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Tantô
from Sombras da Liberdade
by pamelamalva
por Pamela Malva
Acordei às três horas da manhã mais uma vez. Suei a noite toda. Sei disso porque meus lençóis brancos, comprados de última hora, estão completamente encharcados. Meu corpo está cansado, consigo sentir. Se eu continuar tendo os mesmos pesadelos com a Yakuza… eles vão me matar. De um jeito, ou de outro.
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“Já faz três meses que você vive em função de encontrá-los”, ela disse pelo telefone, enquanto eu me olhava no espelho do banheiro. Estava claro demais, a cor das paredes me enjoava. Mas não posso mexer no apartamento alugado. Meus olhos vermelhos me encaravam de volta. As veias exaustas, pulsando sangue para começar mais um dia.
Caminhei até a cozinha, equilibrando o celular entre o ombro e a orelha. Ela continuava falando que eu deveria parar de trabalhar por um tempo, que precisava descansar. “Não posso”, respondi. “As ordens foram bastante expressas. Preciso investigar esse lugar até que a gente descubra tudo que está acontecendo aqui.” Essa é sempre a minha resposta.
As desculpas do trabalho são o único jeito que eu consigo explicar como saí da minha casa aconchegante para me mudar para um apartamento minúsculo, com decorações esquizofrêni-
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Fonte: Wikimedia Commons Exemplos das clássicas tatuagens Irezumi da década de 1870.
cas e um cheiro constante de peixe entrando pela janela. Descobri logo na minha primeira semana que morar no bairro da Liberdade não seria tão fácil como eu imaginava.
“Você não pode levantar suspeitas”, ele me disse na época. “Precisa de uma nova identidade, precisa comprar roupas novas, objetos novos. Deve indicar que está se mudando para valer. Caso contrário, não conseguirá as informações que queremos”. Foi assim que acabei em uma loja de departamento, escolhendo entre dois modelos idênticos de pratos de porcelana. “Não se esqueça que estará sempre à paisana”, ele disse, apagando o cigarro caro no cinzeiro de bronze. A fumaça subia em um espiral cancerígeno.
Tivemos o primeiro contato com a Yakuza através da mãe de uma colega. Profunda conhecedora da cultura japonesa, ela vivia falando sobre um grupo criminoso que mandava e desmandava em diversas subculturas asiáticas. Segundo ela, que apertava os olhinhos enrugados sempre que falava dos mafiosos, era bastante complicado encontrá-los por aí, perambulando pela rua.
Quando perguntei sobre a presença da Yakuza no Brasil, a senhora deu uma risada seca, arrumou os cabelos brancos atrás da orelha e descansou sua xícara na mesa de jantar. “A Liberdade é deles”, exclamou. Demorei um tempo para compreender sobre o que ela estava falando. Mas, após pensar um pouco, entendi que era sobre o bairro.
Não demorei nada para encontrar diversos artigos sobre os membros da Yakuza na Internet. Menos tempo ainda demorou o meu chefe para ler meu e-mail e permitir a investigação. Conse-
gui o meu aval, uni informações em diversas pastas e dei início à minha apuração complexa. Mudei de endereço, fiz questão de aumentar meu círculo social e passei a nunca mais fechar as janelas. Afinal, eu nunca sabia quando uma nova informação entraria voando em meu apartamento.
O dia estava chuvoso e saí de casa com diversos casacos. Meus vizinhos estavam apenas começando suas rotinas: eu conseguia escutar as panelas batendo e os copos tilintando na mesa. Uma senhora saiu de seu apartamento assim que passei por sua porta. “Bom dia”, ela cochichou, enquanto jogava água em suas plantas cheias de cores vivas, assim como sua camisola. Cumprimentei de volta e segui meu caminho. Desci as escadas espiraladas do pequeno prédio e dei alguns passos até a entrada. Olhei rapidamente para a caixa do correio, mas me lembrei que não atualizei meu endereço em lugar nenhum. Para os outros, eu ainda morava em meu antigo lar. Um dia eu volto para lá.
Fonte: Wikimedia Commons 62

