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O jardineiro fiel Comentarista: Renato Queiroz
fordismo que se debruça Ettore Scola. Neste filme focaliza e desnuda, com (hiper)realismo, as condições de pessoas situadas na franja do tecido social fordista, dando visibilidade – sob um recorte cáustico – ao círculo vicioso da vida desses indivíduos, reduzidos, quase que exclusivamente, ao nível biológico de sobrevivência e reprodução social. Através de uma radiografia sociobiológica, reconstitui o drama existencial dos excluídos socialmente e denuncia esta realidade em pleno fordismo (a real miséria social e sonhos/fantasias consumistas).
É um filme clássico e datado historicamente. Entretanto, ganha força na atualidade devido às respostas neoliberais à crise do fordismo – tanto nos países centrais quanto periféricos do sistema capitalista –, recriando e agravando a questão social; trazendo para o cotidiano problemas típicos do mundo do trabalho do século XIX, ironicamente agora com avançado patamar tecnológico.
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O final da Guerra Fria, dentre outros aspectos, desobrigou qualquer demonstração – de fato – de uma face includente socialmente e distributiva para o capitalismo sem freios dessas sociedades. A precária inserção no mundo do trabalho, antes residual, passa a se constituir numa estratégia central de gestão da produção, mediante a externalização (terceirização e exclusão social) com a neutralização/negação dos direitos sociais construídos ao longo dos séculos XIX e XX.
O contexto atual reflete um processo de progressiva perda da razão social no seio dessas sociedades. Sua reconquista e reconstrução passam pela ação política das diversas forças sociais no sentido de superar o dogma dominante (de que o mercado é o fundamento da vida social), de adotar uma visão emancipadora do ser humano (ser com múltiplas dimensões) e de redescobrir/construir a solidariedade nas relações sociais (versus o individualismo egoísta). Tais horizontes não se encontram no filme de Scola. No recorte de mundo retratado não há espaço social para a solidariedade, para a construção política emancipadora, sendo focalizada uma árdua luta egoísta pela sobrevivência, que passa de geração a geração, sem perspectivas de transformação.
Sessão de cinema - 13 de junho de 2008
O jardineiro fiel
Direção: Fernando Meirelles 129 min Drama Estados Unidos/2005
Renato Queiroz
Compositor, mestre em Saúde Coletiva, professor da UEFS e da UFBA
Uma narrativa em torno de um diplomata inglês que tem como hobby a jardinagem (representado por Ralph Fiennes) e o seu drama quanto ao cruel assassinato de sua esposa (representada por Rachel Weisz), no Quênia, no continente africano. A primeira produção internacional de Fernando Meirelles (diretor também de Doméstica, Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira), o filme O Jardineiro fiel é baseado em um romance de John le Carré. Com uma fotografia exuberante e contado sem muita preocupação com a linearidade temporal, desvenda-se a história entre Justin e Tessa.
O filme perpassa como um misto de história de amor e suspense, cheio de acontecimentos envolvendo espionagem, traições e armadilhas, comuns no gênero baseado nas chamadas “teorias da conspiração”. O problema, contudo, é que, neste caso, a conspiração é “real”. Dentro e fora das telas. É um filme para aqueles que estão dispostos a entender profundamente os personagens e o que a história representa: além de uma história de amor revela-se a exploração da pobreza e doenças da população da África, que servem como uma grande fonte de lucros para as indústrias farmacêuticas.
Levada para o centro da rede que sustenta e, ao mesmo tempo, omite um lucrativo e criminoso negócio, Tessa é eliminada numa conspiração que envolve as mais diferentes esferas do poder. Abalado pelo fato de que o assassinato é creditado a um crime passional envolvendo dois supostos amantes de sua mulher, o diplomata envereda para uma
investigação que acaba descortinando uma rede de corrupção, vultosos lucros e morte, movimentada pela indústria farmacêutica internacional, com o apoio ou a conivência de governos corruptos, do imperialismo e de entidades “humanitárias”.
O Jardineiro fiel torna caro questões relativas aos interesses ambíguos, interesses e práticas de empresas “fictícias” de grande porte do setor farmacêutico e as desigualdades e injustiças vividas pelos povos africanos. De qualquer forma, testar medicamentos e deliberadamente não tratar doenças em pessoas para “estudar” como elas evoluem é algo que há muito tempo já foi denunciado por diversas ONGs e ativistas, e muitos insistem em ignorar.
