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Guimarães: cidade-património e cidade-lugar
Isabel Vaz de Freitas Universidade Portucalense
O património, material e imaterial, e a História da cidade de Guimarães são reconhecidos nacional e internacionalmente. O centro histórico, património classificado pela Unesco em 2001, guarda em si uma história de séculos com enorme significância nacional, de valor excecional internacional, conforme avaliação nos domínios da Convenção do Património Mundial Cultural e Natural (UNESCO, 1972). Intimamente ligada às origens de Portugal, a cidade apresenta no seu centro Histórico elementos arquitetónicos que se mantiveram resilientes ao tempo, intactos com a passagem das suas pessoas que os veneraram e cuidaram com grande apreço e dedicação. São de relevar monumentos que se mantiveram, apesar de todas as intempéries, naturais ou sociais, e que chegaram, até hoje, como testemunhos de uma herança patrimonial e histórica do nosso passado. Monumentos resistentes ao tempo, por onde Mumadona Dias passou, Afonso Henriques, Afonso IV, D. Fernando, D. João I, D. Pedro II e tantos outros que não enunciarei para que não faltem. Decisores que marcaram a cidade com personalidade, com valores, com mais património que ofereceram às gerações futuras. Viver o património e a cultura da cidade no dia a dia é o que confere autenticidade e diversidade aos nossos lugares. Estas comunidades que por aqui passaram ao longo dos séculos, emocionalmente ligadas à presença de Afonso Henriques e à sua capacidade guerreira expansionista por terras mouriscas, manteve-se afeta à causa da cidade-nascimento de Portugal, causa que se perenizou na classificação da cidade como património mundial. Em todos estes recantos podemos ler a História, as estórias e as histórias. Um livro aberto que, em cada monumento, nos conta os séculos de vidas que presenciou. E ao passar por cada rua, por cada praça, ouvimos o que a cidade tem para nos revelar. ICOMOS (1987), refere que as cidades são expressões das suas sociedades ao longo do tempo, resultados da presença mais ou menos espontânea, mais ou menos dirigida pelos seus decisores. São os valores, materiais e espirituais que conferem uma personalidade, uma expressão, ao lugar. Um semblante físico (património material) e espiritual (património imaterial). Desenham a cidade recantos que respiram a Idade Média, que uniram a cidade alta à cidade baixa e a recortaram em praças, torres e ruas onde, ainda hoje, nos encontramos com a medievalidade. Uma Idade Média alterada na passagem do tempo, claro está, mas que ainda se entende pelos seus vislumbres e
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resiliência. Alterada pelas gerações que foram embelezando acrescentando elementos, gerações que deram nova vida quando esta se perdia, ou que se impuseram pela necessidade da reabilitação dos espaços que foram, à luz das teorias de conservação e restauro da época, sendo intervencionados. Nestas intervenções, a medievalidade foi sendo ocultada, transformada ou, simplesmente, assegurada. Permaneceu o sentir. Este é o caso do Paço dos Duques, entre outros monumentos intervencionados no século XX entre teorias de recuperação de património que pretendiam reaver o edifício das ruínas. Concederlhe uma forma aproximada do original, do autêntico, mas que não evitou a transformação. Visitando a Idade Média em Guimarães, a cidade alta, do complexo do castelo, que viveu conflitos e onde se afirmou o poder condal do Condado Portucalense, é local obrigatório. Por aqui se encerra dentro das suas muralhas a força sentida de querer ir mais longe e conquistar novos territórios. Nesse sentido, a igreja de S. Miguel do Castelo é por si só um símbolo. A pia batismal, onde, por crença tradicional, Afonso Henriques se batizou e as sepulturas de nobres cavaleiros que venceram forças antagónicas, são simples objetos de enorme valor patrimonial, histórico e emblemático. É esse valor, esse sentido continuado no tempo, que nos obriga a pensar o património, todo o seu significado e a salvaguarda da sua identidade e autenticidade. O valor do património é também o valor identitário e de reconhecimento como intrinsecamente ligado a cada uma das pessoas que integram as comunidades guardiãs. Continuando na medievalidade, é local de paragem obrigatória a Praça da Oliveira. Uma das praças mais emblemáticas e centrais, no coração da cidade baixa. Marca-se pelo seu Padrão do Salado, a Igreja de Santa Maria da Oliveira, as arcadas dos antigos Paços do Concelho e pela oliveira que, não sendo a original, mantém viva a imagem da praça santificada e dá continuidade à ideia de que o património ainda continuará apesar da passagem geracional pelos lugares. O património permite-nos, de facto, entender que a vida continuará para além da nossa existência, dos nossos dias, da nossa presença. A nossa vida será apenas um momento nessa linha contínua do tempo patrimonial. É nesta continuidade que entendemos o valor simbólico, emocional, espiritual da História e da garantia do seu perpetuar pelo futuro. Destes elementos simbólicos de continuidade, por vezes, resta apenas a memória do lugar onde outrora se erguera. É o caso da Igreja de Santiago, na Praça de Santiago, que nos remete para a vivência do(s) caminho(s) de fé, de esperança, que rumam a Santiago de Compostela e escolheram a cidade de Guimarães para uma das paragens nas etapas. O templo já não existe, reza a história, fundado por S. Tiago sobre um templo pagão existente, mas ficou a sua imagem gravada no chão, mostrando que, algures no tempo, um pequeno lugar cristão ali acolheu peregrinos.
