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Elevação de Guimarães a Património Mundial
Fernando Seara de Sá Vereador da Câmara Municipal de Guimarães
Comemoram-se, em 13 de dezembro de 2021, os vinte anos da classificação do Centro Histórico de Guimarães como Património da Humanidade. Aconteceu, em Helsínquia, em reunião do Comité do Património Mundial da UNESCO. Mas isso é História, e é a história de um processo de reabilitação urbana da cidade em três andamentos. Tem um antes, tem um depois e tem também um agora. Contemos, portanto, a história.
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Primeiro Andamento
(Presto) Em meados dos anos oitenta, a Câmara Municipal de Guimarães (CMG) cria uma equipa interdisciplinar (Gabinete Técnico Local, antes Gabinete do Centro Histórico) que tinha como objectivo a reabilitação do centro histórico. Definiu-se o perímetro e os objectivos que apontavam, no essencial, para um novo olhar do edificado como contendo valores que interessava trazer para primeiro plano, e estamos a falar de valores patrimoniais e culturais que importava preservar para o futuro. O objecto sobre o qual se iria trabalhar era complexo, tratava-se de uma cidade, com tudo o que isso implica, do construído e dos espaços que os edifícios criam, ruas, praças, vielas, mas também considerando o suporte que esses edifícios e espaços dão às actividades económicas e sociais. Importava devolver à cidade e às suas gentes e que as pessoas da cidade fizessem vida e a usassem de forma nova e completa, participando na sua reabilitação. Esperava-se, era esse o objectivo, que o resultado fosse a elaboração de um Plano, num tempo destinado a toda a operação, que se pensava poder durar dois ou três anos. Intuiu-se desde logo que estes processos não cabem em tempo curto, e querendo-se que todo o processo fosse participado, teria o tempo que ser alargado na medida em que coubesse a cidade e a sua gente. Tivemos um tempo alargado para o desenvolvimento de todo o processo de reabilitação urbana e após essa conquista, pois de uma conquista se trata, aceitamos que o processo de reabilitação urbana é um processo que nunca acaba e tem que, em permanência, adaptar-se às circunstâncias de cada Tempo.
E aqui subentende-se a sageza de quem propõe, mas também de quem decide. Assim, o resultado não foi um Plano, mas um processo de permanente acompanhamento fundado num "Contrato Social" em que as tarefas foram distribuídas pelos vários intervenientes e que, simplificadamente, se poderá descrever como: - Às entidades públicas, a requalificação do espaço público e das infraestruturas, e aqui o papel da CMG foi central; - Aos privados, proprietários e moradores, a recuperação do edificado, num processo bem calibrado, em que as obras mínimas e necessárias incidiam sobretudo no exterior do edificado, numa graduação das regras e adequação das exigências feitas para mudar o paradigma do momento - construir de novo era melhor.
Sucessivamente, as regras foram desenvolvidas para conquistar, todos, para um modelo de reabilitação centrado na conservação e manutenção do existente, num caminho em que se generalizava a percepção do valor do patrimonial no seu conjunto e da necessidade de integrar neste, também, a "pequena arquitectura". Conquistou-se, neste processo, uma visão de uma cidade unitária onde cada parte é importante e concorre para engrandecer o todo. Esta metodologia de abordagem suave, pouco convencional, apostou também numa dinâmica de contágio e competição entre os proprietários e moradores que se traduziu num acelerar do processo, usando o sentido de pertença e a responsabilização de cada um na construção da obra colectiva que é a cidade. Mas Guimarães esteve à frente do seu tempo, conduzindo um processo de reabilitação urbana, onde se inovou, no pressuposto da manutenção dos moradores nas suas habitações habituais, isto quando a tendência generalizada do momento era a transferência das populações para os novos bairros e novas casas nas periferias. A cidade vai-se resolvendo com um desenho seguro e tranquilo, e num processo de envolvimento dos moradores constroem-se certezas, ganha-se a segurança necessária para lançar uma candidatura de Guimarães a Património da Humanidade, processo que se sabia lento e desafiante. A candidatura desenvolveu-se considerando também os valiosos e pertinentes contributos das entidades externas que nos acompanharam neste processo.
