12 minute read

A RECONSTRUÇÃO

CAPÍTULO 9 A RECONSTRUÇÃO A RECONSTRUÇÃO

Na época, 2001, várias outras empresas de nossa área quebraram por motivos diversos, principalmente em 2002 com a eleição do presidente Lula (Luiz Inácio Lula da Silva), que gerou uma crise financeira com o temor por alterações radicais em seu governo e na economia.

Advertisement

Depois da mudança apressada dos despojos da Narina, parei de atender ao telefone da empresa, de tanta gente me cobrando e me ameaçando. Fui para casa e me isolei, não conseguia mais sair nem atender ao celular. Nesse momento a holding me ligou em casa, pois eram os únicos que tinham meu número fixo, e pediram explicações do que acontecia. Eles passaram a intermediar o problema: falavam com os credores e me traziam documentos para assinar. Era meu único contato com o mundo. Fiquei completamente isolado por três meses. Com depressão e vergonha das dívidas, passei a usar antidepressivos e outros medicamentos de tarja preta.

Apesar disso tudo, sem a holding a Narina teria quebrado de uma forma que eu não sei o que seria da gente. Ela estaria liquidada de vez. A minha participação naquilo me deu fôlego, principalmente para minha visão do negócio. Apesar de todos os problemas, a Narina quebrou, mas não quebrei sozinho. Isso me deu forças para ir ao mercado mais tarde e me levantar de novo, superando tudo, mostrando ao mercado que com 45 anos eu tinha humildade e resistência para pedir emprego e poder levantar a empresa novamente.

Nestes momentos difíceis, minha mulher sempre me apoiou, trabalhando e mantendo a família. Ela foi nosso suporte quando eu quebrei. Ela era muito centrada e organizada, não apenas no trabalho como em casa.

Minha filha, Denise, estava apavorada. Nessa época ela começou a apresentar dores e desconforto que nenhum médico conseguia descobrir a origem, até que o diagnóstico de lúpus foi concluído. Essa doença autoimune provavelmente foi disparada pelo forte abalo emocional que ela sentiu nessa época de crise, e que ainda traz consigo. Eu mesmo sentia um vazio insuportável se saísse de casa. Eu só consegui superar isso com apoio da família, incluindo minha cunhada Vera e minha sogra, Terezinha Bassoli de Oliveira. Muitas vezes eu ficava simplesmente deitado no chão, parado, e eles ficavam em volta, sem dizer nada, apenas respeitando meu silêncio. Também não conseguia dormir, cheguei a ficar três dias completos sem dormir nada. Muitas vezes eu acordava de madrugada e assistia a vídeos espíritas, pois eu já frequentava o Espiritismo. Assisti a muitas palestras, especialmente de Divaldo Franco. O pessoal me emprestava material e eu assistia a tudo, ou ficava deitado ouvindo fitas de áudio com aquela filosofia positiva. Aos poucos isso foi me impregnando e mudando minha condição. Depois de três meses eu comecei a sair de casa e procurar alguma coisa para fazer. Voltei ao mercado. Muitas pessoas me ligavam oferecendo serviço e minha família me motivou a aceitar alguma oferta. O Zé Carlos, da Levitas, marca de skate, longboards e acessórios para skatistas,

“Nestes momentos difíceis, foi me chamar em casa. Me minha mulher sempre me apoiou, levava à padaria para tomar trabalhando e mantendo a café com ele, conversar, me tirar do silêncio. Era família. Ela foi nosso suporte pastor da Igreja Renascer e quando eu quebrei.” me incentivou muito, me levando para trabalhar em sua fábrica, montando skates com parafusos allen, serviço simples mas que não conseguia fazer direito, pois não tinha a cabeça no lugar. Isso foi logo no início, depois passei a atender clientes, telefonemas, ficar no escritório. Retomei minha vida gradualmente. Queria recomeçar com representação, pois não aguentava ficar ali parado. Tinha que sair para o mundo e ter contato com as pessoas. Ele mesmo me convidou para representar comercialmente a Levitas, mas eu não tinha nem como me deslocar, completamente quebrado. Ele então ofereceu R$ 400,00 de ajuda de custo, para que eu pudesse começar. Devo muito a ele. Eu almoçava em casa e saía depois para vender, muitas vezes a pé para economizar gasolina. Não foi nada fácil, não. Fez parte do processo de retomada de minha vida. Ele foi o primeiro a me estender a mão. As pessoas continuaram a me ligar cobrando as dívidas, mas eu dizia “relaxa, vou trabalhar e vou pagar tudo”. A holding saiu do negócio, pois não tinha mais dinheiro para colocar, mas ficou com a marca Narina e negociando todas as dívidas para que eu pudesse pagar aos poucos. Virei representante comercial. Muitas marcas me queriam para vender seus produtos, pois eu ainda

HEVERTON RIBEIRO

Marco Aurelio Fonseca, o Jeff Cocon, invert no Jurassic Park. 2008.

conhecia muito bem o mercado do skate e tinha um leque de contatos enorme. Ainda tinha um automóvel Gol antigo, que não tinha precisado vender, e fui à luta. De empresário a representante comercial foi uma dura queda, mas estava certo de dar a volta por cima. Essa força interior nunca me deixou.

