
7 minute read
Sobre o romance do escritor Albino Baptista Desde a Estalagem do Passado
from OsmusikéCadernos 1
by osmusike
Agostinho Ferreira
agostinhoferreira@esfh.pt
Advertisement
O último romance do escritor Albino Baptista é uma obra de considerável dimensão. As 329 páginas incluem uma biobibliografia de oito páginas, um prefácio de 24 páginas e uma pequena reflexão do autor com cinco páginas. A capa e a contracapa são também da autoria do escritor. É uma edição da “Chiado Books” e data de outubro de 2019. Tem como subtítulo “Passos perdidos nos desencontros e encontros de estórias de amor”. Trata-se de um romance que pretende retratar as relações humanas dos tempos atuais. Desde a fragilidade das relações amorosas até às duvidosas relações laborais, passando pela evolução das condições de trabalho e pela emigração das gerações que precederam as atuais, tudo é analisado neste romance. José Saramago dizia que o escritor está sempre presente na obra que escreve. É nessa linha que o prefaciador analisa o romance. O Dr. Rui Lopes, autor do prefácio e especialista na área da psiquiatria, encontra um forte paralelismo entre a vida do autor e as linhas narrativas do romance. Ainda que a mundividência do autor, a sua visão política e social estejam sempre presentes, parece-nos que a leitura biografista do romance pode não ser a mais objetiva, embora seja uma interessante visão, sobretudo se a associarmos à formação do prefaciador.
À maneira naturalista, as ações do passado contribuem para a verosimilhança do presente. Assim se explica a necessidade de recuar até à década de 1950, época marcada pela ruralidade, pelo domínio do masculino, pela religiosidade, pelo obscurantismo. É aí que se situa a infância de Dário, uma das principais personagens da obra. A década seguinte foi marcada pela emigração, sobretudo para Paris, que operou significativas mudanças no tecido social. Mas foi sobretudo na geração dos filhos desses emigrantes que se operou a mais significativa mudança de mentalidade. De facto, o pai do Gil, emigrante em Paris, continua a rezar e a ter uma vivência muito marcada pela religiosidade, ao passo que a filha Violeta assume um comportamento extravagante, com a vivência de uma sexualidade livre e espontânea e com um total desprendimento em relação aos preceitos religiosos. Enquanto o pai, estando em Paris, continua a viver como se estivesse numa aldeia rural do Minho, a filha vive como se não fosse portuguesa. As figuras paternas são tipos sociais que representam as mentalidades anteriores ao 25 de abril: uns são muito severos, outros muito religiosos, outros muito protecionistas. E em todos os casos prevalece a visão masculina que dominava a visão social da época. A ação central deste romance gira essencialmente em torno de três casais, também eles correspondentes a três tipos sociais. O primeiro casal é constituído por Dário e Leonor. Representa aqui um estatuto social elevado. Dário era advogado, como o seu pai, e é a personagem mais relevante do romance. Leonor, por seu lado, também mostra um elevado nível socioeconómico. Dotada de uma personalidade forte, acaba por ser a mulher que abre e fecha o ciclo amoroso de Dário. O segundo casal é constituído por Salema, primo de Dário, e Filipa. Salema, filho de transmontanos que foram viver para Lisboa, à procura de uma vida melhor, acaba por se tornar uma figura destacada nos meios académicos da capital. Filipa é uma personagem muito bem construída, que corresponde ao perfil da mulher atual. Divorciada e mãe, acaba por se tornar marcante na vida de Salema. O terceiro casal junta Gil e Joana. Formam o casal mais jovem. Gil é filho de emigrantes. Regressa a Portugal e por cá fica. Tira o curso de sargento da polícia. Joana é uma rapariga estudiosa, organizada e responsável. Há ainda uma outra personagem feminina muito relevante, a Violeta. É o elemento perturbador. Aparece no romance como o protótipo da mulher livre, com uma mentalidade evoluída, que vive sem preconceitos nem limites. Simboliza a libertação feminina em relação aos cânones estabelecidos. É sensual sem ser magra, é extravagante no modo como se veste, como se ri e como se relaciona com o sexo oposto. Muda de parceiro