Segundo Andamento
(Adagio) A certeza de que Guimarães continha os valores requeridos e as habilitações necessárias foi prova provada e, em 13 de dezembro de 2001, chegou a notícia de que o Centro Histórico de Guimarães tinha sido
inscrito, pela UNESCO, na lista dos Sítios de Património Cultural da Humanidade. Este é o momento que importa referenciar porque foi o reconhecimento dos valores em presença, mas também da singularidade do processo de reabilitação urbana da cidade, do seu sucesso e da sua eficácia. Acrescentou a todo o processo responsabilidade e reconhecimento. A classificação, na forma como foi finalizada, identificava um perímetro urbano que corresponde ao que ficava no interior da muralha, e a essa área somava-se uma "Buffer Zone", entendida como área de transição entre o Bem classificado e a "cidade comum". E isso trouxe algumas consequências, umas boas e outras nem tanto. Como consequência directa da classificação aceitou-se que todos os trabalhos a realizar teriam como objectivo principal a conservação do Bem com a preservação da sua Autenticidade e Integridade, na medida em que estavam definidos os valores culturais em presença. Importa referir ainda, como talvez a mais importante consequência da classificação, a determinação de que, nos procedimentos de reabilitação, as técnicas tradicionais de construção e a continuação da sua utilização deveriam ser centrais e vistas como uma dimensão essencial do Bem classificado. E isto trouxe clareza, definitiva, ao processo de reabilitação urbana que decorria há cerca de vinte anos. Da classificação como Património da Humanidade decorreu, de imediato, também, a classificação como Monumento Nacional do Centro Histórico de Guimarães com a criação da respectiva Zona Especial de Protecção (ZEP), numa tradução directa e possível das novas circunstâncias para as normas do Direito interno Português. E isto significou que ao processo de reabilitação urbana chegaram entidades externas (DGPC, DRCN e ICOMOS) que passaram a participar legitimamente no processo de reabilitação urbana, aportando outros conceitos e obrigando a um processo negocial permanente das metodologias de intervenção e das soluções a adoptar em cada caso, muitas vezes sobrecarregando os procedimentos e alongando prazos. A classificação teve também como consequência o alargamento da área da operação de reabilitação urbana para novas zonas, estendendo os limites da zona de intervenção, de forma excessiva e aparentemente pouco coerente, com o intuito de incluir tudo o que pudesse ter algum valor patrimonial, e com isto assegurar que uma metodologia de intervenção assertiva e adequada para as zonas históricas seria também a solução para toda a cidade. Assim, a partir de certo momento, os critérios de reabilitação urbana tornamse unívocos, conservadores, e correm o risco de perder significado porque tudo, independentemente do seu valor, deve ser conservado. Assumiu-se tratar da mesma maneira coisas diferentes, isto é, passou a tratar-se a ZEP, com toda a sua diversidade, como se de área Classificada se tratasse. E importa claramente afirmar que a ZEP não é uma área classificada e que só existe em função da área classificada, para sua protecção, não
sendo, nem tendo um fim em si mesma. Assumir isto, agora, é possível porque se tem, naturalmente, claro os valores em presença e a excecionalidade que constitui a Zona Classificada. Sem esta clarificação o processo de reabilitação urbana começa a correr o risco de se transformar num mero processo de licenciamento de obras particulares, em que a graduação das soluções se converte em rotinas, as regras em clichés e todo o processo, a reboque das alterações administrativas necessárias, se isola da realidade viva da cidade, esmorece e se burocratiza. A classificação como Património da Humanidade do Centro Histórico e a operação de reabilitação urbana da Cidade são coisas diferentes, apesar de coincidirem no mesmo espaço. A primeira é a assumpção de um compromisso e um acréscimo de responsabilidade (se quisermos até pode ser vista como um prémio à actividade desenvolvida) e a segunda é um objectivo que vai além dos aspectos exclusivamente materiais (técnicos, construtivos e urbanísticos), e procura dar substância a uma ideia não unívoca de cidade futura. Foram exemplos disso abordagens mais transversais como o CampUrbis, o PAYT, e mais recentemente o Bairro C, onde se procurou, usando como Laboratório urbano experimental o Centro Histórico e a ZEP, de forma menos convencional, para fazer crescer a cidade noutras dimensões, dando resposta aos novos desafios que hoje as cidades enfrentam. Foi possível reabilitar e acrescentar novos usos sem acrescentar nada aos edifícios, somente reutilizando-os, reconstruindo-os e refuncionalizando-os, ou operando no espaço público ou nos serviços prestados, ultrapassando o conceito de que reabilitação é estritamente igual a conservação passiva do edificado.
