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Pedi com fé e recebereis

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Agradecimentos

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A história e as narrativas por trás do nome que bairro carrega

por Julia Cosceli

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Liberdade, liberdade! Abra as asas sobre nós (bis) “ E que a voz da igualdade Seja sempre a nossa voz” Samba Enredo Imperatriz Leopoldina (1989)

Em meio ao Brasil Colonial, dos anos 1800, São Paulo, Província, começava a rascunhar alguns traços de identidade que hoje são comuns aos nossos olhos. A cidade era desenhada em torno do triângulo sagrado: A Igreja e o Convento do Carmo, o Mosteiro de São Bento e Igreja de São Francisco. A religiosidade presente na região central fez com que pessoas e o comércio começassem a dar vida para esse espaço, mas, também fortalecendo, infelizmente, a desigualdade social.

A poucos metros do Marco Zero de São Paulo, na Praça da Sé, e do iniciante reduto da elite da população paulista, encontrava-se uma região “asquerosa” para quem ali frequentava, um local com características peculiares. A atmosfera tormentosa do local se justificava pela presença da Praça da Forca, um espaço que protagonizava os últimos suspiros

Ilustração do antigo Largo da Forca publicada na Revista da Folha número 200 sobre como era a São Paulo no século 19.

Fonte: Divulgação/Marcio Koprowski

daqueles que cometiam crimes contra o Império Português. Os criminosos enforcados ali costumavam ser enterrados no Cemitério dos Aflitos, a primeira necrópole municipal de São Paulo - onde eram repousados não apenas corpos de criminosos, mas também de escravos negros, bexiguentos, doentes e indigentes: os aflitos, como era conhecida essa parcela marginalizada da sociedade.

A história do cemitério leva a um paradoxo interessante sobre o bairro: espaço que começou como um lugar assombroso, com correntes históricas da escravidão, sofrimento e injustiças, hoje tem o nome “Liberdade”...

“Liberdade” segundo o dicionário Aurélio, é um substantivo feminino que indica um “nível de independência absoluto e legal de um indivíduo, de uma cultura, povo ou nação...” Era este substantivo que ecoava pela Praça da Forca no dia 6 de setembro de 1821, no dia do enforcamento do Soldado Chaguinhas, e hoje perambula pelos corações dos moradores da região.

Um dos maiores ícones de justiça que o Bairro da Liberdade carrega são seus símbolos de resistência: a arquitetônica, de edifícios que estão de pé há mais de dois séculos, a resistência cultural de diversas etnias que enfrentaram o desafio de se alocar em um país desconhecido e, principalmente, a resistência popular de uma história de justiça social. Simbolizando essa resistência, encontramos Chaguinhas.

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Francisco José das Chagas foi um cabo do Exército, algo tão comum quanto entrar no clérigo para os homens daquela época, porém com uma grande diferença: Chaguinhas era um homem negro. Livre, mas negro, e para quem conhece o contexto racista de nosso país, sabe que essa liberdade, na prática, possui alguns limites. Nasceu em São Paulo na região da Rua das Flores, no Centro, e cresceu dentro do exército em Santos, lutando para conquistar respeito e méritos entre os militares. Sobre sua vida, há poucos indícios, mas os que se têm são suficientes para justificar o tamanho de sua importância na história do bairro.

Silvio Santana, historiador e doutor em Antropologia e religiosidades, estuda a história do Santo desde que descobriu sua existência, e assim como um estudioso, se tornou um grande admirador de sua história, chegando a escrever a tese “Aflitos pela Capela”, onde explica a história do Chaguinhas e sua relação com a Capela dos Aflitos.

Silvio conta que, como soldado, Chaguinhas participou do Movimento Nativista, um período de revoltas do exército contra a Coroa Portuguesa que reivindicou condições de igualdade salarial entre os soldados. Nesta revolta, alguns militares lutavam para reivindicar os direitos dos cabos brasileiros perante os soldados portugueses, que esbanjavam de muitos outros privilégios.

Para alguns historiadores, Chaguinhas foi o líder deste movimento, para outros apenas foi um dos membros que possuíam uma voz ativa, assim como José Joaquim Cotindiba, também negro e companheiro dele na revolta. Porém, a posição deles dentro do tal movimento não fez diferença na hora de pagarem suas punições. Ambos foram presos

Representação das forças armadas do exército brasileiro no período colonial

pelo Estado e declarados culpados de traição por lutarem pelos seus direitos. A sentença foi a pena de morte, comum para os marginalizados da sociedade daquela época.

Como era considerado criminoso, a execução dele foi um espetáculo, momento no qual a população se juntou para acompanhar na tenebrosa Praça da Forca. Reza a tradição oral que, antes da execução, os prisioneiros eram mantidos em uma pequena sala dentro de uma capelinha, para que eles pudessem se redimir perante a Deus. Um espaço com nada mais que uma grande porta de madeira e pouquíssimos metros quadrados que abrigavam toda a angústia e aflição daqueles que esperavam pela sua morte.

E assim foi, primeiro Cotindiba. Saía da pequena sala dentro da pequena capelinha, passava pelo cemitério que havia à frente do terreno religioso, virava à esquerda e subia a rua, hoje a Rua dos Estudantes, até chegar à Praça da Forca, local de uma das primeiras estações de metrô da cidade.

