
9 minute read
Memórias sobre o desenvolvimento do projeto de recuperação do Centro Histórico de Guimarães
António Xavier Ex-presidente da Câmara Municipal de Guimarães Mandatos de 1980-1982 e 1986-1989
Estávamos nos anos 80 e após ter vencido as eleições à Câmara Municipal de Guimarães, o anterior presidente da Câmara, Edmundo Campos, solicitou a minha presença no Mosteiro da Costa. Depois de nos encontrarmos junto da entrada da pousada de Santa Marinha apresentou-me o arquiteto Fernando Távora, que eu conhecia de vista, mas que ainda não tinha tido o prazer de ser apresentado, e ali mesmo se falou sobre os projetos que estavam em curso ou que se tencionavam desenvolver para o centro da cidade e periferia. Foi também referida uma obra que estava a ser feita na Oliveira, em que, além da alteração do pavimento se alterava também a utilização da praça, e estando quase concluída haveria interesse em prolongar esse trabalho. Para quem conhecia, como eu, os principais centros históricos da Europa ocidental, percebia o poder atrativo que tinham sobre o turismo estes centros históricos. Coisas muito pequeninas, algumas que comparadas com Guimarães quase que eram desprezíveis, constituíam para muitas terras o seu ex-libris para atrair as pessoas. Esses centros funcionavam como um museu vivo em que, para além dos grandes monumentos, também as casinhas que os rodeavam constituíam peças preciosas. Desde sempre fui obrigado a passar pelo Centro Histórico de Guimarães, tanto para ir para a escola da instrução primária como, mais tarde, para o liceu, e era quase natural vê-lo sujo e desprezado, quase no seu estado primitivo, sem saneamento básico, sem coisa nenhuma. Lamentava que as nossas casinhas estivessem tão deterioradas e sem condições de habitabilidade, pelo que, tendo como base o conhecimento do que já era feito noutras cidades da Europa, senti a necessidade de fazer um projeto de recuperação a sério. Logo que tomei posse como presidente da Câmara convoquei os arquitetos Fernando Távora e Miguel Frazão e manifestei-lhes o meu empenho em fazer um plano de intervenção, a nível do Centro Histórico, de forma a recuperá-lo na sua globalidade. Decidiu-se que se deveriam considerar as muralhas como limite para uma primeira intervenção, pois a abertura da grande alameda que ligou o Jardim de São Francisco ao Campo da Feira tinha cortado toda a ligação que havia entre a parte da cidade entre muralhas e o exterior. O espaço a intervir envolveria a Praça
Advertisement
de Santiago, o Largo da Câmara, a Feira do Pão, estou a utilizar os nomes populares pelos quais são conhecidos estes espaços, o Largo João Franco e demais pracetas envolventes. Ora, para fazer um trabalho destes só dispúnhamos dos serviços técnicos da Câmara que estavam vocacionados para o licenciamento de obras. Logo se percebeu que esses serviços não possuíam as condições técnicas para gerir este projeto e muito menos a ligeireza que era preciso dar ao processo, o que iria fatalmente bloquear esta intervenção. Então, seguiu-se o exemplo do Porto, em que um gabinete técnico foi criado para a recuperação e adaptação da Ribeira e do seu casario para albergar pessoas que estavam sem abrigo, na altura do 25 de Abril. A Câmara do Porto de então fez uma intervenção, não para recuperar as casas existentes, mas para lhe dar condições de habitabilidade. Esta autonomia do gabinete do Porto serviu o nosso objetivo que era não confundir o que estaria dentro das muralhas com o licenciamento de obras no resto da cidade. Criou-se então um gabinete técnico o G.T.L. que foi instalado na casa da Rua Nova que recebeu o prémio da Europa Nostra. O gabinete começou a trabalhar fazendo, desde logo, o levantamento da habitabilidade de cada uma das casas, pois era essencial saber como e onde colocar as pessoas que eventualmente estivessem em edifícios sobrelotados e como aproveitar os prédios disponíveis para habitação. Porque o Centro Histórico são também os seus habitantes, para não criar uma situação de bloqueio por parte da população local ou provocar uma aceleração na saída das pessoas do Centro Histórico, foi entendido que, conforme fosse ficando disponível esta ou aquela casa, de imediato se fazia o seu levantamento e perceber por onde poderíamos pegar. Outro problema que se punha era a circulação do trânsito do dia a dia, com o cruzamento de todas aquelas ruelas que constituíam o Centro Histórico sem terem o mínimo de condições para receber esse trânsito diário, inclusive de viaturas pesadas, o que obrigou a pensar num plano de utilização automóvel desse espaço. Foi feita uma alteração significativa ao trânsito, numa primeira fase, ficando prevista, desde logo, a possibilidade de o trânsito só poder funcionar como um atravessamento e/ou acesso às casas locais. Efetivamente estas alterações deram logo uma outra ambiência ao nosso Centro Histórico. Um terceiro problema que se colocava era o facto de não existir saneamento básico, pois havia esgotos a céu aberto ou, ainda, pelos tradicionais regatos ou regueiras que se faziam revestidas de pedra. O próprio abastecimento de água não existia na maior parte das casas. A Câmara fez o levantamento de todas estas infraestruturas municipais e logo deu início, em planos anuais de intervenção, à recuperação de todo o espaço público dotando-o de saneamento básico e abastecimento de água. Criou-se assim uma dinâmica em que o gabinete técnico geria os licenciamentos, a circulação automóvel
