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5.1 O título e a formação da comunidade

escancara conflitos internos da escola que, no momento da avenida, são menos perceptíveis. Por fim, no último capítulo, observei o drama social que a escola atravessou em decorrência das duas más colocações consecutivas. A crise foi indicativa da importância que o sucesso na competição tem para a própria constituição da comunidade. Segui a recomendação de Turner (2008) e analisei as ações corretivas dos dois lados, situação e oposição, para entender o discurso que mobilizavam. Ainda que com propostas políticas opostas, ambos faziam referência ao “pavilhão”, como forma de indicar que seus valores e, não os de seus oponentes, eram coletivos. Ao observar o ritual de cumprimento ao pavilhão e os diferentes enunciados que meus interlocutores faziam a respeito do que significaria “ser sambista”, identifiquei uma figura arquetípica ideal, o “guerreiro de fé”, conforme descrita no samba-enredo da agremiação em 2008: dedicado como um devoto e incansável como um guerreiro (conclusão que, aliás, me deu a ideia do título dessa dissertação). O conflito e a tensão parecem ser constantes na escola de samba, o que, como pude demonstrar, se manifesta no seu fazer musical. Seu maior desafio é abarcar e conciliar toda essa “dissonância” para formar uma comunidade.

5.1 O título e a formação da comunidade

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Em outubro de 2017, participei como organizador e mediador do “II Encontro de Música Popular Brasileira: o samba além dos 100 anos”, que contou com a presença de pesquisadores do assunto e de vários sambistas paulistanos. Nos dois dias de palestras, mesas e discussões, uma frase me chamou a atenção. Simone Tobias, neta de um dos fundadores da tradicional escola de samba Camisa Verde e Branco e figura ilustre do carnaval paulistano, afirmou: “Fica três anos sem ganhar um título e vê o que acontece com a sua comunidade” (Informação verbal)46 . Segundo a sambista, a vitória seria condição básica para a manutenção da comunidade, ou seja, da continuidade da própria instituição. Ao fim da pesquisa, tenho de concordar com Simone, porém faço um adendo: não apenas a vitória, como também a derrota tem sua importância. O título, além de ser entendido como um reconhecimento pelo bom trabalho da comunidade, tem um valor imediatamente prático: traz mais dinheiro para a agremiação.

46 Informação fornecida por Simone Tobias durante o II Encontro de Música Popular Brasileira: o samba além dos 100 anos. São Paulo, 2019.

Simbolicamente, representa o poder dos vencedores sobre os vencidos, o que, além de alegrar aqueles que já pertencem à agremiação, atrai novos apoiadores. Talvez por isso a perda do título seja tão dolorosa e o estopim de crises nas escolas rebaixadas: ela afeta negativamente a construção identitária dos sambistas que, acostumados a se enxergar e a ser vistos com a superioridade dos campeões, serão entendidos como vencidos. Porém, conforme exposto no relato de Edna no capítulo 3, a derrota traz o efeito “peneira” de afastar da escola os sambeiros e interesseiros, servindo como um teste de amor à agremiação: apenas aqueles que gostam da escola de verdade continuarão desfilando mesmo depois de uma colocação ruim ou de um descenso. Concluo, então, que há uma “lógica processual” (VELHO, 1977) nos dramas sociais das escolas de samba. Por se tratar de uma competição que organiza as comunidades musicais em grupos hierárquicos (grupo especial, acesso 1, acesso 2 e acesso 3) e estabelece uma mobilidade obrigatória entre eles (as duas agremiações que tiveram as melhores colocações nos grupos de acesso sobem para o grupo logo acima e as duas agremiações que tiveram as piores colocações descem para o grupo imediatamente abaixo), o desfile das escolas de samba estabelece que, a cada ano, pelo menos duas escolas de cada grupo enfrentarão crises decorrentes do descenso. É um modelo de organização cultural que, embora não tenha como objetivo principal a institucionalização dos dramas sociais, acaba por fazê-lo. Não tenho dúvida de que as consequências decorrentes do descenso sejam péssimas para a comunidade: brigas, cismas, revoltas, separação e mal-estar. Todavia as colocações ruins forçam a comunidade a pensar, a consertar erros e, em uma perspectiva muito otimista, quem sabe, retornar à vitória expurgada de problemas até então crônicos. Dentre os inúmeros motivos que podem justificar o fato de o carnaval se organizar sob moldes competitivos, estão: o simbolismo do poder (criado pela oposição entre vencedores e vencidos), a exigência oficial da organização da festa e o desejo do público de ver um espetáculo cada vez mais suntuoso em decorrência da competitividade acirrada. No entanto, acredito que o fator “emoção” também deva ser considerado. Acompanhar a trajetória de uma escola de samba como componente, vê-la vencer, perder, amargar derrotas e vitórias, subidas e descensos permite aos componentes sentir fortes emoções: raiva, amor, orgulho, tristeza, alegria, êxtase, algo mais ou menos parecido com o que acontece no futebol. A diferença é que, nas escolas de samba, é possível torcer e participar da performance ao mesmo tempo.

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