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Noel Rosa: a maturação do samba José Adriano Fenerick

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Noel Rosa: a maturação do samba

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José Adriano Fenerick

Ahistória dos primórdios do samba poderia muito bem ser contada por meio das polêmicas travadas entre os sambistas. Desde as disputas pela autoria do famoso “Pelo Telefone” (gravado em 1917), tido como o “primeiro samba”, até o entrevero entre Sinhô, o aclamado Rei do Samba, e a “turma” do Pixinguinha (Donga, China, etc.) na década de 1920, o samba, de certo modo, foi se criando e se formando em meio a polêmicas e discussões. Noel Rosa, como não poderia ser diferente, também deu sua contribuição à maturação do samba, que por essa época transformar-se-ia em música popular, no sentido de uma música de mercado, por meio de uma longa polêmica com Wilson Batista, travada exclusivamente nas regras da arte. Dessa polêmica entre Noel e Wilson, ou a ela relacionada, é preciso que se diga imediatamente, saíram verda

deiros clássicos do repertório noelesco, tais como: “Palpite Infeliz” e “Feitiço da Vila”. Apenas por isso já valeria a pena relembrar esse debate entre Wilson e Noel. Entretanto, quero chamar a atenção para uma questão que se colocava como pano de fundo em tal polêmica: a mercantilização do samba e a profissionalização do sambista. A polêmica entre Noel e Wilson teve início em 1933, por ocasião do lançamento do samba “Lenço no Pescoço”. Gravado por Silvio Caldas, esse samba de Wilson Batista dizia, em seus versos iniciais:

Meu chapéu do lado tamanco arrastando lenço no pescoço navalha no bolso eu passo gingando provoco e desafio eu tenho orgulho em ser tão vadio...

Essa descrição do malandro e essa apologia da vadiagem não passariam despercebidas em 1933. Como de fato não passaram. Muitos compositores da época recriminaram publicamente esse samba, sendo que o compositor e jornalista Orestes Barbosa chegou a publicar em sua coluna:

num momento em que se faz a higiene poética do samba, a nova produção de Silvio Caldas, pregando o crime por música, não tem perdão. 1

Tendo em mente o momento em que o samba se profissionalizava nas rádios comerciais − que associavam prestígio e aceitação social de uma música com a possibilidade de atrair mais patrocinadores − não é difícil entender as palavras de Orestes Barbosa. 2 Todavia, a resposta mais contundente rádio, estava na pauta das discussões do início da década de 1930. Quando Noel responde ao samba de Wilson Batista, ele o faz visando preservar a imagem do sambista,

Noel , assim, propõe ao compositor que ao menos leve em conta as novas relações do samba com a sociedade...

a “Lenço no Pescoço”, e a qual o próprio Wilson levaria em conta, veio de Noel Rosa. O Poeta da Vila, ainda em 1933, responderia a Wilson com “Rapaz Folgado”. Este samba de Noel responde verso a verso ao samba de Wilson:

Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália E tira do pescoço o lenço branco Compra sapato e gravata Joga fora essa navalha Que te atrapalha...

Além disso, nos versos finais de seu samba, Noel ainda diz:

Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar de malandro E sim de rapaz folgado.

A questão da profissionalização do sambista, no disco e no do compositor, num meio onde as possibilidades de se viver do samba já podiam ser vislumbradas. O “Poeta da Vila”, que sempre optou por uma estratégia diferente para abordar o malandro, “desmonta” a personagem de Wilson Batista, tanto no seu aspecto físico (da indumentária) como no seu modo de se relacionar com o samba, e a recoloca, por meio de “propostas”, num plano regido por novas possibilidades de atuação. Noel tem o cuidado de não atacar diretamente o malandro; prefere dizer que é a palavra malandro o fator que estaria tirando “todo o valor do sambista”. 3 Não sendo o malandro propriamente dito o alvo de Noel, nos resta verificar o criador de sambas (o compositor). Nesse quesito, o Filósofo do Samba, propõe ao compositor popular o “papel e lápis”, isto é, propõe ao sambista que, se não totalmente ao menos em parte, substitua a “experiência vivida” pelo conhecimento como instrumento

para a criação. Noel, assim, propõe ao compositor que ao menos leve em conta as novas relações do samba com a sociedade, para não dizer com o mercado da música, e termina aconselhando o malandro (compositor) a “arranjar um amor e um violão” (os dois temas – amor e violão − aceitos pela música popular do período e passíveis de serem veiculados pelas rádios e ouvidos pelo “povo civilizado”: os nossos queridos ouvintes). Interessava ao Poeta da Vila, tal como a outros sambistas da época, que o samba tivesse um reconhecimento social e comercial, e o rádio se apresentava como o grande meio difusor de música do período. A polêmica entre Noel e Wilson, iniciada em 1933, se arrastaria ainda por mais alguns sambas. Seja como for, e no decorrer dos anos da polêmica, Noel compõe em 1934 (sem o intuito de prolongar a discussão, até porque por essa época ele já nem se lembrava mais dela) “Feitiço da Vila”, uma música na qual o Filósofo do Samba, mais uma vez, procurava homenagear seu bairro, Vila Isabel. Esse samba, ainda que não fosse o intuito de Noel, deu continuidade à polêmica. É preciso deixar claro que a polêmica entre os dois sambistas nunca se