Estes monumentos são mais do que elementos patrimoniais da cidade, através deles fazemos leituras do tempo e da história e recordamos quem pretendeu deixar testemunhos das suas crenças e dos seus feitos. São ainda, elementos simbólicos de outras histórias de relações de boas e más vizinhanças e de uma sociedade que se impõe nas suas vontades e ações. Assim é a tão emotiva gárgula colocada nas paredes da igreja de Nossa Senhora da Oliveira que permite manter presente os afamados vizinhos, para onde se encontra voltada em posição pouco discreta. Estas histórias são chave de um património imaterial que ainda hoje é visível nos vimaranenses e que distinguem a sua personalidade vincada, única e plena de tipicidade. Este património imaterial mantém-se vivo pela presença de habitantes na cidade e pela continuidade de vivências habitacionais no seu espaço. Assim devemos olhar para as cidades, evitando perdas de património, em particular o frágil património imaterial, que desaparece e se esquece sem os ímpares residentes. Todos nós somos responsáveis Antiga Capela de Santiago, imagem de SAL pela continuidade e pelo evitar de perdas. Todos nós temos o dever de manter viva a herança que nos chegou do passado e o dever de a continuar para que as futuras gerações a possam conhecer e considerar parte da sua identidade. Chame-se lugar e não apenas cidade. Lugar mostra-se associado à emoção de cada elemento arquitetónico e decorativo independentemente do seu valor. O simples facto de lá estar, já comporta em si uma história de vida. Cada lugar tem o seu espírito, uma essência onde o tangível e o intangível se interligam, nunca se dissociando. São memórias, narrativas, rituais, tradições, cores, odores, entre muitos atributos que conferem valores dos quais são protetoras as comunidades locais (ICOMOS, 2008). Lugar, permite-nos entender a presença de D. Mumadona, o berço da nacionalidade marcado na espada de Afonso Henriques, a religiosidade espalhada por cada uma das capelas dos Passos da Paixão de Cristo, as novenas, as ceias nicolinas, a roubalheira, ou o pinheiro erguido entre rufar de tambores. É neste contexto de material e imaterial

que entendemos a ampla relação das pessoas com o seu lugar. Os espaços urbanos e o seu património vão surgindo como pano de fundo, como cenário, aos sentidos. Assim o são as Nicolinas ou as Gualterianas, entre muitas festas da cidade plenas de espírito e de história. Um património imaterial de relevo incontestável, que vive em plena harmonia com o seu espaço, mantendo-se nas tradições, nos hábitos de geração após geração. De facto, há todo um património imenso para lá dos monumentos que enriquece esta cidade-lugar. Um património que as suas comunidades vão aumentando pela sua presença, tornando viva a memória perpetuada em simples gestos. As flores e as roupas molhadas enfeitam as típicas varandas de madeira e os entaipados sobressaem nas praças onde os coloridos ocres, amarelos e castanhos fazem bem a harmonia com os granitos da região e onde os sons dos sinos disputam presença pela manhã e fim de tarde. Todos estes elementos de cor, textura, sons e odores são fortes auxiliadores das tradições, da História e do património local, conferindo ao centro histórico uma identidade única e de admirar. Elementos a considerar e a preservar quando se pensa a cidade. O som da água que corre em couros, a textura do granito, o colorido das portas e janelas, os sons dos tambores e caixas, as danças, os cantares ou o pinheiro da praça, são também património de grande significância e valor. São elementos que não precisam de ser explicados para serem imediatamente reconhecidos e sentidos. A este facto chama-se identidade. Manter este património vivo é, e deve ser, sempre, uma preocupação da cidade. A reabilitação é um processo que tem de ser pensado e trabalhado com todos os cuidados de forma a conservar todos os tempos, todas as histórias e toda a História da cidade e evitar degradação, desagregação ou destruição irreversível dos elementos que a mantêm viva. É evidente que a passagem do tempo não pode congelar o património. Este tem a sua própria história por onde as gerações vão passando e criando marcas dessas passagens. O património, para ser vivido e para poder conviver com as novas gerações, tem de ser moldado e adaptado aos tempos. Nessa sucessiva vivência geracional, a qualidade de vida que os residentes locais esperam tem de ser respeitada, sob pena do abandono e da ruína. Para evitar a ruína, o uso tem de ser constante e permanente. O momento mais difícil do pensamento da reabilitação e da salvaguarda surge exatamente no momento em que temos de pensar o seu uso e a sua vida ativa. O património como organismo vivo tem de se incluir nas vivências das comunidades e acompanhar os tempos. Assim, os lugares vão mudando os seus usos e as suas funções adquirindo novos usos e novas funções. Este é o caso do Convento de Santa Clara ou do mercado municipal. Um debate que se impõe e que nunca estará fechado. Um debate a fazer, com muitas dúvidas e com poucas certezas. Mas, com uma verdade: não há soluções de salvaguarda de património sem que
