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FELIX ALBERTO LIMA

FELIX ALBERTO LIMA

José Maria Nascimento chega aos 81 anos hoje como o último remanescente maranhense de uma poesia forjada por décadas nos becos soturnos da boemia, sob o éter que encobre as ruas estreitas do Centro de São Luís. Poesia, como vida, de altos e baixos. Poesia como meio de vida, quando vida e poesia são quase uma coisa só, e se confundem. Mimetizam. Autodidata, mal frequentou o ensino básico e logo cedo se jogou no mundo para começar a desaprender nos livros emprestados, nos puteiros e nos bares. Foi “desaprendendo as coisas”, como que ruminando involuntariamente as invenções de Manoel de Barros – e cada vez mais se agarrando no acaso das palavras - que ele virou poeta. Aos 17 anos, publicou os primeiros versos na imprensa. Para se sentir verdadeiramente um poeta, imaginava ele, precisava andar com poetas, conviver com a poesia no seu nascedouro, em estado bruto. Começou então a frequentar a roda de intelectuais no Bar do Castro. Foi beber na fonte. E se entregou, como um poeta maldito que se achava, aos primeiros tragos. Um dia, fora alertado por Erasmo Dias: – Sai desse meio, aqui só tem cachaceiro. Vai estudar! Mas era tarde. Ele já era o próprio meio. Aos 20 anos, José Maria Nascimento sofreu o golpe da morte do pai, João Pereira, um homem simples, vigia de matadouro, que ansiava um futuro menos dolente para o filho e a família. Construiu das sobras, e de alguma dor, a sua obra, que flutua entre o lirismo – o olhar onírico sobre a cidade que o pariu –, o berro social e a desesperança. É de 1960 o seu primeiro livro, “Harmonia do conflito”. Foram 15 livros publicados em 60 anos de poesia, alguns deles premiados em concursos literários da prefeitura de São Luís e do governo estadual. Ao longo de todo esse tempo de escritura há momentos de delicadeza e profundo desapego (‘Vai por mim que a vida é uma valsa’) e, como diz o próprio poeta, há dias de lírios jogados à sarjeta (‘... A vida ainda flameja e explode/ Por debaixo dos círculos da esperança). Não foi uma caminhada fácil. O autodidata, obviamente, não tinha tanta intimidade assim com a língua portuguesa e, por inúmeras vezes, no início da jornada, recorreu a amigos como José Chagas e Jorge Nascimento na revisão de seus poemas, nos apontamentos, nas boas dicas de leitura. Nos anos 1960, José Maria Nascimento foi viver a sua temporada hippie no Recife e de lá embrenhou-se pelas estradas do Nordeste. Andou sobre o tempo. Experimentou amores novos nas madrugadas, por muitas vezes ele impregnado na fumaça do relento. “Até que um dia acabou o dinheiro. E com isso acabou também o encanto dessa experiência hippie”, conta. De volta a São Luís, engatou uma jornada boêmia de longos anos com o seu companheiro de copo e de cruz, o poeta Nauro Machado. Juntos, eles foram a paraísos impuros, purgatórios e inferninhos nos quarteirões

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da cidade velha. Eram os andarilhos trôpegos da Praia Grande e Desterro: ‘Tenho inverno e verão em mim ocultos/ Iluminando os vales de outro mundo”. Foram anos de alcoolismo e desregramento que renderam a José Maria Nascimento, dentre outras chagas, uma tuberculose. O poeta viu a morte de perto. Mas persistiu – ‘O inferno e o céu estão presentes/ Na solidão do verso que me habita’. Só em 1992 tomou a decisão de parar de beber. Quando parou, foi chamado de traidor por Nauro. “A bebida só me trouxe prejuízo. Mas ainda ali, entorpecido, tentei fazer do sofrimento o lirismo para a minha poesia”, comenta. Há 25 anos José Maria Nascimento vem se dedicando à fotografia. Com os seus cabelos prateados, o olhar atento de poeta, passos firmes, sai por aí de câmera em punho a decifrar a alma da cidade. Da rua do Ribeirão, número 85, onde mora há 40 anos, ele compõe o seu destino, a sua história. ‘Recrio-me nos abismos do espaço’. José Maria Nascimento divide o tempo ainda no acabamento de um livro inédito de poemas, que ele pretende inscrever num desses concursos literários. Sobre reconhecimento, essa palavra cheia de armadilhas, ele não cria grandes expectativas. Nem se considera um injustiçado. “Eu colhi o que plantei”, diz, como quem conhece a trama do chão onde pisa. Só sabe ele que “mora nas manhãs” dessa cidade antiga que, num dia como hoje de setembro do ano passado, esqueceu dos seus 80 anos.