Chegada a vez de Chaguinhas, ele fez o mesmo caminho que o companheiro havia feito. Chegou na Praça da Forca e se posicionou para respirar pela última vez enquanto o carrasco pronunciava o motivo de sua morte. Um, dois, três e… Enquanto todos ali esperavam ver os pés de Chaguinhas pendurados, se surpreenderam ao ver a corda da forca arrebentar… Ele estava vivo! Naquele tempo, em algumas situações excepcionais, o condenado à morte era perdoado, transformando a pena capital em prisão perpétua, por exemplo. “Mas, no caso do revoltoso Chaguinhas, as autoridades coloniais representadas na cidade não concederam o indulto e mandaram que se prosseguisse com a execução” (Sílvio Luiz Sant’Anna; 2018)¹.

Novamente o carrasco seguiu o protocolo. Um, dois, três… E o único som que se ouvira era o da população espantada. A corda havia rompido mais uma vez. Chaguinhas ainda estava vivo. O que antes fora considerado uma coincidência, agora passa a ser considerado como milagre. Não à toa, tratava-se de uma popula-

¹ Artigo Monográfico de Silvio Luis - Aflitos pela Capela da Liberdade (2018) Publicado por: OLHAR: Revista científica da ESAMC 12

Quadro de Chaguinhas exposto na Capela dos Aflitos

ção extremamente religiosa que havia surgido graças ao reduto de igrejas e conventos ali localizados. Animada, a população começou a gritar por Liberdade. “Chaguinhas seria um milagroso, Deus o quer vivo. Liberdade a Chaguinhas! Liberdade! Liberdade!”.

E aos gritos de liberdade e misericórdia da população que o soldado ainda assim foi apunhalado pelo governo. Na terceira tentativa, quiseram o enforcar com uma corda de couro, considerada de um material mais resistente. E mesmo assim, a corda rompeu. Ainda vivo, Chaguinhas foi levado até o porão da forca, junto a outros cadáveres, e foi espancado até a sua morte enquanto a população clamava cada vez mais por sua liberdade. E ao coro popular, aquela região assombrosa foi concebida como a Região da Liberdade.

Os gritos populares do passado hoje se tornaram devoção. A figura de Chaguinhas tornou-se uma figura milagrosa, o Santo dos Injustiçados e o Santo Negro Milagroso do Bairro da Liberdade. Seu corpo foi enterrado no Cemitério dos Aflitos e, para seus devotos, seu espírito descansa na pequena Capelinha. A sala em que Chaguinhas ficou aguardando sua sentença hoje é um marco para a Capela. Na grande porta de madeira, milhares de pessoas que

Fonte: arquivo do grupo

Terço do Chaguinhas rezado no dia das Almas - 02/11/19.

passam por lá deixam um pedido, uma oração ou um milagre para o santo. Para elas, o santo é milagroso de verdade.

Enquanto procurava uma vaga de carro para a esposa comprar perfumarias na Ikesaki, Silvio Luís acabou em uma ruela sem saída entre a Rua da Glória e a Galvão Bueno. Assim como outras ruas do bairro, não tinha nada demais, além de alguns resíduos nas calçadas, buracos e poeiras. Além da vaga, coisa rara no bairro em finais de semana, o que chamou a atenção do historiador foi o que encontrava-se ao final da ruazinha: uma capela. Tão pequena quanto uma cabana, mas tão intensa como uma Basílica. Ali Silvio encontrou Chaguinhas a primeira vez. Um paulistano de quase 60 anos, que graduou-se em história, com pós-graduação em ciências sociais, mestrado em ciência da religião e doutorado em Antropologia, se os livros e nem a academia lhe apresentara Chaguinhas, o acaso assim o fez.

Entrou na Capela e sentou nos pequenos bancos de liturgia. “E assim fiquei por minutos, rezando de olhos fechados, até perceber que o guarda havia multado o carro - Foi uma situação inesquecível” brinca. Silvio hoje faz parte de um grupo de pes-

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soas, que assim como ele, se identificam e zelam pela história do “Santo” Chaguinhas.

No Facebook, o antropólogo administra uma página de cultos e missas para o santo, o grupo de Oração do Glorioso Chaguinhas, o santo Negro da Liberdade - Alguns destes fiéis criaram um terço original para os rituais de devoção, substituindo os rosários e cruzes convencionais por uma corda, remetendo assim à forca, e algumas miçangas que simbolizam a matriz africana. A cerimônia é celebrada no primeiro sábado de cada mês e conta com cantos populares e a seguinte reza:

Pedimos licença a todas as almas daqueles que foram enterrados nesse Campo Santo dos Aflitos e principalmente ao nosso patrono, o glorioso Chaguinhas, para que as intenções desse terço sejam atendidas pelo nosso Deus misericordioso, pela sua intercessão e de Nossa Senhora Mãe dos Aflitos [...] Pedi com fé e recebereis. Batei na porta do Chaguinhas e a misericórdia de Deus se abrirá na sua vida. Amém.

A missa do Santo Chaguinhas ocorre aos primeiros sábados do mês na Capela dos Aflitos na Rua dos Aflitos, 70 - Traves. Rua dos Estudantes - alt. nº 52 - Liberdade, São Paulo.

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