Em pouco tempo eu representava a Levitas, mais na parte de longboard; a Gobby com trucks e lixas; a Cush com shapes; a UCR com rolamentos; DVS, tênis; as lixas do John e outros fornecedores que não conflitavam entre si. Desse modo eu podia entrar em uma loja e vender uma gama completa de produtos, de várias das principais empresas do mercado.

Meus filhos menores, Denise e Danilo, foram os que mais sentiram essa época de carência. É melhor relatar seu próprio depoimento:

Denise: “Era só o salário da minha mãe, que trabalhava na prefeitura, e minha avó que ajudava com a comida. Cortamos todas as despesas, ficou só o básico e a alimentação. Mesmo assim, durante a crise da quebra da Narina, minha mãe nunca deixou nada faltar em casa, por piores que estivessem as coisas. Minha mãe nunca foi de ficar brava, nunca a vimos nervosa. Trabalhava de manhã, de tarde e de noite e nunca reclamava. Nunca ficava de cara feia, nem descontava na gente. Nunca pudemos ter o que as outras crianças tinham na nossa idade. Não podíamos comer na cantina da escola e nossa mãe fazia nossas próprias roupas.” Danilo: “Meu pai não chorou nem quando meu avô morreu, mas chorou quando a Narina quebrou. Nunca passamos fome, mas os limites eram bem duros.”

Em agosto de 2002 fui na Gobby pegar material e o Júnior da Freeday, fabricante de tênis para skate do Sul do país, estava por lá para fechar uma representação com a Gobby. Cheguei na empresa e pedi para chamarem o Rogério. Quando o informaram que o “Giba da Narina” estava lá, o Júnior ficou muito interessado em me conhecer, pois a marca Narina era fortíssima em São Paulo e no interior. Depois de feitas as apresentações, eu contei minha história. O Júnior não conseguia acreditar no que

“O licenciado havia criado uma marca própria paralela e fazia os produtos da Narina de qualquer jeito, deixando o melhor serviço e a tecnologia para sua própria marca.”

eu falava e me disse que então eles que precisavam de um representante em São Paulo. Trocamos cartões e ele achou graça do meu cartão, pois tinha nove logotipos de representações estampadas. Parecia carro de Fórmula 1.

A Freeday tinha representante em São Paulo mas não dava certo, era uma marca muito nova e ninguém queria pegar os produtos. Era um convite importante para ser representante direto da fábrica. Eu falei com o Mauro Life da DVS, pois ia deixar sua representação para trabalhar com um concorrente, e ele me disse: “legal, o que está esperando?”. Eu fiquei surpreso e disse que estava comunicando para não deixá-lo na mão. Ele me disse para não esquentar e ir logo atrás da outra empresa, não deixar a oportunidade fugir.

Comecei a representar a Freeday a partir de 2002 com imenso sucesso e minha vida se transformou. Devo minha virada final a essa representação. Poderia ter pego esse dinheiro e usado comigo e minha família, mas eu tinha como ponto de honra saldar as dívidas da Narina e voltar ao mercado. Eu queria provar que eu sabia administrar. Eu quebrei, eu errei, vendi errado, não pagaram, não fiz o controle devido. Também confiei demais, sofri muito desvio de material e dinheiro. Mas aprendi a lição e ia pagar tudo o que devia.

Nesse período um cara que atuava em nosso segmento me disse que a marca Narina era muito forte e que não podia ficar fora do mercado, oferecendo-se para licenciá-la e pagar os royalties correspondentes a 2% das vendas. A holding, dona da marca, topou o negócio e eu concordei. Ao menos a marca Narina não desapareceria enquanto eu estava lutando para quitar tudo. A holding ficaria com os royalties, pois a empresa ainda estava no nome dela. Eles esperavam que essas porcentagens ajudassem a acertar uma parte das dívidas da empresa.

Passei todo o know-how, inclusive da fabricação das joelheiras e as cinco ou seis máquinas que tínhamos, e de proprietário virei representante comercial da Narina, ganhando comissão pelas vendas como qualquer outro. E vendia muito, porque a marca era forte e tradicional no mercado. Mesmo assim eu sofria muita pressão para vender cada vez mais. Ele me acusava de boicotar a marca, o que era uma inverdade e uma grande injustiça. Sempre tive orgulho da Narina e jamais a prejudicaria, mesmo não sendo minha. Apesar das vendas irem bem, depois

ALLAN CARVALHO

Gabriel de Matos “Zina”, nollie heel. Salvador.

Marco Antônio, fs board.

de alguns meses notei muitas reclamações de clientes, insatisfeitos com a qualidade dos produtos.