sejam bem refletidas e bem estudadas, não há soluções fechadas. A conservação e salvaguarda de património tem de respeitar o equilíbrio, a coerência patrimonial, a harmonia, os valores e os estratos históricos, mas deve manter vivo o lugar, promovendo a continuidade da sua história, do seu sentido estético, da sua identidade. O reuso deve pensar na sua adaptabilidade e no respeito pela integridade do lugar, precavendo a destruição dos seus valores. Essa passagem do tempo continua a marcar-se nos espaços desta cidade-lugar. A par da cidade baixa e da cidade alta, espaços medievais, unidos pela Rua de Santa Maria, a cidade evolui em direção ao Toural, ocupado por uma cidade barroca, dos grandes palácios e Misericórdia. Mas os estratos temporais continuam a exercer os seus movimentos e a cidade alarga-se abrindo novas artérias, novos jardins, ou transformando à luz do tempo fachadas de casas que vão sofrendo renovação pela cidade do século XIX que cresce dentro e fora de muralhas e que se reveste de outros elementos decorativos, como o azulejo. Por fim, os novos tempos marcam novos espaços de uma modernidade que se alarga numa segunda, terceira ou quarta linha, afastando-se das muralhas medievais e ocupando áreas mais rurais. A urbanidade vai crescendo sobre a ruralidade. S. Domingos e S. Francisco ou o Palácio de Vila Flor que já estiveram em espaços de menor urbanidade e de maior ruralidade, estão hoje em lugares chave da cidade que lhe mudaram o carisma e a existência e produziram novas vivências. Entre os elementos patrimoniais e históricos das cidades destacam-se, também, as paisagens naturais e a transformação da natureza interior ou exterior no seu ecossistema urbano (ICOMOS, 2011). As hortas e os espaços comuns, trabalhados pelas diversas comunidades que por aqui passaram, são igualmente lugares de interesse e de significância que testemunham as atividades económicas, que auxiliam a compreender a arquitetura e todos os seus materiais e estética. Nessa envolvente da cidade, destaca-se o monte da Penha com o seu santuário, a Costa que ainda guarda a ruralidade e Santa Marinha com a sua pousada. Uma envolvente que garante a Guimarães outras histórias. O património desta cidade continuará em expansão no futuro. Outras formas surgirão, outros elementos materiais e imateriais irão surgir como novas marcas deste território. Esta evolução continuará, e bem, pois a cidade não morrerá, sobreviverá. Hoje cabe-nos a nós zelar por todos os seus lugares pensando a longo prazo, planeando o futuro e gerindo o presente. Neste processo todos os atores são fundamentais. Os decisores políticos, os residentes, os visitantes, os empreendedores locais… Todos são importantes neste processo de crescimento e de continuidade. As decisões são chave para garantir o futuro, para manter a autenticidade e a integridade deste património. As construções e a inovação de hoje serão o património material e imaterial de amanhã. Temos uma grande responsabilidade na tomada de decisões sobre a cidade-
património e sobre a cidade-lugar.
Referências bibliográficas
ICOMOS (1987). Carta internacional para a salvaguarda das cidades históricas. Acedido em http://www.patrimoniocultural.gov.pt/en/patrimonio/cartas-e-convencoes-internacionais-sobre-patrimonio/ ICOMOS (2008). Declaração do Québec: Sobre a preservação do “Spiritu Loci”. Acedido em http://www.patrimoniocultural.gov.pt/en/patrimonio/cartas-e-convencoes-internacionais-sobre-patrimonio/ ICOMOS (2011). Principios de La Valeta. Acedido em http://www.patrimoniocultural.gov.pt/en/patrimonio/cartas-econvencoes-internacionais-sobre-patrimonio/ UNESCO (1972). Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Acedido em https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/convencao_protecao_patrimonio_mundial.pdf