JOÃO BATISTA DO LAGO

"Reputo o João Batista como um dos pensadores modernos mais expressivos do agora", Olinto Simões 10/08/2021 12h21 Por: Mhario LincolnFonte: João Batista do Lago A estreia do poeta e jornalista, imortal da APB, João Batista do Lago: "O que Pode um Corpo?" (facetubes.com.br)

João Batista do Lago

O QUE PODE UM CORPO?

(O Corpo é o cárcere da alma ou é potência em ato?) João Batista do Lago INTRODUÇÃO O que sei sobre o corpo? Do que o corpo é capaz? Como pode o corpo ajudar no processo de evolução do ser humano? No modo de e-xistir? O que pode um corpo masculino? E um corpo feminino, o que pode? Todas essas questões são literalmente imbricadas às nossas e-xistencialidades, seja no campo fisiológico, seja no campo social, seja no campo econômico, seja no campo político. Isto posto, pode-se afirmar que um Corpo é um Logos de subjetividade[2] imanente do corpo de si. O corpo pode se dá de duas formas: individual (por exemplo: o ser humano), ou coletivo (por exemplo: a sociedade ludovicense). No primeiro caso temos o corpo real, no segundo caso temos o corpo metafórico. Desde a Grécia Antiga a problemática do corpo sempre se apresentou como um dos mais significativos problemas filosóficos. Já em Heráclito de Éfeso (Século V a.C) encontramos este debate posto. Seguidamente vemos Platão e Aristóteles também se debruçarem sobre a problemática do corpo. Da mesma maneira os neoplatônicos, os sofistas, os místicos, os gnósticos, os teólogos, os cristãos, enfim... E não para por aí! Filósofos como Espinosa, Nietzsche, Kierkegaard, Foucault, Deleuze e Guattari, entre tantos outros, fizeram do corpo uma problemática para suas pesquisas, seus estudos, seus escritos. Ou seja, a problemática do corpo não sai da onda! Está em pleno ato de surfar... Vale destacar, ainda, que a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia, a Psicanálise e a Esquizoanálise, também, se referem à problemática do corpo. Ora, diante deste panorama (primário e superficial), vale resgatar e discutir – aqui e agora – essa problemática. Evidentemente que não se esgotará toda a questão, posto que, aos meus olhos, para além da complexidade inerente, a problemática do corpo é inesgotável. Quanto mais se avança nas pesquisas e estudos de diversas matizes, verificamos que sempre existe uma nova perspectiva de debate sobre a potência do corpo: seja do ponto de vista do corpo humano; seja do ponto de vista do corpo sócio-coletivo. O corpo é um complexo de forças que se relacionam infinitamente em sua singularidade ou em sua pluralidade. HISTORICIDADE

Partindo de uma perspectiva histórica da Grécia pode-se inferir que fora Platão (428/7 a.C – 348/7 a.C) o primeiro pensador a discutir, racionalmente, a problemática do Corpo, ao criar para este, um corpo transcendente: a Alma. Para ele (Platão), esta (Alma) seria superior ao corpo humano, enquanto este (corpo humano) nada mais seria que uma prisão para aquela (Alma). Racionalmente, neste estágio, Platão propõe e instaura filosoficamente essa tipologia de dualismo que vai repassar por toda a sua obra literária (na qual ele promove um verdaeiro desprezo pelo corpo físico). No caso desse dualismo corpo-alma, por exemplo, essa dicussão se dá, fundamentalmente, nos diálogos Fédon, Fedro, O Banquete, e, sobretudo, em sua maior obra: A República. Por seu turno, Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C) - que fora o mais destacado discípulo de Platão – discorda literalmente do ateniense. Mesmo considerando o corpo como sendo um instrumento da alma, Aristóteles, assevera que o dualismo proposto por Platão não existe. O estagirita concebe corpo-alma como natureza única, ou seja: o corpo é matéria em ato de potência e, portanto, não tem substancialidade ou forma; isto quer dizer que não existe um corpo sem uma alma, nem uma alma sem o seu corpo. Em outras palavras: para Aristóteles não existe vida após a morte, ou seja: a morte do corpo é a morte da alma. Potanto, findado o corpo finda-se a potência em ato. Isto está claro em sua obra Sobre a Alma. Inclino-me a imaginar que este pensamento aristotélico esteja mais próximo da minha realidade, consequentemente, da contemporaneidade. O QUE É O CORPO?

