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Alcance simbólico do paladar
from Meu Itinerário Espiritual - Compilação de relatos autobiográficos de Plinio Corrêa de Oliveira vol 1
by Nestor
mal, produzia dores. E eu tinha a sensação de que todo vinho que se tomava era adstringente, encolhe as mucosas da boca, e o negócio de adstringente comigo não vai. Todas as bebidas de álcool me produzem esse efeito. Quanto à champagne, abro uma exceção200 . Abobrinha não é comigo e chuchu também não201 .
Alcance simbólico do paladar
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Acontece que o paladar em mim tem um alcance simbólico. Todo alimento é símbolo de uma determinada coisa, e comer essa coisa é degustar esse símbolo de um modo todo especial. De maneira tal que comer um prato com vários ingredientes é para mim como seria para outro ler um livro com várias análises, com várias riquezas. Por exemplo, o Kartoffeln-Glass, que tem da alma alemã e da cultura alemã toda a solidez, toda a nitidez e a substância nutritiva do espírito. Aquilo tem a força do alemão. O vol-au-vent francês é toda a subtileza, toda a delicadeza, toda a finura da coisa francesa, mas não mata a fome como o Kartoffeln-Glass. E as qualidades que se encontram no Kartofeln-Glass, o vol-au-vent não tem. A recíproca é verdadeira. De onde, pela minha teoria de que a Alemanha e a França são as duas faces do gênero humano, é bom de vez em quando comer uma coisa e de vez em quando outra, e saber gostar de uma e de outra, para ser um homem completo202 .
O comer alguma coisa que tem uma expressão simbólica dá uma ideia de que o significado desse símbolo é especialmente absorvido. Outro dia saboreei uma geleia de framboesa muito bem-feita, que tinha uma cor de vitral. Era uma coisa estupenda! Eu não quereria comer um vitral nunca, porque eu não pretendo ser suicida, mas ao comer aquela geleia, eu quase que comi mais a cor do que o sabor, embora estivesse muito boa. O comer aquela geleia deu-me uma ideia daquilo de Deus que a geleia representa, e do qual especialmente me aposso comendo-a.
200 Conversa EANS 6/7/94 201 Jantar Serra Negra 19/2/91 202 MNF 15/11/89
Por exemplo, a cereja. A cereja de fato é mais bonita do que gostosa. Mas, para uma pessoa que tenha um senso estético-gastronômico bem desenvolvido, não importa muito que ela seja mais gostosa ou menos; trata-se de comer aquela vermelhidão203 . O mesmo se passou durante um dos lanches que fiz no Êremo do Amparo, serviram-me framboesas com queijo branco, os quais estavam colocados em um prato branco sobre uma bandeja de prata. Quando vi aquilo, fiquei pronto para comer um símbolo. A minha apetência de comer este símbolo era pela sensação – sei que isto é pelo menos muito discutível do ponto de vista filosófico – de que, comendo o símbolo, eu me enriqueço daquilo que ele simboliza. A framboesa e a cereja são dotadas de uma cor vermelha particularmente excelente. Sendo assim, o meu desejo metafísico de vida, de ser, de realidade, me faz gostar de comer a cereja ou a framboesa. Com esta acentuação de que o sabor da framboesa, talvez mais ainda do que o da cereja, me produz no paladar uma sensação discreta de vida também. De maneira que é por assim dizer bifocal o conhecimento que eu tenho dessa fruta. E se acrescentarmos a isto o fato de que, quando dois sentidos convergem para dizer uma mesma coisa, eles são como duas testemunhas que afirmam o mesmo fato, e aquilo dá uma espécie de certeza. Sinto-me capaz de “descascar” as razões pelas quais me comprazo em olhar a framboesa que me serviram, e ver o contraste dela com várias formas de branco: o branco do queijo, o branco do prato, e a prata que é o branco de que é capaz o metal. O branco dá outra ideia de vida. Uma ideia mais modesta, mais pobre, mas mais pura. Compreendemos assim qual é a ideia de vida que o branco dá quando pensamos que o contrário dele dá no símbolo da morte. Então, dois sentidos, a vista e o paladar, depõem a favor da ideia de que eu estou fazendo um banquete de símbolos, muito válido gastronomicamente. Não é, portanto, um banquete de filósofo que come giz, porque giz é branco. Este não sou eu. Sou gas-trô-no-mo. Mas gastrônomo ávido do alcance simbólico de muitas coisas que eu como204 .
203 CM 3/11/91 pp/3,4 204 Almoço EANS 18/10/91