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O desenhador de bonecrinhos

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O projeto Melonaro

O projeto Melonaro

Era uma casa térrea dos anos 1950, de alvenaria e com pintura gasta, cercada por taquareiras e bancos de pedra, erguida no caminho entre a cidade e o Rio das Rãs. Meu colega e eu desembarcamos no meio de uma manhã de sábado, depois das aulas, e ele foi logo cercado pelas moças do cabarezito. Conhecido que era pela pertinácia de suas visitas, e também agraciado pelos favores do pai, outro visitador generoso, em minutos sumiu tratando dos encaminhamentos. Quanto a mim, desenhador repetente e desconhecido, soldado recém liberto do serviço militar obrigatório, coube-me a curiosidade de vasculhar os aposentos silenciosos e aparentemente vazios do lugar.

Através de uma porta semiaberta num quartinho de canto, iluminado pela luz do dia, deparei-me com uma senhorita nua deitada sobre a cama de solteiro. Estava lendo uma revista em quadrinhos. Fiquei paralisado. Ela virou-se, sorriu e pediu que eu sentasse ao seu lado. Pelo frescor da desenvoltura, imaginei que fosse recém chegada. Seu cabelo lembrava a palha do milho descascado e os olhos brilhavam um escuro de passarinho. Muito mais não conseguiria dizer, exceto que era frágil e muito bem encadernada.

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Deitei a cabeça ao lado dela, repartindo o travesseiro sem fronha. Senti medo. Ela não tinha cheiro. Então começou a ler os quadrinhos em voz alta, imitando vozes e trejeitos como nos desenhos da televisão. De início ri amarelo. Mas logo rimos juntos de verdade. Vendo ali uma oportunidade singular, tal qual São Miguel sacando a espada cintilante, puxei do bolso minha caneta de nanquim preto 0.6, da Mars, e risquei uma caretinha em sua mão.

- Eu sei fazer desenhos em quadrinhos. Como os da revista. Não sei quantos milênios se passaram enquanto ela olhava aquela garatuja com um encantamento cristalino. Prossegui e fiz outros desenhos em diferentes partes do seu corpo. Bichinhos, caretas, carros, montanhas, casas, nuvens... E o sorriso dela, meu Deus! Eu estava trêmulo quando ela me batizou:

- Tu é um desenhador de bonecrinhos.

Tirou minha camiseta sem pressa, pediu a caneta, e disse que não sabia desenhar. Escreveu seu nome verdadeiro no meu peito, recolocou a tampa e ficou tocando meus lábios com os dedos enquanto falava coisas em voz baixa, que eram pra me proteger.

Retornei ao lugar algumas semanas depois. Ela já não estava. As mulheres também eram outras. O vento norte chicoteava as taquaras. Sentei-me num banco de jardim e desconfiei de que não precisava de mais nada. Estava calmo. Eu acho que não me importaria de morrer depois daquilo.

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