritmo. Concluo então o texto, mas a experiência continua. Permanece e segue. Talvez a descoberta dessa rua e todas as coisas que emergiram a partir dessa investigação sonora-afetiva tenha sido o maior ganho desse trabalho, porque 20_ ARQ1111 PROJETO DE PAISAGISMO

agora posso passar a frequentá-la e me atentar não apenas aos sons por si só, mas também aos significados e símbolos que designo a eles.

Termino com a recomendação de um vídeo produzido por Thomas Roebers e Floris Leeuwenberg, chamado “Não há movimento sem ritmo”, 5 e com a transcrição de trechos um episódio intitulado “Sons que me habitam”, 6 de autoria de Ana Roxo e Tati Fadel, do podcast Diário Possível, Mas Inventado: [...] O som é uma onda. Isso parece uma metáfora, mas não é. É uma onda mesmo. O som é uma onda que vem da vibração de qualquer coisa. Isso aqui parece misticismo, “tudo é vibração” e tal. Mas é isso mesmo. Uma coisa vibra, produz uma onda que vai andando, andando, fazendo as moléculas daquele caminho também vibrarem, até chegar ao nosso ouvido, que também vibra, e traduz a vibração em eletricidade, que pelos nossos nervos chega ao cérebro, que diz: “isso é um som”. Daí, pra você saber se aquela vibração que virou eletricidade é um miquinho, uma moto, uma música, o tique-taque do relógio de madrugada, isso exige uma espécie de alfabetização. Transformar aquele código misterioso da onda, a quantidade de vezes que ela se repete, o tamanho que ela tem, em uma informação. Eu fico pensando como a gente aprende isso e o quanto a gente deixa de saber só porque os sons do seu lugar não permitem que você saiba. Eu, por exemplo, queria muito saber a diferença entre os cantos de passarinho. Mas aqui onde eu moro agora só tem bem-te-vi, que é ridículo de saber porque o canto é o nome dele. Tem rolinhas e pombos e tem pardal, que eu acho que não canta. Tem aqui também a buzina do moço que vende doces, o carro acelerando na avenida a uma quadra, os cachorros meus e dos vizinhos latindo aleatoriamente. Tem o teclado insistente, o zumbido da geladeira. De madrugada, eu consigo ouvir o som do cigarro queimando, como um pequeno estalar de brasa. E às vezes eu ouvia patinhas no telhado. Essas aí morreram depois de uma dedetização. Há uns anos dava para ouvir um trem de carga que passava a uns quilômetros daqui, mas

5.

Disponível através do link: open.spotify.com/ episode/7lLV8XBKWM50rHh2krZ8jQ? si=jiAIPiHESPKWMcrFJB92Fg

6.

Disponível através do link: www. youtube.com/watch?v= lVPLIuBy9CY

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esse som também morreu. [...] Os barulhos, ou melhor, os silêncios, estão me pegando pelas pernas e me derrubando. Porque o jeito que a gente ouve ou percebe o mundo de sons em que a gente tá pode dizer muito sobre como anda a nossa cabeça. [...] Eu quis agora prestar mais atenção nos sons de fora de mim. Entender como eles existem e o que eles acusam, porque eu estou exausta das vozes gritando. E saber coisas, para mim, sempre foi uma forma de conseguir atravessar o caos. Por exemplo, eu soube de um cara chamado Gordon Hempton, que tá tentando registrar os sons que podem ser extintos. Inclusive, vejam só, o silêncio. O que se chama silêncio pra ele é na verdade uma aquietação dos sons do mundo humano: celulares, carros, buzinas do homem do algodão-doce, britadeira, avião. Tudo que polui, que suja, que perturba o silêncio ou os barulhinhos do mundo não-humano. Tudo aquilo que impede a gente de ouvir. E essas coisas estão invadindo todos os lugares. Tem perfuradora de petróleo no Alasca, tem draga de garimpo no meio dos rios da Amazônia, tem fábrica perto das florestas do Camboja, tem explosões nos desertos enormes do Oriente Médio. E tem caixa de som na praia, notificação de whatsapp na trilha — que obviamente eu não faço, mas eu sei que tem. Daí eu lembrei de um poema do Cesário Verde em que ele descreve o cair da tarde em Lisboa. E ele fala do tinir de pratos e talheres dos hotéis da moda.

Esse detalhezinho dá ao poema uma verdade enorme. Mas olha aí um som que anda morrendo, esse barulho metálico de talheres e vidro contra vidro na arrumação das mesas. Agora, a hora do jantar é cheia de buzina de moto de aplicativo, ao menos aqui na minha rua. Os sons morrem. Morrem que nem as pessoas que somem das nossas vidas, levando com elas seus sonzinhos. Desde aquele insuportável jeito de mastigar até o tique-tique intolerável de quem corta as unhas na sua frente.[...] O silêncio incomoda quando ele é ausência de um barulho que você reconhecia como seu ambiente. Isso que a Tati disse, às vezes era um barulho que te irritava, que te atrapalhava. Mas depois, entra para a memória como a presença daquela pessoa que não tá mais ali. Não tá porque se foi do mundo ou porque só se foi da sua vida, mesmo. [...] Os sons ficam na nossa memória, e as casas, fases, épocas da vida, têm seus ambientes sonoros próprios. [...] Os sons não param nem por causa de bebê, nem de ninguém. Eles vêm e vão, nascem e morrem. Como as fábricas, os celulares, os relógios, os bichos e as pessoas. O que resta em nós é impressão deles. Isso é, se na hora a gente prestou atenção...

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