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A Queda da Bastilha em Guimarães: mito e história

António Amaro das Neves

Há em Guimarães uma consciência patrimonial que atravessa os séculos e que se traduz pelo apego das suas gentes à história da cidade e ao património que lhe dá forma. Aqui se aplica, desde tempos quase sem memória, o conceito enunciado pelo urbanista catalão Jordi Borja que Jorge Sampaio traduziu em Guimarães, terra onde as gentes e o tempo consolidaram “um patriotismo da cidade que permite aos seus líderes, atores e ao conjunto da cidadania assumir com orgulho o seu passado e o seu futuro e, especialmente, a sua atividade presente”.2 Mas rezam as crónicas contemporâneas que a cultura cívica vimaranense carrega, há quase dois séculos, uma mancha que, de tão repetidamente invocada, acabou por ganhar foros de verdade indiscutível. Conta-se como um conto, com variações nos detalhes que lhe acrescentam pontos. A versão mais corrente é a que foi reproduzida na edição de 18 de agosto de 2011 da revista Visão:

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Guimarães, 10 de junho de 2005 fotografia da Presidência da República.

Querem ouvir uma história? Se, num belo dia de 1836, um dos vereadores vimaranenses tivesse votado de forma diferente numa reunião camarária, o Castelo de Guimarães teria sido demolido e a sua pedra utilizada para calcetar as ruas. Foi só por um voto que saiu derrotada a proposta nesse sentido apresentada pela Sociedade Patriótica Vimaranense.

Esta narrativa leva-nos até ao tempo da instauração definitiva do liberalismo em Portugal, no rescaldo da guerra civil fratricida que derrotou as tropas miguelistas e entregou a coroa de Portugal à filha de D. Pedro IV, D. Maria da Glória. Por aqueles dias, a difusão e a defesa das ideias liberais em Portugal não se faziam através de partidos políticos, que então não existiam, mas especialmente em associações ou clubes que, na tradição do iluminismo europeu, se constituíam em fóruns onde se travavam discussões filosóficas e políticas, se propagandeavam as ideias liberais e se zelava pela sua aplicação. Em diversas cidades portuguesas, estas associações assumiram a forma de Sociedades Patrióticas, que juntavam defensores da causa liberal, por regra pertencentes às elites mais ilustradas da burguesia, do clero e da nobreza. Muitos dos seus membros foram vítimas das perseguições do tempo da usurpação miguelista, o que ajuda a explicar o radicalismo

2 BORJA, J. “Políticas para la ciudad europea de hoy”. In : DE FORN, M. & BORJA, J. (dirs.). Barcelona y el sistema urbano europeo. Ayuntamiento de Barcelona, Barcelona, 1990, p. 62.

que, por vezes, contamina as posições que se assumiam e as deliberações que se tomavam. Guimarães também teve uma destas agremiações, a Sociedade Patriótica Vimaranense. Foi instalada no dia 25 de outubro de 1835, numa sessão realizada na sala de audiências do Convento de S. Francisco, com a presença de 45 fundadores, entre advogados, médicos, militares, clérigos, proprietários, comerciantes, capitalistas. Teve como primeiro presidente o juiz de direito António Clemente de Sousa Girão e, como secretário, o jornalista José de Sousa Bandeira, fundador do primeiro jornal de Guimarães, o Azemel Vimaranenses. Na sessão da Sociedade do dia 3 de dezembro daquele ano, após a aprovação dos estatutos, foi eleito presidente o barão de Vila Pouca. Os seus estatutos foram referendados por portaria do Ministério do Reino de 1 de março de 1836. Esta agremiação de liberais vimaranenses funcionou até 20 de dezembro de 1839, data da sua dissolução. A Sociedade Patriótica Vimaranense não limitou as suas atividades ao debate das ideias liberais. Também promoveu projetos para o melhoramento do concelho, a promoção do ensino e o desenvolvimento económico. Assumindo-se como defensora dos interesses locais, constituiu várias comissões especializadas (agricultura, comércio, instrução, polícia e salubridade). Na sua sessão de 24 de janeiro de 1836, os membros da Sociedade Patriótica Vimaranense debateram a necessidade de um projeto para a construção de um teatro em Guimarães, um pedido de vacinas ao governo, um plano sobre a instrução pública, a criação de um gabinete de leitura e encarregaram a comissão de polícia e salubridade da elaboração de “um projeto para o conserto das calçadas da vila”.3 Aquele projeto seria apresentado aos membros Castelo de Guimarães, meados do séc. XIX - cliché de Frederick W. da Sociedade Patriótica na sessão seguinte, realizada Flower. na noite de 31 de janeiro. Logo José de Sousa Bandeira requereu que lhe fosse dada urgência. Posto imediatamente à discussão na generalidade, foi aprovado, após animado debate. A certa altura, o capitalista Francisco Martins da Costa apresentou uma sugestão que visava suprir a necessidade de aquisição de pedra para calcetar as ruas da vila de Guimarães, propondo “que se

3 Os extratos das atas da Sociedade Patriótica Vimaranense transcritos são retirados de: Faria, João Lopes de, Efemérides Vimaranenses, 4 vols. manuscritos, Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, Guimarães.