Capa de livro sobre Wilson Batista: Nova História da Música Popular Brasileira.

deu de forma pessoal e possivelmente também nunca se alastrou para além das fronteiras do restrito universo de compositores e sambistas do período. Noel e Wilson discutiam apenas em forma de sambas, ainda que por vezes os sambas compostos atacassem a um ou a outro de forma pessoal, como em “Frankstein da Vila”, em que Wilson Batista, já no fim da polêmica, perde a compostura e ataca diretamente o complexo que Noel tinha de seu problema físico no queixo, fruto de um afundamento maxilar causado pelo fórceps que o trouxe à vida. Mas esse samba de Wilson foi uma exceção entre as canções compostas pelos dois sambistas durante a polêmica. No geral, mantiveram-se nas “regras da arte”. Seja como for, é “Feitiço da Vila” que aqui nos interessa. Acompanhemos alguns versos do famoso samba de Noel:

A Vila tem um feitiço sem farofa sem vela e sem vintém que nos faz bem tendo o nome de Princesa transformou o samba num feitiço decente que prende a gente.

O trecho citado do samba de Noel apresenta uma imagem que se distanciava da “roda de samba”, do samba anterior, ligado ao universo lúdico-religioso da cultura afro-brasileira. Ou ainda, nas palavras de Jorge Caldeira, “aos sambistas da roda, não era possível conceber uma ideia de samba como essa de Noel. Mas ela nascia, ciosa de si”. 4 Wilson Batista contraporia a “Feitiço da Vila” o seu “Conversa fiada”, prosseguindo com a polêmica entre os dois, o que ins

tigaria Noel a compor o antológico “Palpite infeliz” logo em seguida. Mas, polêmica à parte, a letra do samba de Noel trazia elementos novos para a compreensão das transformações pelas quais o samba passava naquele momento. Noel diz que em Vila Isabel o samba tem um certo feitiço (que inebria a quem o ouve), tal como o samba era entendido anteriormente, devido a sua relação inicial com a cultura afro-brasileira, particularmente com o Candomblé. Porém, é um feitiço diferente, é um feitiço decente, o que de antemão já denota uma preocupação com a aceitação social (e

primeira tenha transformado o samba, que por sua vez é posto em relação com o feitiço; este, aos olhos de parte da elite brasileira, era representante das práticas dos negros em seu aspecto ameaçador. O que fica implícito é que o que a Vila faz com o samba é de algum modo equivalente ao que a Princesa fez com os negros abolindo a escravidão. 5

comercial) do samba. Tal como em “Rapaz Folgado”, em que Noel deixa o malandro nu, decompondo o seu aspecto exterior (a navalha, o lenço no pescoço, o tamanco), em “Feitiço da Vila” o samba também passa a ser desprovido de suas significações exteriores. Continuando a ser feitiço, o samba, entretanto, não carrega mais a sua significação religiosa oriunda do candomblé: “a vela, a farofa e o vintém”. Conforme observou Carlos Sandroni, “Feitiço da Vila”

...não mais como festa (religiosa ou não), o samba , no mundo capitalista , é também uma coisa , uma mercadoria...

Só que a liberdade proposta por Noel para o samba inclui um afastamento do universo negro lúdico/religioso até então associado a ele. Ou melhor, o gesto de Noel, é certo, torna-se importante como um tipo de consciência adquirida em um

postula pois uma relação, através do nome, entre a Vila e a Princesa Isabel. Tal relação justifica o fato de que a

momento em que o samba deixava de ser uma “música étnica, para integrar um modo de ser ancorado na modernidade e na centralidade urbana, sinônimo de um jeito carioca de ser”. 6 Desprovido de seus sinais externos, e desligado de seus locais e práticas anteriores, o samba passa a ser apenas música popular, um gênero musical. Como gênero musical, e não mais como festa (religiosa ou não), o samba, no mundo capitalista, é também uma coisa, uma mercadoria como outra qualquer, passível de ser dado, roubado, comprado e vendido. O sambista, agora, não vai mais

ao samba (um local de sociabilidade, uma festa lúdico-religiosa) se encontrar com sua amada; ele compõe um samba e o oferece (pois é uma coisa) ao seu amor, como sugere a letra de “Este samba foi feito pra você”, de Assis Valente e H. Porto, gravado por Mário Reis em 1935:

Este samba foi feito pra você Pra você numa noite de luar Na noite em que fiquei sem teu amor Sozinho pelas ruas a vagar.