com facilidade e acredita que as paixões são sempre efémeras. Representa a visão existencialista da vida. Interfere com dois dos casais atrás referidos, desestabilizando a vida amorosa destes. Foi educada em Paris e mostra que a educação social pode ser mais marcante que a educação familiar. De facto, o pai é uma personagem muito tradicionalista e orienta toda a sua existência por uma excessiva religiosidade. Relativamente às personagens masculinas, há a registar o facto de todas terem vivido aventuras amorosas que vieram perturbar a harmonia dos respetivos casais. As personagens femininas podem dividir-se em dois grupos que representam outros tantos modos de encarar a vida e as relações amorosas. O primeiro grupo, que inclui Leonor, Filipa e Joana, representa a mulher moderna, evoluída, com personalidade, com autonomia social e laboral, desligadas de preconceitos religiosos. Simultaneamente são românticas, com elevação moral. Embora de diferentes modos, a sua existência é marcada pela dignidade e pelo compromisso. O segundo grupo, que inclui Violeta e Fernanda, representa outro modo de viver a sexualidade. Representam a conduta de vida de quem vive intensamente o presente, sem as peias dos compromissos. São mulheres que sabem ser livres, nem que seja por umas horas. O romance, por definição, procura entrar nos meandros da psicologia humana. Este não é exceção. O romancista explora com frequência a vertente do erotismo, como uma das facetas mais significativas da vivência humana. A própria vivência da sexualidade mostra a evolução da sociedade. Para facilitar a exposição, direi que a sexualidade tem aqui quatro funções: marcar a diferença de gerações e de mentalidades e mostrar a evolução da mentalidade social e individual; salientar a liberdade e a diversidade de vivências; mostrar o lado irracional do ser humano, à maneira surrealista; registar o modo como o romancista perspetiva a problemática da sexualidade. Os espaços geográficos são elementos contextualizadores relevantes. Embora diversificados, os mais significativos são Lisboa, Porto e Paris. Há, depois, espaços menores que vêm confirmar o título da obra (estalagem do passado) que são vivendas, apartamentos, cafés e bares, o interior de automóveis, espaços rurais e urbanos e que contribuem, por um lado, para o enquadramento de diferentes situações afetivas e, por outro, para a caraterização de diferentes extratos sociais. Representam, ainda, determinadas mentalidades: o bairrismo do Porto; a presunção de alguma superioridade cultural de Lisboa com a qual o narrador ironiza; a mentalidade aberta e evoluída de Paris.
Merece ainda destaque a originalidade dos títulos que introduzem os capítulos. Estão sempre relacionados com a luz ou a escuridão. Títulos como “Sombrinhas”, “Sombras… sombrinhas”, “Sombreado…”, “Sombreado claro”, “Claridade sem penumbra”, “Penumbra…”; “Negrume”, etc. remetem metaforicamente para diferentes momentos históricos ou para diferentes situações vividas (ou expectáveis) pelas personagens, como: incerteza, recordação, choque de perfis psicológicos, situações trágicas ou eufóricas. Funcionam, ainda, como antevisões de acontecimentos ou como indícios. O autor é um leitor experiente e profundo conhecedor das técnicas narrativas. Um pouco à maneira de Saramago, procura fugir às tradicionais teorias da literatura que nunca conseguiram, de modo definitivo, resolver a problemática da entidade a quem compete a narração dos eventos. É comum falar-se de narradores. Preferimos aqui falar de vozes. Há a clara presença de três vozes narrativas. Uma funciona à maneira tradicional e apresenta os eventos na sua globalidade. Há a voz off que serve para estabelecer diálogos com o autor. Personifica possíveis leitores ou críticos da literatura, que questionam a pertinência de algumas situações:
“vou interromper-te, ó autor deste livro. Como romance, que queres que ele seja, não te parece que deverias estacionar, pairar mais um pouco sobre os ambientes?” (pág. 102). Na fase final do romance, a voz off é a voz de um lisboeta que dialoga com o autor e a quem este responde de modo crítico, mostrando o seu bairrismo nortenho:
“Cansadinho, Caro escritor? Vais numa pedalada! Mas isso é uma batedura a Nobel ou quê? Viva escusado intruso! Tens sotaque diferente!? Não és o mesmo do outro dia… esse “inho” agudo e esse
“e” de “pedalada” aberto, diz-me que deves ser um da capital… Aquela onde todos são escritores, mesmo sendo escrito por outros… Eles são apresentadores de TV, corredores de atletismo, jogadores de futebol, atores (…) Estás enervado, cansado, incomodado ou irónico, ó escritor do norte? Com letra maiúscula, faz favor, ó menino! NOR…TE! Assim, está bem? Estou como quero estar. Não tenho satisfações a dar-te, pá! Vai trabalhar meio dia e fingir outro meio…” (pág. 319). Aparece ainda uma outra voz que é claramente a voz do autor. É uma voz crítica, semelhante à de um cronista que se pronuncia sobre a sociedade, sobre o sistema politico e social. Por último, uma referência breve ao estilo. O autor, além de romancista, é também poeta e cronista. E isso acaba por moldar a sua escrita. Estamos perante uma escrita que prima pela clareza. A frase, normalmente
curta e frequentemente poética, promove um ritmo rápido e proporciona uma leitura agradável. As descrições são feitas de traços largos e sugestivos. Os eventos narrados deixam normalmente margem para a imaginação do leitor. Concluímos, salientando que o eixo narrativo essencial deste romance gira, como refere o subtítulo, em torno dos “desencontros e encontros de estórias de amor”.