exigisse também a demolição do castelo para o dito fim, e até por ser uma cadeia bárbara que serviu no tempo da usurpação”. Quase meio século depois da Revolução Francesa, a concretizar-se a vontade de um liberal da terra, a Queda da Bastilha seria replicada em Guimarães. É, pois, verdade que um dia alguém propôs que se derrubasse o castelo de Guimarães e que se usassem as suas pedras para pavimentar as calçadas do velho burgo. A inaudita proposta de Martins da Costa seria subscrita por vários dos presentes, nomeadamente o juiz de direito Agostinho Vicente Ferreira de Castro, que “abundou nas ideias do Costa”, manifestando-se a “favor da demolição, por ter sido prisão do tempo do usurpador”. Mas também não faltaram os que se lhe opuseram veementemente, com o jornalista Sousa Bandeira a abrir as hostilidades, lembrando que o castelo era “um monumento antiquíssimo que recordava a história do país, e muito particularmente a de Guimarães”, salientando o exemplo dos ingleses no respeito pelos monumentos antigos. A opinião de Sousa Bandeira seria secundada pelas intervenções do boticário Francisco José Pereira Basto, do médico Manuel José do Souto, dos proprietários João Barroso Pereira e Domingos da Costa Vaz Vieira e do major José Joaquim Moreira de Sá. No final da discussão, quando se preparava a votação, José de Sousa Bandeira tomou de novo a palavra para, tendo em consideração o teor da proposta em apreciação, de cuja aprovação resultaria “o privarmo-nos dos testemunhos da antiguidade”, requereu que a votação fosse nominal, com o propósito implícito de responsabilizar, para memória futura, cada um dos presentes pelo sentido do seu voto. Assim se fez. Agostinho Vicente Ferreira de Castro, o cirurgião José Correia de Oliveira Mendes e o barão de Vila Pouca, votaram a favor da demolição do castelo da Fundação, juntando os seus votos ao do proponente. Os votos contra foram quinze, e não um como conta a “história”. Quatro a favor, quinze contra. Portanto, se é verdade que um dia alguém propôs que se derrubasse o castelo de Guimarães, também é verdade que essa proposta foi esmagadoramente rejeitada.

Se a atitude dos vimaranenses perante o seu património histórico e monumental não está isenta de peCastelo de Guimarães, 2011 — fotografia aérea de Filipe Jorge. cados, entre eles não se conta, manifestamente, o de um dia quase terem mandado demolir o seu castelo. Entre as gentes de Guimarães sempre prevaleceu a consciência do valor do legado patrimonial, o que possibilitou a preservação da essência do património

urbano e humano do seu centro histórico, abrindo caminho para reconhecimento pela UNESCO, num processo de requalificação exemplar, de que a consagração internacional não era a meta, mas foi a consequência.

Concebido pelo arquiteto Fernando Távora, o modelo de revitalização do espaço intramuros da velha Guimarães teve como fio condutor o objetivo de qualificar o edificado sem destruir o modo de vida dos que o habitavam. Porque, se a cidade de Guimarães guarda em si um património magnífico, o melhor que tem ainda são as pessoas que a habitam. Na base deste processo, estava a ideia de que as ruas e as praças históricas deveriam ser lugares onde se continuasse a querer viver, mantendo as suas dinâmicas de vizinhança e de proximidade. Em dezembro de 2001, na festa com que Guimarães celebrou a distinção da UNESCO, o presidente Jorge Sampaio notou que “a classificação como património da Humanidade não é uma mera menção honorífica e implica redobrada atenção ao espaço edificado e à sua vivência”4 . À distância de vinte anos, percebemos que, se a cidade tem cumprido com a obrigação de cuidar do património construído, algo tem descurado na atenção à sua vivência comunitária. Infelizmente, na última década o modo de vida do espaço intramuros da cidade de Guimarães tem vindo a ser desestruturado por um processo de gentrificação espontânea que vai fazendo tábua rasa do pensamento inovador e coerente que conduziu o processo de requalificação das duas últimas décadas do século XX.

A comemoração do vigésimo aniversário do reconhecimento do centro histórico de Guimarães como património da humanidade coincide com o tempo em que despareceu Jorge Sampaio, a quem Guimarães tanto deve. Ficaram-nos o seu exemplo, a sua memória e as suas palavras. Aqui se lembram as que nos disse na festa de dezembro de 2001:

A preservação dos valores patrimoniais deve constituir uma prioridade fundamental. Essa prioridade não é, aliás e ao contrário do que às vezes se pensa, incompatível com uma visão moderna e de futuro. Penso mesmo que é uma condição de desenvolvimento sustentado e de progresso com sentido humanizador.

Os países mais desenvolvidos têm sabido preservar e rentabilizar o seu património, valorizando a sua identidade. Estabelecer uma falsa dicotomia entre passado e futuro, identidade e universalidade, memória e modernidade releva uma visão estreita. Sabemos que estas dimensões podem e devem ser conciliadas, potenciando-se umas às

4 Discurso do Presidente da República por ocasião das Comemorações do Centro Histórico de Guimarães como Património Cultural da Humanidade. Guimarães, 22 de dezembro de 2001.

outras. É impossível pensar na história de Portugal sem pensar em Guimarães. Isso, que representa uma riquíssima herança e um privilégio, implica também uma responsabilidade a honrar.

Neste dia, é-me muito grato sublinhar o esforço e grande apoio da população que, desde o início do processo, soube entender e empenhar-se na defesa do Centro Histórico da Cidade. Como Presidente da República, saúdo a população de Guimarães e associo-me ao seu júbilo. Seja-me permitido também uma nota pessoal: os laços familiares e afetivos que me ligam a esta cidade, deixam-me pessoalmente orgulhoso por todo o trabalho aqui realizado e por esta classificação. Em Guimarães, aprendi a fidelidade às raízes, de uma forma que me marcou desde muito jovem.5

5 Idem.

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