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Bem aventurados os aflitos, pois eles serão compensados

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Agradecimentos

Agradecimentos

“bem aventurados os aflitos, pois eles serão compensados” Como a Capela dos Aflitos também reflete a tentativa do apagamento histórico da escravidão no bairro da Liberdade.

por Julia Cosceli

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Andando entre as ruas Galvão Bueno e a rua da Glória, na Avenida dos Estudantes, percebe-se a mesma atmosfera cheia e vívida da Liberdade: caminhões de entrega estacionados nas valetas, consumidores perambulando pelas calçadas apertadas, pequenas banquinhas ambulantes que vendem artefatos geeks e as vitrines dos mercados Korea Mart e Omiyague brilhando aos olhos de quem passa por ali encantado com as peculiaridades das “bugigangas” asiáticas.

Toda atmosfera oriental deste pequeno trecho do quarteirão se torna invisível ao entrarmos no Beco dos Aflitos. A exatos 600 metros de toda aquela aglomeração, há uma pequena ruela, sem saída e completamente destoante do resto do bairro. Demarcando o fim do tal beco há um local religioso, a Capela Nossa Senhora dos Aflitos.

Acinzentada, quase da cor do asfalto que a sustenta, não possui mais de poucos metros quadrados. Ergue uma torre em seu canto direito que chama atenção pelo sino que abriga, mas apesar de sua beleza arquitetônica, está a poucos passos de se tornar ruína. Os motivos da aparência degradada situam-se entre os quase dois séculos de existência, um incêndio que não teve reparação, falta de manutenção da Arquidiocese de São Paulo e, principal-

Fonte: Museu Paulista USP

Altar da Capela dos aflitos, data não sinalizada

mente, a sua bagagem histórica. Afinal, falamos de um dos maiores símbolos da pouco conhecida cultura negra no bairro. Estudioso sobre a história da capela, o pesquisador oficial do Arquivo da Cúria de São Paulo, Wanderley dos Santos conta em sua monografia “Nossa Senhora dos Aflitos” que quando o Brasil ainda era colônia, em meados de 1775, a população enfrentava grandes dificuldades sanitárias. As condições de saúde nesta época eram bem precárias e, como pode-se imaginar, não eram todos que tinham acesso a recursos de higiene. Isso considerando que São Paulo já era uma cidade que crescia em meio à desigualdade social. Assim, espalharam-se as epidemias de doenças causadas por vírus, como a varíola. Os infectados por essa doença terrível, chamados de bexiguentos, quando morriam eram sepultados em igrejas.

Graças ao aumento no número de vítimas, os enterros em igrejas passaram a ser concedidos apenas aos ricos, enquanto os pobres eram esquecidos até na própria morte. Ainda em 1775, o Bispo de São Paulo, Dom Frei Manoel da Ressurreição, incentivou a criação de um cemitério que abrigasse os tais de bexiguentos, e

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também os marginalizados da população, como os escravos negros, indígenas e indigentes — reconhecidos como aflitos. A escolha da alocação do novo cemitério, que era conhecido como “Cemitério da Rua Nova”, se deu no local em que hoje conhecemos como o Beco dos Aflitos, no espaço que se tornaria uma parte importante do bairro da Liberdade — na época, reduto dessa população marginalizada de São Paulo.

Com a criação do Cemitério, foi necessário criar um local onde os corpos fossem velados e, assim, em 1779, foi construída no terreno do cemitério a Capela da Nossa Senhora dos Aflitos. A escolha do nome se deu justamente em homenagem à santa que zela pelos doentes e desafortunados. O terreno do cemitério funcionou desde a inauguração até o seu fechamento (1883) legalmente pela administração da Excelentíssima Mitra da Arquidiocese de São Paulo — organização composta pelas principais autoridades da diocese católica. O motivo do encerramento foi a abertura do novo cemitério da Consolação, que além de maior, era localizado em uma região mais privilegiada na época.

Com o fechamento do Cemitério da Rua Glória, a Capela foi preservada, e com o aumento da população negra decorrente da escravidão que permeava na região, foi se tornando um ícone para o bairro e para a própria cultura negra, principalmente depois de ter abrigado os últimos momentos do conhecido santo popular negro milagro-

Fonte: Domínio público

so Chaguinhas. Lendas do local diziam que a alma dele descansava naquelas paredes dedicadas aos aflitos e marginalizados, fazendo com que o próprio Chaguinhas se tornasse um ícone para os aflitos.

