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Lembro-me como se fosse hoje
Alexandra Gesta Arquiteta da Câmara Municipal de Guimarães
Helsínquia estava coberta de neve branca, fria e silenciosa, uma serenidade melancólica alastrava-se sobre a cidade. O vento gelava as mãos nas luvas e trazia as lágrimas aos olhos. No Auditório Finlândia desenhado por Alvar Aalto reunia-se a Assembleia Geral da UNESCO, que na sua ordem de trabalhos tinha a eleição dos Lugares a Património Mundial da Humanidade. Entre a lista de lugares de todo o mundo, encontravam-se dois lugares em Portugal, Guimarães e o Douro Vinhateiro. O revestimento de mármore que no exterior do auditório o protegia das intempéries contrastava com o seu interior de madeira, quente e acolhedor. Espaço de elevada qualidade, transmite o timbre do gesto arquitetónico de Alvar Aalto, este lugar com capacidade para centenas de pessoas acolheu de forma confortável e harmoniosa este fórum. Interessante debate entre os técnicos da UNESCO, expondo as razões na defesa que leva cada lugar a ocupar uma posição na lista do Património Mundial que lhe permite ser parte integrante de uma família. Num ambiente de elite intelectual dos técnicos ICOMOS1 (corpo técnico da UNESCO) de todo o mundo, o debate eleva-se até momentos emocionantes. A qualidade e especialidade dos argumentos é fascinante. É um privilégio participar neste fórum! Chega agora o momento da apresentação do caso do Centro Histórico de Guimarães, o meu coração dispara, a respiração Representantes do Governo Central e o Sr. Presidente da CM Guimarães à chegada ao Paço dos Duques para a Cerimónia da torna-se ofegante e os olhos ficam rasos de lágrimas, ao Comemoração da Classificação de Guimarães como Património ver projetada no Grande Auditório a imagem do Castelo Mundial, Foto de Paulo Pacheco. de Guimarães. Começou a justificação das razões que suportam a proposta de classificação de Guimarães
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1 Organização não-governamental mundial associada à UNESCO.

como Património da Humanidade. Rigor no desenho da recuperação física utilizando técnicas tradicionais, participação da população, dos agentes urbanos na recuperação de um fragmento da cidade, uma atuação integrada, coordenando entidades com tutela sobre a área, são algumas das razões evocadas. Com o decorrer da explicação por parte dos técnicos ICOMOS sobre a análise que fazem do projeto de recuperação do Centro Histórico de Guimarães, invade-me uma tranquilidade ao ver reconhecida a metodologia posta em prática desde há décadas. Esta está explicitada numa informação interna aquando de um licenciamento de obra na Praça de Santiago da qual se transcreve um extrato que escrevi a 3/5/1984:
“...1º. Tem sido frequente na cidade de Guimarães, e aceite pela Câmara Municipal, um critério de renovação do seu património construído, que consiste na demolição total dos edifícios e na reconstrução com novas técnicas procurando reproduzir embora a fachada principal e muitos dos seus pormenores. 2º…. Tal critério, para além de paradoxal na sua essência - porquanto renovar não é, por definição, destruir e construir semelhante, mas sim manter os valores temporais dos espaços e não criar um espaço sem tempo - já produziu número suficiente de edifícios que permite avaliar do seu interesse e das suas conquistas. 3º. Com efeito, substituem-se edifícios dotados de corpo e alma por edifícios apenas dotados de corpo - por vezes erradas e ignorantes dos valores copiados - que transformam a cidade numa espécie de Disneylândia sem a “falsa autenticidade” - passe o paradoxo - que aquela iniciativa americana representa. 4º. Tal critério merece, quanto a nós, que, por parte da Câmara Municipal, dos técnicos autores dos projetos e dos proprietários, seja feito um esforço de reflexão sobre as suas consequências e sejam procurados novos caminhos para a renovação dos edifícios que constituem o património construído da cidade. 5º. Experiências recentes, entre nós e no estrangeiro demonstram ser possível, quer técnica quer economicamente manter as estruturas dos velhos edifícios e os seus espaços internos - transformar não im-
António Guterres, então Primeiro Ministro, discursando na Sessão Solene da comemoração da Classificação a Património plica destruir nem reproduzir - o que não pressupõe auMundial, foto de Paulo Pacheco sência de espírito criativo em matéria de arquitetura ou de construção, antes pelo contrário existe um rasgo de conceção, quer do ponto de vista formal quer do

ponto de vista técnico, necessário à produção de novos valores a partir dos valores existentes (...) ”. Depois da decisão, telefono ao Presidente:
“Sr. Presidente, Guimarães já foi classificada como sítio património Mundial da UNESCO.” A alegria vinda de Guimarães não tardou a ouvir-se ao telefone: os sinos da Oliveira, a multidão a juntar-se, as taças de champanhe e bolo-rei de mão em mão. Uma festa fraternal de todos para todos, com olhos rasos de lágrimas de Alegria e o coração confortado com um reconhecimento que se sentia ser um ato de Justiça para este lugar. De um modo generoso, empenhado e responsável, as suas pessoas assumiram o papel de continuadores de uma História. A esta euforia que se sentia do outro lado do telefone, disse ao Sr. presidente que vai ficar escrito que Guimarães é património Mundial porque:
“O centro histórico de Guimarães é um conjunto que testemunha o desenvolvimento urbano e possui belos exemplos de tipos particulares de construção. A harmonia da cidade, as técnicas tradicionais, as particularidades arquitectónicas, a diversidade de tipos ilustra a evolução da cidade através dos tempos e a sua integração na paisagem envolvente, conferem a Guimarães valores universais excepcionais. A zona proposta ao prémio comporta um tecido urbano de origens medievais, uma sucessão de lugares de grande significação formal, assim como a estrutura edificada (essencial- A Felicidade é o Sentimento que nos une a todos, foto de Paulo Pacheco mente do séc. xii), representam uma diversidade de tipos, ilustram técnicas de construção tradicionais: a taipa de rodízio e a taipa de fasquio, onde a madeira é um elemento fundamental. A autenticidade e a integridade dos métodos de construção tradicional são uma constante na cidade, uma vez que são ainda largamente utilizados na zona urbana e constituem património cultural a salvaguardar. A autenticidade e o poderoso impacto visual do centro histórico de Guimarães são o resultado das estratégias de protecção coerentes levadas a cabo pelo gabinete técnico local (G.T.L.) da Câmara Municipal de Guimarães. As políticas de conservação urbana, baseadas na reabilitação do património construído, a revalorização dos espaços públicos, a manutenção da população residente, a protecção e manutenção das estruturas históricas no que respeita às técnicas tradicionais de construção, fazem de

Guimarães um caso exemplar que se distingue das restantes cidades do país.” (ICOMOS, março de 2001)
“Faremos a festa no dia 22 de dezembro”, disse o Sr. Presidente Dr. António Magalhães. Separava assim a vitória da classificação do tempo eleitoral a 17 de dezembro em que tinham lugar as autárquicas.
Grande momento, a festa do dia 22 de dezembro, contando com a presença do Presidente da República Jorge Sampaio e do Primeiro Ministro António GuterA Festa que uma cidade construiu., foto de Paulo Pacheco res. Também cinco Ministros participaram na sessão solene que antecedeu o Espetáculo de Rua onde milhares de pessoas exprimiam a sua alegria confraternizando trocando olhares cúmplices.