Torii vermelhos no santuário Fushimi Inari, em Fushimiku, Kyoto, no Japão.
Minha chave se demorou na fechadura da porta de vidro temperado. O metal tinha cheiro de ferrugem e eu tentei girar o pulso para conseguir sair. Assim que a porta abriu, dei de cara com um céu cinzento e uma Liberdade pulsante. Pessoas subiam e desciam as ruas, com sacolas, caixotes e carrinhos de carregamentos… e daí um cheiro pútrido me atingiu. Olhei em volta e nada me pareceu esquisito, eu não via nada fora do comum.
Até que olhei para baixo.
A menos de um metro de mim, coberto por sacos de lixo e caixas de papelão vazias, pude ver um braço estirado. A pele estava arroxeada e os dedos inchados. Eram apenas quatro deles. O mindinho fora decepado e apenas uma das falanges ainda estava conectada ao corpo. Estremeci na hora. Eu conhecia aquele ritual, sabia do que se tratava. E não era nada bom.
“Eles chamam de Yubi-tsume”, explicou uma das primeiras fontes que entrevistei. “É um tipo de punição violenta, que mexe com o psicológico do culpado”, ela dizia, com uma pilha de livros em sua frente, todos em japonês. Segundo a jovem, que no dia da entrevista vestia um terninho grafite, aquela era a forma que a Yakuza tratava os desertores, os traidores. De maneira bastante resumida, os membros julgados eram obrigados a decepar o próprio dedo. Assim, grande parte dos membros que continuava na máfia, contava com um dedo a menos.
Fonte: Reprodução/Twitter

Dentro da Yakuza, um dos castigos mais comuns é o Yubi-tsume. Durante tal punição, o membro condenado decepa o próprio dedo mindinho.
Fonte: Wikimedia Commons

Fotografia de um Torii, o arco tradicional japonês.
Esse homem que jazia na minha porta, no entanto, tinha feito algo muito errado. Ele não só foi obrigado a amputar seu dedo, como foi morto depois. Pelo visual da mão e pela infecção que se formava no corte, tudo foi muito rápido. Ele nem deve ter visto o que aconteceu, sequer soube quem ou que o matou. Não que os Kumichō fizessem esse tipo de coisa. Eles eram os chefes, os mais altos na pirâmide hierárquica da Yakuza, não sujavam suas mãos com sangue de traidores. Essa morte provavelmente foi culpa de um Kobun, um subalterno. Eu não me surpreenderia se assassinato fosse um rito de passagem na organização.
Agarrei o celular no bolso de um dos meus casacos e me preparei para ligar para a polícia. Meus pés não conseguiam desgrudar da calçada. Tudo parecia estar em câmera lenta. Depois de meses estudando os mafiosos, eu nunca achei que entraria em contato com algum deles. Mesmo que o indivíduo estivesse morto.
Antes de apertar o botão verde, contudo, eu olhei em volta. Apesar do braço mal escondido entre o lixo, todos pareciam continuar sua vida tranquilamente. Por um segundo delirante, pude jurar que vi uma moça passar por cima do membro moribundo, sem qualquer preocupação. Seu salto pontiagudo quase acertou a palma da mão
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Fonte: divulgação