Num aspecto quase documental sobre a situação humana na África e o patológico comportamento capitalista no mundo contemporâneo, o Jardineiro nos desvia de um thriller romântico a um denso pensar sobre os rumos da raça humana. É uma insinuação contra a indústria farmacêutica e os crimes oficiais, uma suscitação para se refletir sobre tudo o mais que isso representa, o poder corporativista às vezes tão frio e desumano.
Os laboratórios e os conglomerados que representam a indústria de medicamentos estabelecida em países do primeiro mundo são muito potentes e dispõe de muitos recursos (humanos, financeiros, materiais), movimentam somas que superam o PIB (Produto Interno Bruto) da grande maioria dos países do mundo. Bilhões de dólares são movimentados todo ano na economia mundial, por empresas que detêm o monopólio de fórmulas e também a primazia das pesquisas na área de medicamentos.
Essa é a principal questão que permeia o debate a respeito da atuação da indústria farmacêutica em países do terceiro mundo, principalmente nos africanos. Ao acreditar que situações como a representada pelo filme realmente acontecem, estaríamos dando crédito a simplistas teorias da conspiração? Por outro lado, aceitar passivamente a palavra dos grandes laboratórios e acreditar que suas práticas seguem uma conduta exemplar não seria inocência demais? Nesse ponto, nos deparamos com um sério problema: a falta de informação. Como assumir uma posição segura diante daquilo que não conhecemos? A escassez de informações dificulta muito a formação de opinião e a tomada de decisões.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial – período em que, nas esteiras do nazismo, talvez tenham ocorrido os maiores abusos em pesquisas médicas e farmacológicas da história –, a legislação que regulamenta a atuação da indústria farmacêutica enrijeceu-se bastante. Na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá, a população encontra-se protegida contra qualquer possibilidade de ser utilizada em esquemas que atentem contra sua saúde e integridade.
No entanto, devemos ter em mente que as regulamentações nem sempre são implementadas da mesma forma, com a mesma rigidez, em todos os países. Num mundo em que a maioria dos países vive em guerra civil permanente, sem um verdadeiro sistema governamental, sem mecanismos eficazes de fiscalização, ou sob regimes ditatoriais, é praticamente impossível que isso aconteça. Daí existir uma lacuna para a ação de profissionais ou empresas corruptos, antiéticos, que têm o lucro como exclusiva finalidade.
Decerto, há, sim, muitas empresas que se preocupam com o respeito à dignidade humana em suas pesquisas e, até mesmo, beneficiam muitas pessoas em sua atuação. Entretanto, não se pode desconsiderar o fato de que nem todas agem assim.
A indústria farmacêutica é a terceira maior potência econômica do mundo, e só conseguiu essa façanha praticando os preços abusivos nas vendas de medicamentos que, seguramente, são muito mais altos que os custos de investimentos em pesquisas. Não se trata de condenar indiscriminadamente toda a indústria farmacêutica, mas tomar atitudes severas diante daquelas empresas que, onde encontram brechas, agem fora da lei maior, a lei da vida.
De alguma forma, temos que fazer com que a sociedade acorde para os atos antiéticos que as indústrias, sejam elas farmacêuticas, alimentícias, automobilísticas, informática e etc. cometem em nome do bem e do lucro.
O Jardineiro Fiel traz uma inquietação social contra a corrupção, manipulação e exploração da pobreza.
Não é esse o mundo que precisamos, em que pobres pagam pelos ricos, em que os menos desenvolvidos ficam cada vez mais dependentes das grandes potências, privadas ou não.
Importantes questões, que abarcam capital, indústria e direitos humanos são muito complexas e envolvem inúmeros interesses por todos os lados. Talvez O Jardineiro fiel faça com que as pessoas reflitam um pouco mais sobre o assunto, que parece estar tão distante de nós em acordos financeiros e tratados no âmbito internacional, mas que seguramente refletem em nossos bolsos e, muitas vezes, em nossas vidas.
Apesar das constantes situações de pobreza, violência e corrupção O Jardineiro fiel é um filme que sensivelmente fala de amor, de valores e nobres ideais.