Terceiro Andamento
(Alegro) Incompreensível foi a exclusão da Zona de Couros da área classificada, pelo que se consensualizou a necessidade de candidatar também esta área, conjuntamente com outras de grande relevância histórica, a Património da Humanidade, desenvolvendo os procedimentos necessários, tendo-se já obtido a inscrição na lista indicativa da UNESCO e a partir dos comentários críticos e construtivos das entidades de tutela, concluiuse o documento que estrutura a candidatura de extensão da área classificada. Da candidatura é parte central, cumprindo finalmente uma antiga exigência da UNESCO, um Plano de Gestão para a área classificada que pretende dar novo alento à operação de reabilitação urbana, revitalizando-a, procurando integrar os novos desafios que à cidade se colocam com a emergência do turismo ou a necessidade de responder aos quesitos de um desenvolvimento sustentável. O Plano de Gestão, sujeito a discussão pública, procurou estruturar-se à volta do pressuposto de que se deve ampliar o envolvimento da
comunidade (entendida sempre da forma mais lata possível) e assim continuar a desenvolver uma operação de reabilitação urbana com sucesso, resgatando-a do pecado de uma possível burocratização, que com o máximo de transparência dê a todos, e a cada um, a resposta antecipada relativamente àquilo que pode, ou não, ser feito. Paradoxalmente, a uma operação bem-sucedida de reabilitação urbana, considerada exemplar, apesar de algumas contradições, credita-se a necessidade de elaboração de um Plano de Pormenor de Salvaguarda, esquecendo-se que Guimarães mudou fruto de um trabalho continuado ao longo de quase quarenta anos com o uso de uma abordagem ágil e muito informal só possível porque não fixou objetivos através de um "plano" rígido e inflexível que não conseguiria acomodar no tempo ou nas circunstâncias. O Plano de Gestão proposto, e já aprovado, procura estruturar-se de forma aberta, flexível e adaptável, definindo objectivos a curto, médio e longo prazo, com um elenco das acções necessárias à defesa do Bem, referenciando-o sempre ao conjunto da cidade, e integrando o “valor do trabalho”, presente em Couros, na narrativa da cidade. A Guimarães de hoje não é a mesma cidade dos anos oitenta, nem tão pouco a cidade do virar do milénio quando o Centro Histórico foi classificado pela UNESCO como Património da Humanidade. Foram mudando as gentes e as actividades, o turismo e os eventos culturais pressionam um novo uso dos espaços públicos a que é preciso somar a preocupação imperativa de um desenvolvimento sustentável. É preciso um novo olhar, encarando os desafios como oportunidades, usando também outros instrumentos de trabalho e outras abordagens (a mobilidade, integrando o conceito de economia circular ou reflectindo como tornar esta cidade mais resiliente às alterações climáticas) para, em conjunto, se construir uma ideia do que poderá ser esta cidade daqui a vinte anos e encontrar o caminho para lá chegar. Não tenho dúvidas que o caminho será na direcção de uma cidade mais inclusiva, transparente e participada, acessível a todos e onde o crescimento será feito não tanto na dimensão física e material, mas centrado nas pessoas e na densificação das dimensões imateriais, na cultura, no conhecimento, na educação. E isto não será o fim da história, mas antes a continuação de uma história que já vai longa. Não posso terminar sem, depois de afirmar que esta história é sobretudo construção coletiva, referenciar alguns dos seus protagonistas que foram determinantes para a sua conformação, Fernando Távora e Alexandra Gesta, mas seria injusto não lembrar também Manuel Ferreira, António Xavier, António Magalhães e Domingos Bragança, que no tempo em que foram Presidentes da Câmara tornaram central na Política de Cidade esta operação de reabilitação urbana.