Para os membros da Yakuza, tatuar grandes partes do corpo é uma forma de demonstrar sua coragem.
em cheio. E, de repente, percebi. Todos sabiam que aquele homem estava alí. Mas ninguém ligava. Ninguém sequer olhava para baixo. Entre muitos dos dilemas da minha profissão, esse foi um dos piores. Eu deveria deixar o homem ali, morto, esquecido, e dançar conforme a música; ou deveria ligar para a polícia e esperar pelo melhor? Decidi por continuar meu caminho, como se meu dia nunca tivesse caído em uma piada doentia, pegajosa e com o cheiro metálico do sangue de um cara que eu nem conheço. Mas não o esqueci completamente. Apenas quis demonstrar que sim.
Andei até a padaria na esquina da minha rua e me sentei em um dos banquinhos de frente para a janela. Se algo acontecesse com aquele corpo, eu queria estar presente para assistir e anotar cada detalhe. Afinal, era mais uma fonte, ainda que mórbida. Mais de trinta minutos se passaram, devo ter tomado umas boas cinco xícaras de café. Meu corpo sentiria isso tudo mais tarde. Continuei olhando pela janela e, nesse meio tempo, pesquisei mais algumas informações sobre a hierarquia da máfia.
No Japão, a Yakuza é conhecida como Bōryokudan, um grupo violento por definição. Os próprios membros, entretanto, sejam quais forem suas posições na lógica mafiosa, se definem como Ninkyō dantai, uma organização puramente cavalheiresca. De fato, quando os tempos apertam no país asiático, o grupo criminoso é um dos primeiros a ajudar a população, como foi pontuado em uma notícia do The New York Times de 1995.
Por diversas vezes, após terremotos ou tsunamis, o território se encontrava em apuros e japoneses não tinham mais onde morar ou trabalhos que pudessem frequentar. De forma quase heróica, os mafiosos da Yakuza, então, visitavam as vilas e aldeias com carregamentos de suprimentos e outras doações bastante significativas.
Mas eles, é claro, cobravam toda essa bondade com juros depois.
Pior ainda eram as formas de arrecadar todo o dinheiro. Não podemos negar que grande parte do capital dessa organização e de seus mais de 500 subgrupos vem de práticas ilegais. Prostituição, tráfico de armas, apostas, fraude bancária, agiotagem, pornografia, jogos ilegais e contrabando são apenas algumas da atividades da Yakuza. Muitas das ações criminosas são citadas por Anthony Bruno, em seu livro The Yakuza: The Japanese Mafia, um dos primeiros que li durante a investigação. Pensando em tais crimes, a atuação da máfia no Brasil não passa muito longe. Por aqui, o bairro da Liberdade é um verdadeiro antro do tráfico (tanto de drogas, quanto de peixes) e ainda é ativa nas práticas de exploração sexual e prostituição. Guiei meus olhos entre algumas das minhas anotações e encontrei um parágrafo grifado que me chamou atenção. Na minha letra rabiscada, ao lado Fonte: Divulgação/Pixabay de três pontos de exclamação enormes, frisei: “histórias sobre mulheres sequestradas, levadas para o Japão e obrigadas a se prostituir ou trabalhar em condições análogas à escravidão são extremamente comuns”. Identifiquei indícios desse tipo de tráfico em ar-

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Fonte: E+ A tradicional tatuagem nas costas pela qual os membros da Yakuza são conhecidos
quivos antigos da Organização Human Trafficking e em livros Segundo entrevistas já feitas por Luiz Cesar Pimentel e Eduardo Enomoto, do Portal R7, a Yakuza se especializa em tudo que tenha cheiro de dinheiro. Lucro, para eles, é o objetivo final. Por isso, de acordo com as apurações dos jornalistas, quando um desses mafiosos está envolvido, até mesmo a mais simples ajuda ou empréstimo vira uma bola de neve. As chantagens chegam de diversas formas.
Se um Sara-kin te oferece um acordo monetário, esse agiota da máfia vai arrancar seus bens mais preciosos em troca do dinheiro emprestado. Pode não parecer justo, mas ele vai exigir sua casa, seus móveis e até pessoas da sua família como pagamento. Entre as minhas anotações, encontrei um pequeno post-it sobre isso. “Quitar dívidas usando esposas ou filhas é uma prática comum!”, escrevi há um tempo, enquanto assistia ao documentário do R7.
O problema é que, uma vez que as mulheres são entregues ao grupo, elas passam a ser constantemente subjugadas e sofrem todos os tipos de retaliações. Muitas delas são colocadas na prostituição, mesmo que sejam filhas ou irmãs de um dos membros da Yakuza. E não adianta afirmar ser herdeira do grupo, essa é mais uma das tradições da organização que nenhum Oyabun (o “pai” dos membros de uma gangue da Yakuza) ousa mudar com o tempo.
Ainda que bastante arcaicos, a Yakuza conta com conceitos que passam de geração em geração desde a criação da máfia, em meados do período Edo (entre 1603 e 1868). Do corpo coberto

