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Diálogos entre mãe e filha

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Caldo Verde

Caldo Verde

Durante muitos anos, lecionei fora do país. Tendo em conta o calendário de cada ano letivo, nunca me encontrava em Portugal no dia em que a minha filha celebrava o seu aniversário. Quando trabalhava em Toronto, e para que não se perpetuasse a minha separação num dia tão importante das vidas de ambas, ela foi passar uns dias comigo, de forma a incluir o dia do seu aniversário – 30 de janeiro. Convém lembrar que o Skype, Messenger, Whatsapp e outras tantas plataformas - que hoje tornam o longe em perto e o ausente em presente -, não existiam.

Nesse ano, por pura coincidência, a edição semanal do jornal Milénio, que saía à quinta-feira, calhou exa-

José Luís Vale

tamente no dia dos seus anos. Decidi, então, surpreendê-la com um presente diferente, publicando um texto que lhe fosse dedicado. Escrevi-lhe uma carta que, sem que pudesse prever, mais tarde, acabaria por ser o título de um dos meus livros - Entre Margens de Afectos -, escrito em coautoria com a minha amiga florentina Gabriela Silva.

Recordo-o esta semana, porque fez exatamente 20 anos que a publiquei e, ao relê-la, os excertos que aqui reproduzo ganham particular significado:

“Dou-me conta, agora, que te aproximas demasiado da minha idade, numa contagem inversa do tempo que me faz a mim criança e a ti adulta, subvertendo toda a lógica de uma contagem crescente.

E é por isso que eu tenho pressa de te fazer esta declaração pública de amor, no ano em que decidiste vir passar o teu aniversário comigo, depois de anos seguidos de ausências partilhadas. Apesar de o poeta ter declarado que todas as cartas de amor são ridículas, sei que ele se referia a outras, por- que, estas, é urgente que se escrevam. Antes que a vida se apague entre malas e cais de despedidas sem termos tido tempo de dizer o quanto nos amamos. E porque começa a ser tarde, deixa-me contar-te mais uma história de encantar, ao mesmo tempo que o escuro tomba sobre o teu quarto de criança, permitindo que a fantasia dance com todas as sombras que habitam a nossa imaginação. Depois, olhar-te bem nos olhos vadios de curiosidade e dizer-te baixinho, muito baixinho, como o fio de água que naquela amanhã se desprendeu de um ventre lasso de ti, Amo-te muito, minha filha.”

Há duas décadas, já achava eu que estávamos cada vez mais próximas uma da outra, referindo-me à idade madura a que ias chegando. Na cronológica, aquela que o calendário se encarrega de registar sem artifícios, caminhamos lado a lado, como duas linhas paralelas que nunca se encontram, mas de mãos dadas num diálogo de mãe e filha, invertendo-se os papéis sempre que as campainhas da tua atenção sentem que preciso da tua ajuda. Entretanto, reformei-me, e admiti que, daí em diante, todos os aniversários familiares seriam passados juntos. Mas a verdade é que, no meu caso, a palavra “reformada” é apenas um adjetivo que serve para, em formulários oficiais, definir um estado civil, mantendo-me tão ativa como quando tinha um horário a cumprir.

Este ano, perguntaste-me onde e como tinha sido o teu último aniversário. Fiz um esforço de memória e também não me conseguia lembrar. Tive de me valer da agenda para te poder responder, pois foi ela que me desfez as certezas que havia dado como adquiridas. Mais uma vez, eu estivera fora do país: na Guiné, a cumprir uma missão de voluntariado, o que obrigou a que a tua festa de aniversário fosse adiada para fevereiro. Depois de eu regressar.

O dia do teu aniversário é, e será sempre, quando uma de nós quiser, enquanto o amor souber manter em suspenso as ilimitadas saudades.

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