e ainda as infraestruturas. Conseguindo interessar alguns proprietários dessas casas e sensibilizar os habitantes de forma a permitir que fossem feitas intervenções mesmo com as casas ocupadas, foi possível fazer o plano de recuperação, de forma a não haver bloqueios, nem abrandamento de processos, nem pressões excessivas sobre os proprietários dos prédios. Creio que aqui esteve o êxito e o sucesso de tudo o mais que depois se seguiu. Não havia propriamente um regulamento rígido relativamente às cores das casas, mas havia sim a necessidade de respeitar as cores que eventualmente fossem as originais dessas mesmas casas. Foi, como já referi, feita a intervenção no interior das casas de forma a dar melhores condições de habitabilidade, mas sem alterar muito as áreas e os espaços existentes. Em simultâneo, a Câmara começou a fazer uma segunda intervenção de fundo no largo em frente à Câmara Municipal, Largo Cónego José Maria Gomes, que depois se prolongou pela Rua de Santa Maria até ao cimo junto ao Largo do Carmo. Finalmente é feita a ligação com a intervenção que tinha sido feita em 1940 na zona do Castelo e Paço dos Duques de Bragança. Essa intervenção tinha sido efetuada para a comemoração do duplo Centenário da Fundação e da Restauração de Portugal. Podemos dizer que, desde 1940 até 1980, nada se fez no Centro Histórico, e, se já era um problema nessa altura, imagine-se 40 anos depois. O estado pouco ou nada cuidado dos edifícios constitui a verdadeira essência dos locais, de forma a que os próprios monumentos sejam salientados. O estado classifica monumentos nacionais, tem preocupações de restauro e de conservação desse mesmo património, mas nunca ligou importância ao casario que neles se encostou ou que já existia antes desses edifícios serem feitos. Nós procurámos complementar as intervenções que o estado fez ao nível do Castelo, como já referi, e num ou outro arruamento (estou-me a lembrar da Avenida Eng.º Duarte Pacheco, atualmente General Humberto Delgado) que era também uma zona de casario, até com muito interesse porque por ali talvez se encontrassem edifícios do século XII. Mas a recuperação do Centro Histórico por si só não iria alterar a vivência e utilização desses espaços. Era necessário alterar a visão que os próprios vimaranenses tinham do Centro Histórico, retirar a perceção de zonas perigosas e degradadas. Porque também sabia o efeito que a cultura pode ter sobre as pessoas e espaços, considerei importante criar eventos culturais nessas zonas para que os habitantes locais e todos os vimaranenses tivessem um olhar diferente sobre a sua cidade e percebessem que o Centro Histórico era motivo de orgulho. Assim foi realizada a Euroarte que trouxe obras de artistas de várias nacionalidades que foram exibidas em diversos locais da cidade. Esta associação entre a recuperação do Centro Histórico e um evento cultural desta envergadura, que me atrevo a dizer inovador a nível nacional, atraiu um público
diversificado e mostrou aos vimaranenses uma nova vivência dos espaços e que, estou convencido, teve uma influência fundamental na dinâmica cultural de Guimarães. Mas Guimarães não tem só o Centro Histórico dentro de muros, tem também, no Largo do Toural no conjunto de arruamentos que constituem o centro da cidade, um conjunto de prédios do séc. XVIII com as suas belas varandas a necessitar, também eles, de uma intervenção que inverta o processo de desertificação que se tem verificado nos últimos anos, o que tem vindo a ser feito em parte pelos proprietários. Hoje, o Centro Histórico constitui o ex-libris principal que atrai as pessoas a Guimarães, mais do que propriamente o Castelo e o Paço dos Duques de Bragança. O Castelo é um marco histórico e o Paço dos Duques de Bragança também marca uma passagem, mas é toda a envolvência do Centro Histórico que dá alma a esses monumentos e torna esta cidade única. Este projeto, que conta já com 40 anos em funcionamento permanente, ainda não foi dado por terminado, pois, como já referi, o Centro Histórico não é apenas a cidade entre muros, mas abrange praticamente todo o centro da cidade. O êxito deste projeto e a sua continuidade deve-se ao empenho da Câmara e dos vários presidentes que a ela presidiram desde a data de início até aos dias de hoje. A atuação da Câmara, mesmo que com diferentes orientações, tem sido uma sequência do plano idealizado em que o interesse da cidade se sobrepõe a interesses políticos. Haja vontade e visão e Guimarães será sempre uma cidade de referência na recuperação do património.