por tatuagens, até o ritual de iniciação conhecido como Sakazukigoto, os mafiosos são leais às suas tradições e não deixam de segui-las por motivo nenhum.
O ar na cafeteria esfriou de repente, senti minhas costas arrepiarem e olhei para cima. Meu caderno já estava preenchido com todos os dados da Yakuza que consegui encontrar na internet aberta e a minha comanda estava cheia de expressos que sequer lembrei de ter pedido.
Arrastei meus olhos pela calçada do meu apartamento e demorei para perceber que o corpo não estava mais lá. Me assustei e comecei a procurar pelo homem sem dedo em cada canto da minha visão. O movimento frenético do bairro não facilitou nem um pouco o trabalho, já que um homem com sacolas, ou uma mulher com caixotes sempre passava na minha frente. Encarei as ruas por alguns minutos até me contentar com a realidade.
Eu havia perdido uma das melhores pistas que encontrei em tempos. Mas consegui deduzir algumas coisas. Para começar, o corpo não estava mais lá, mas o lixo que o cobria sim, indicando que a coleta foi bastante seletiva. Ele não foi levado por um caminhão estatal, por exemplo. Aquele homem com certeza havia sido capturado novamente e levado por alguém que sabia quem ele era. A falta de alarde nas ruas também me disse algumas coisas. Ninguém se mostrou assustado ou amedrontado, portanto quem quer que tenha removido o corpo, o fez em silêncio, ou tomou medidas que tiraram a voz das testemunhas.
Não me assustaria se as pessoas realmente soubessem tudo sobre a Yakuza e, ainda assim, mantivessem silêncio. “A máfia praticamente controla tudo que acontece no bairro e pequenos empreendedores não têm chance contra eles”, comentei com meu chefe logo que me mudei. Para o dono de um restaurante, por exemplo, falar algo que não deveria pode significar perder muito mais do que alguns tostões. Exatamente por isso, ficou óbvio para mim que aquele homem sumiu e que muitas pessoas viram para onde ele foi. Contudo, estou nessa empreitada há tanto tempo que sei que posso perguntar sobre o paradeiro do corpo para cada um nesse lugar e, mesmo assim, não receberei qualquer resposta que me ajude na pesquisa.
Minhas pernas estavam dormentes. Fiquei muito tempo na mesma cadeira e meu corpo já estava demonstrando cansaço mais
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Fonte: Divulgação/Youtube

Homens com o corpo completamente tatuado, representando membros da Yakuza.
uma vez. Eu precisava ir para o trabalho e finalmente deixar aquele homem ir. Queria continuar procurando por ele, mas a Yakuza com certeza dificultaria meu trabalho máximo que pudesse. E eles nem sabiam que eu estava aqui. Pelo menos eu esperava que não, esperava que meu disfarce estivesse dando certo. Guardei minhas coisas na mochila, paguei pelo café prolongado e saí da padaria. O dia continuava borbulhante e as ruas pareciam quentes, com tantas pessoas andando para todos os lados.
Meus sapatos tocavam o chão de pedra com força enquanto eu andava pela calçada para chegar ao meu escritório. O frio continuava batendo em minha espinha, apesar dos casacos pesados que eu carregava no corpo. Parei algumas vezes para esperar que algumas pessoas passassem por mim e, em seguida, continuei digitando no meu celular. A manhã ainda estava em suas primeiras horas e muitos homens penduravam as placas de seus comércios para o almoço, um horário sempre muito cheio por aqui.
Faixas amarelas surgiram no horizonte e, sem querer, eu reconheci uma delas. Um losango preto bastante simples desenhado em uma placa branca pareceu brilhar do outro lado da rua. O daimon (um emblema japonês usado para identificar alguém ou alguma coisa), conhecido como Yamabishi, estava pendurado na frente de uma pequena porta de número 893. Minhas costas
gelaram na hora que encarei a sequência cravada na parede. Em japonês, os algoritmos 8-9-3 são traduzidos, literalmente, para Ya, Ku e Za, e aquele emblema nada mais era do que a identificação da Yamaguchi-gumi, a maior organização da Yakuza.
Liderado atualmente por Kenichi Shinoda, esse subgrupo representa cerca de 45% dos milhares de membros da máfia no mundo todo. Com sede em Kobe, a Yamaguchi-gumi já conseguiu espalhar seus esforços no mundo todo, segundo dados da Agência Nacional da Polícia do Japão. Ela foi criada em meados de 1915 por um sindicato de trabalhadores e, hoje, trata de tráfico de armas, apostas, fraude bancária e agiotagem, para dizer o mínimo. Por isso, tenho certeza que o cadáver daquele homem está lá dentro, atrás da estreita porta de madeira. Agora só tenho que descobrir uma forma de entrar lá.
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