O licenciado havia criado uma marca própria paralela e fazia os produtos da Narina de qualquer jeito, deixando o melhor serviço e a tecnologia para sua própria marca. A Narina era apenas um trampolim, e totalmente descartável. Nesse momento desisti da representação, pois eu iria acabar queimando meus contatos. Havia trabalhado cerca de um ano nesse esquema. No final o cara parou com a Narina de vez, em 2004/2005, sem pagar os royalties devidos, e ficou apenas com sua marca própria. Algum tempo depois ele fechou e saiu de vez do mercado de skate. Manter uma empresa de sucesso parece fácil, mas não é.

Aos poucos eu comecei a me dedicar apenas à Freeday e deixar outras representações, pois ela me tomava muito tempo mas dava um bom retorno. As outras empresas entenderam, sem problemas, e eu comecei a faturar mais e a acertar as dívidas. No começo, quando entrei, eu já deveria acertar as vendas de final de ano, mas estávamos em agosto, não achei que ia dar tempo. A Freeday me deu uma ajuda de custo de R$ 1.000,00 para que eu pudesse dedicar mais tempo a isso. Eu saía de manhã e voltava muito tarde da noite. Em seis meses eu já tinha 34 pontos de venda do calçado. As vendas aumentaram em ritmo constante e de 200 pares vendidos no início eu acabei vendendo entre 2.000 a 4.000 pares mensais.

Comecei a pagar os fornecedores aos poucos e fui acertando tudo. Fiz acordo de ações trabalhistas no valor de R$ 17 mil, no Ministério do Trabalho, tendo que ouvir os desaforos de todo mundo, e deixando 10 cheques de R$ 1.700,00 para quitação. Também tinha os impostos e taxas municipais, estaduais e federais, que foram negociados e pagos aos poucos ao longo dos anos. Ainda devo impostos federais até 2023.

Com os fornecedores acertados e parte das dívidas negociadas, em 2003 voltei ao mercado com a marca “Jail”, pois a Narina ainda estava impedida de trabalhar por conta das dívidas. O projeto da Jail já estava pronto,

com logotipo e tudo, esquecido em uma gaveta ainda do tempo da Narina, em 1999. Era hora de colocar para funcionar. Montei uma equipe e em 2004 a Jail estava plenamente atuante, com equipe de skate e vários produtos. Eu representava a Jail, com todos os produtos que a Narina costumava vender, e a Freeday com os tênis.

Já tinha escritório na casa de minha mãe, no bairro de Nova Petrópolis, na Rua Manoel Joaquim Pinto, perto da sede atual da Narina. Alugava um cômodo na parte da frente da casa, que era meu escritório da Freeday, e no final de 2003 reformamos o fundo da casa e montamos uma mesa de corte para confecção com supervisão da Marcia. A costura já era toda terceirizada, só o corte era feito na empresa. O meu filho Douglas cuidava das estampas e ajudava a mãe com as camisetas. Eu já tinha os contatos nas lojas e o know-how para trabalhar os produtos. Montei uma turma do skate e a marca ficou bem conhecida, fazíamos até festas de aniversário da empresa.

Ainda hoje mantenho a Jail e ainda acho que ela vai crescer bastante, mas esse foi o recomeço da Narina. A Jail funcionava sempre através de venda direta, nas lojas e pelo site. Ainda era pouca coisa para contratar algum representante, mas para manter a marca viva eu comecei a colocar adesivos com o logotipo da Narina dentro das embalagens dos seus produtos, mesmo com a marca sem atuar no mercado. Era uma forma dos consumidores não nos esquecerem. O desejo de voltar com a Narina, completa e totalmente funcional, nunca deixava meus sonhos. Esta sempre foi minha meta.

Essa fase foi também muito movimentada para o skate, que conhecia um novo impulso com uma maior reestruturação e profissionalização. Em 2001 o número de praticantes de skate abaixo de 18 anos nos EUA ultrapassou o número de garotos que jogavam baseball, o principal esporte americano. As grandes competições de skate nos EUA eram transmitidas ao vivo por muitas emissoras de todo o mundo e os prêmios ficaram milionários. Em 2002 Danny Way cria a Megarrampa em um programa americano de TV e vira uma grande sensação.

A Confederação Brasileira de Skate (CBSK) continuava o processo de estruturação do esporte no Brasil e criou comitês de profissionais e conselhos para todas as modalidades, em 2003. No ano seguinte estabeleceu os parâmetros de profissionalização para os skatistas. Um trabalho que gerou mais credibilidade para o esporte.

Em 2004 também foi criada a International Skateboarding Federation, que representa a modalidade em todo o mundo e esteve em permanente negociação com o Comitê Olímpico Internacional para a inclusão do skate nos Jogos Olímpicos, um grande sonho de todos os admiradores deste grande esporte e que vai se concretizar em 2020 em Tóquio, no Japão.

Jailson Café.

ALLAN CARVALHO

Gabriel Zina.

“O desejo de voltar com a Narina, completa e totalmente funcional, nunca deixava meus sonhos. Esta sempre foi minha meta.”