A Capela passou a ser mais que um local de liturgia, mas um espaço em que os deslocados da sociedade se sentissem bem-vindos, acolhidos e pudessem passar sua cultura de fé adiante. Essa afetuosidade da capela fez com que ela absorvesse um pouco da miscigenação do próprio bairro da Liberdade em si. E, com o passar dos anos, a falta de reparo por parte da Igreja deu espaço para os próprios frequentadores ampararem a Capela da forma que lhes era cabido. O motivo da falta de reparos, para os frequentadores, seria a relação da Capela com seu passado escravocrata.

O esquecimento histórico do passado negro do bairro da Liberdade é um grande e frequente problema, tanto que em julho de 2018, o nome da estação de metrô e da Praça da Liberdade receberam o acréscimo “Japão”, homenageando o bairro como a maior concentração de imigrantes japoneses fora do país. Ao adotar medidas como essas, a administração pública da cidade vai, aos poucos, apagando um legado histórico de que por ali passaram escravos negros, e estes foram um das responsáveis por erguer o bairro. E o apagamento é visto por toda São Paulo.

Em entrevista para a revista Carta Capital, concedida a Giovanna Constanti, o historiador Abílio Ferreira diz que “(o) apagamento da memória negra vem de uma tentativa ainda mais antiga, de apagar a herança da escravidão. O processo foi sendo reproduzido de maneiras diferentes nos séculos seguintes ...”. Ainda sobre a Capela, ele aponta que “ela representa um contraponto nesse processo da mudança do nome porque é nela onde havia o cemitério dos escravos e dos pobres que eram enforcados, os criminosos que eram considerados fora da lei naquele momento”.

Elizete Alves faz parte do grupo “União dos Amigos da Capela dos Aflitos” (unanca), comunidade criada por fiéis da Capela que buscam dar voz para suas necessidades. Na luta pelo restauro do local, e melhor administração por parte da Excelentíssima Mitra Desde o início do grupo em 2018, a luta pela restauração da Capela não vem sendo bem sucedida, principalmente por parte do Clero. “Parece que buscam apagar historicamente tudo o que aconteceu. Percebemos um descaso e um preconceito da Mitra com a Capela....

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Fonte: arquivo do grupo

Entrada do Beco dos Aflitos

É muito triste pensarmos que existe [esse] preconceito dentro da própria igreja católica, ainda mais considerando o contexto do bairro negro, e de uma população muito pobre. Afinal, a Liberdade era considerada o centro da ‘escória’ da sociedade. Mas não sabemos se é por isso mesmo o descaso deles. Até hoje, nós que somos mais pobres e humildes, em sua maioria pessoas afrodescendentes ou de origem indígena, como eu, nos sentimos muito bem acolhidos na capela, mas esquecidos por parte da Igreja. Mas, apesar de tudo, estamos lutando para isso não acabar e nem ser apagado”.

Assim como Eliz, outros membros da unanca também passaram a doar tempo e recursos para a manterem de pé a capela tão querida por eles. No Facebook, o grupo age dinamicamente para mobilizar pessoas para abraçarem a causa e provarem a importância histórica da Capela dos Aflitos e da história do Chaguinhas. A luta da unanca, inclusive, começou com uma carta da população denunciando à Mi-

tra os riscos de se ter uma obra ativa ao lado da capela. Depois de dois anos da carta, não houve nenhum restauro concreto. Completando 271 anos em 2020, a Capela dos Aflitos continua em pé, mas enfrenta muitas dificuldades. Ao longo de todos esses anos já vivenciou um grande incêndio em 1996 — que não recebeu nenhum amparo depois do acidente, e até já sofreu as consequências de um desmoronamento no terreno vizinho, que levou à descoberta das ossadas de possíveis escravos. Assim que foram encontrados os fósseis e este assunto veio à tona, a Capela teve uma maior visibilidade, já que as ossadas pertenceriam ao terreno do antigo Cemitério dos Aflitos.

Depois de muita luta, no dia 09 de setembro de 2020 foi aprovado o projeto que visa a construção de um memorial da cultura negra do bairro. O DECRETO Nº 59.750 (abordado no conto “Os segredos enterrados na Liberdade”), “declara de utilidade pública, para desapropriação, os imóveis particulares situados no Distrito da Sé, Subprefeitura da Sé, necessários à implantação do Memorial dos Aflitos”.

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Fonte: arquivo do grupo

Fachada da Capela dos Aflitos sem restauro

Tema: Carta Aberta em favor da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos

Direção Provisória da UNAMC:

Elizete Cristina da Silva Alves RG: 13.270.663-5

Técnica em Contabilidade aposentada; Agente da Pastoral da Criança nos anos 1990; Devota da Capela de N. Sra. Dos Aflitos desde a infância.