Mas, retornando ao Feitiço da Vila. Em outro trecho desse samba escreveu Noel:

Lá em Vila Isabel Quem é bacharel Não tem medo de bamba São Paulo dá café, Minas dá leite E a Vila Isabel dá samba.

Noel, no trecho citado, propõe que o samba atue como um aglutinador da cultura brasileira, posto que o bacharel (símbolo da cultura letrada, da cultura europeia) convive “sem medo” do bamba (o malandro, o sambista, o símbolo da cultura negra marginalizada) na utópica Vila Isabel criada pelo compositor. Além disso, o samba aparece como um produto (uma música de mercado) genuinamente carioca (de Vila Isabel) equiparado aos principais produtos de Minas Gerais e São Paulo: o leite e o café respectivamente. O samba, assim, defende seu

direito de participar do mercado, de entrar nas prateleiras do patrimônio nacional. Não é mais signo de exclusão, de separação, mas diferença que

soma. Ao mesmo tempo, suaviza a alternativa demasiado radical entre o café, que é preto, e o leite, que é branco, propondo-se a si mesmo como um misto. 7

Essa mesma força aglutinadora que Noel vê no samba está também colocada em uma outra canção de sua autoria: “Feitio de Oração”. Contribuindo ao debate que opôs a cidade ao morro, Noel propõe uma alternativa diferente para entendermos o samba: não é nem do morro e nem da cidade. Vejamos um trecho de “Feitio de Oração”, samba lançado e gravado por Francisco Alves e Castro Barbosa em 1933:

O samba na realidade não vem do morro nem lá da cidade e quem suportar uma paixão sentirá que o samba então nasce no coração.

Noel não fala de nenhum lugar geograficamente definido, pois se o “samba não vem nem do morro e nem da cidade” é porque ele nasce em algum outro lugar, ou mesmo em ambos os lugares, ou ainda em algum lugar que não é nem um nem o outro; enfim, ele nasce “no coração”. Ao jogar com o lugar-comum, que faz da música uma expressão direta dos sentimentos, Noel, conforme comenta Carlos Sandroni,

lembra que o resultado do trabalho do sambista (em cujo peito também bate um coração) é, em última análise, “música”: algo a que finalmente a cultura contemporânea dá um estatuto similar ao de uma sinfonia, estando ambos devidamente representados no dicionário New Grove. 8

Noel proclama a existência do samba como música popular, como música popular moderna – ou seja, como um produto cultural a ser vendido no mercado −, e uma música atrelada particularmente ao Rio de Janeiro (a sua Vila Isabel utópica). E a atividade do sambista, do compositor cuja imagem ele tanto cuidou em seu debate com Wilson Batista, como um profissional da música popular. Noel, portanto, por meio de seus sambas e de seus embates, contribuiu de forma decisiva para a criação da moderna noção de músico popular brasileiro

Nota

(e, por consequência, para a definição do conceito de música popular brasileira); agindo num momento de grandes transformações pelas quais passava o samba, o Poeta da Vila rearranjou habilmente o próprio significado do samba e do sambista, opondo-se às vozes conflitantes e resistentes aos novos tempos, que se seguiam na esteira do incremento do mercado de música daquele período. cc

José Adriano Fenerick é professor do. Departamento de História, Unesp-Franca.

1. Apud Sérgio Cabral,. A MPB na era do rádio. . p. 42. 2. Sobre a profissionalização do sambista e a criação do mercado de música popular, ver:, José Adriano Fenerick,Nem do Morro, nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural. 1920-1945. 3. Em Noel Rosa, o malandro é um boêmio, perspicaz, que sempre utiliza a sua inteligência e não sua valentia para iludir o otário. 4. Jorge Caldeira, Noel Rosa. De costas para o mar. p. 34. 5, Carlos Sandroni, Feitiço Decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), p. 171. 6. Marcos Napolitano, A síncope das ideias. A questão da tradição na música popular brasileira, p. 31. 7. Carlos Sandroni, op. cit., p. 172. 8. Idem, ib. p. 174-175

Referências

CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. São Paulo: Moderna, 1996. CALDEIRA, Jorge. Noel Rosa. De costas para o mar. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. FENERICK, José Adriano. Nem do morro, nem da cidade. As transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005. MÁXIMO, João & DIDIER, Carlos. Noel Rosa: Uma biografia. Brasília: Ed. UNB, 1990. NAPOLITANO, Marcos.A síncope das ideias. A questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. PIMENTEL, L. & VIEIRA, L. F. Wilson Batista. Na corda bamba do samba. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1989. SODRÉ, Muniz. Samba. O dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

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