Ilth Maria Figueiredo RG: 52.882.745-5

Ensino médio; Auxiliar Administrativa da Capela de N. Sra. Dos Aflitos desde 2007.

Maria das Graças Silva Carneiro RG: 16.654.891-1

Rainha do Congo das tradições folclóricas mineiras; Membro da Irmandade de N. Sra. Do Rosário dos Homens Pretos.

Ivan Husky RG: 39.687.028-4

Jornalista Apresentador - MTB 77448SP

Sílvio Luiz Sant’Anna RG: 14.333.287-9

Professor Universitário; Mestre em Ciências da Religião e Doutor em Antropologia pela PUC/SP.

Contato: amigosdacapela70@gmail.com Página no Facebook: https://www.facebook.com/salvemosacapeladosaflitos/

O mesmo documento também está sendo enviado para outras autoridades civis e religiosas, entidades da sociedade civil e será divulgado para toda a sociedade.

CARTA ABERTA EM FAVOR DA CAPELA DE NOSSA SENHORA DOS AFLITOS

A Comissão Provisória e responsável pelo processo de constituição jurídica da UNAMCA - União dos Amigos da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos torna pública às autoridades competentes da cidade de São Paulo, aos organismos de preservação patrimonial e cultural de nosso país, bem como às autoridades eclesiásticas, da Cúria Metropolitana de São Paulo, da CNBB e da Cúria Romana, além de toda a população, a nossa completa indignação sobre o estado deplorável que se encontra a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, situada no Beco dos Aflitos, 70, no bairro da Liberdade, na capital paulista.

A referida Capela data de 27 de junho de 1779 sua fundação, como referencial católico do primeiro cemitério de 1775 da cidade destinado aos desvalidos (escravos, pobres indigentes e aos condenados à morte). Por dois séculos e meio é o santuário dedicado a devoção às almas, onde atualmente há duas missas semanais, às 2as feiras, além de rezas de terço e a constante visitação de devotos que acendem suas velas. Esse patrimônio já resistiu a urbanização do bairro oriental da cidade, que descaracterizou a região original, embora tenha trazido novas contribuições culturais e a um incêndio no início da década de 1990, mesmo tendo sido tombado pelo CONDEPHAAT com número do processo 20125/76 a 23 de outubro de 1978 e com publicação no Diário Oficial a 25 de outubro de 1978, na página 54, livro do tombo histórico com número de inscrição: 128, p. 24 de 18 de julho de 1979 e como o patrimônio 22 do município tombado pelo CONPRESP pela resolução 05 de 05 de abril de 1991. O jornal Folha de São Paulo notificou no dia 25 de outubro de 2011, que os órgãos do patrimônio histórico haviam aprovado o primeiro restauro da Capela que seguia para o Ministério da Cultura, que mediante a Lei Rouanet, a obra orçada na época, em torno de R$ 1,5 milhão pudesse ser custeada pela livre iniciativa, mas nada foi feito.

E, no entanto, em seu aniversário de 239 anos de edificação, o que temos? A ameaça do desabamento total ou parcial da Capela, provocado por uma demolição e futura edificação de um imóvel comercial situado ao lado da Capela, no Beco dos Aflitos, 64 e que se estende até a outra rua paralela ao Beco, a rua Galvão Bueno. 36

Questionamos veementemente a forma como esta obra foi liberada. Se a análise geológica foi realizada e acompanhada pelos órgãos competentes, levando em consideração a distância necessária e o impacto sobre esse prédio tão antigo e tão significativo para a preservação de nossa memória cívica e espiritual. Nossa apreensão torna-se ainda mais legítima e urgente, considerando os reais e comprovados impactos manifestados nas rachaduras recentes das paredes do lado interno da Capela, que inclusive foram calçados pela construtora responsável pela referida obra, além da parede do lado externo fronteiriço à obra que foi totalmente rebocada sem qualquer critério para uma edificação tombada, pela mesma empresa que atua na obra, para cobrir os estragos realizados.

Conclamamos as autoridades competentes em todos os setores implicados na questão, para que intercedam em favor da Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, antes que a situação seja irreversível.

São Paulo, 27 de junho de 2018.

Pela Comissão Provisória da UNAMCA:

Elizete Cristina da Silva Alves

Ilth Maria Figueiredo

Maria das Graças Silva Carneiro

Ivan Husky

Sílvio Luiz Sant’Anna

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