Para falar sobre a problemática do corpo é quase impossível não iniciar por Platão (mesmo que se admita que já antes dele a problemática do corpo esava posta, contudo foi Platão que instituiu e metodizou a temática), para quem, o corpo era uma dimensão inferior e limitado. Segundo ele, o corpo, nada mais seria que o cárcere da alma. Esta tese, inclusive, vai abastecer o imaginário teológico – e teleológico - de todo o cristianismo. Platão (e consequentemente o seu Sócrates, em Fédon) era um desprezador do corpo. Penso que essa condição seja, talvez, um dos piores enunciados de todo o platonismo. "Aos que desprezam o corpo quero dizer-lhes a minha opinião. Não devem mudar de preceito, nem de doutrina, mas, simplesmente, desfazerem-se do corpo, o que lhes tornará mudos", diz Friedrich Nietzsche em Assim falava Zaratustra, no discurso Dos que desprezam o corpo (Ed. Vozes, 7ª ed. P. 51). Nesse mesmíssimo discurso, o filósofo alemão também infere: "Há mais razão em teu corpo que em tua melhor sabedoria. (...)". Vê-se, desde logo, que o Corpo em Platão é niilista; enquanto o Corpo em Nietzsche é vitalista (pura potência). E é exatamente isto que me interessa de fato: o Corpo como potência plena. Sou inclinado a pensar que nada existe além do corpo. Para eu não há uma Alma que vive, mas um Corpo que existe plenamente. Sob a perspectiva de Gilles Deleuze, que foi beber na fonte de Baruch Espinoza, pouquíssimo ou quase nada sabemos sobre o corpo: "(...) o fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer (...)" - (Espinoza - Ética III – Prop. 2). Deleuze, por sua vez, além de admitir o paralelismo psicofísico, coloca-o como um caso especial de outro paralelismo, o paralelismo epistemológico, o qual identifica uma ideia com um modo individualizado do pensamento e este, de sua parte, seria modo correspondente a um corpo. De qualquer forma, para Deleuze, o paralelismo entre corpo e mente caracteriza a dupla expressão simultânea própria do Deus spinozano: o paralelismo expressaria a imanência divina. Em sua obra "Nietzsche e a filosofia" (n-1 edições 2018), Gilles Deleuze nos propõe a seguinte questão: O que é o corpo? (grifo nosso) Nós não o definimos dizendo que é um campo de forças, um meio nutridor disputado por uma pluralidade de forças, Com efeito, não há "meio", não há campo de forças ou de batalha. Não há quatidade de realidade; toda realidade já é quantidade de força. Nada mais do que quantidade de força "em relação de tensão" umas com as outras. Toda força está em relação com outras, quer para obedecer, quer para comandar. O que define um corpo é a relação entre forças dominantes e forças dominadas.Toda relação de forças constitui um corpo químico, biológico, social, político. Duas forças quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo desde que entrem em relação; por isso o corpo é sempre o fruto do acaso, no sentido nietzscheano, e aparece como a coisa mais "surpreendente", muito mais surpeendente, na verdade, do que a consciência e o espírito. Mas o acaso, relação da força com a força, é também a essência da força; Não se perguntará então como nasce um corpo vivo, uma vez que todo corpo é vivo como produto "arbitrário" das forças que o compõem. O corpo é fenômeno multiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças irredutíveis, sua unidade é a de um fenômeno múltiplo, "unidade de dominação". Em um corpo, as forças superiores ou dominantes são ditas ativas, as forças inferiores ou dominadas são ditas reativas. Ativo e reativo são precisamente as qualidades originais que expressãm a relação da força com a força. As forças que entram em relação não têm uma quantidade sem que, ao mesmo tempo, cada uma tenha a qualidade que corresponde à sua

diferença de quantidade como tal. Chamar-se-áde hierarquia a diferença das forças qualificadas conforme sua quantidade:forças ativas e reativas. Isto posto pode-se dizer que o texto acima, por si, é autoexplicativo. Contudo resta-me salientar que o que soçobra do pensamento deleuziano – baseado em Espinoza e Nietzsche - é a ideia de que o corpo é um complexo singular e plural ao mesmo tempo, ou seja, é a pluralidade do singular infinito ou a infinitude na pluralidade do corpo. Sou, de fato, inclinado a pensar que o ser humano pouco e quase nada conhece sobre o seu corpo singular (físico), e muito menos sobre o seu corpo plural (social, econômico, político, etc). Neste sentido considero que Deleuze – associado à Félix Guattari -, em sua principal obra: O Anti-Édipo, bem como em Mil Platôs, infere o debate da problemática do corpo sob os olhares da filosofia e da psicanálise. Deleuze e Guattari vão resgatar a originalidade de Antonin Artaud, que desenvolvera o conceito de corpo sem órgãos. Vale dizer, desde sempre, que não se trata de um conceito de fácil entendimento. Artaud propõe o fim do julgamento de Deus (corpo transcendente), isto é, um corpo ausente da minha geografia corporífica e materialística. Diz Antonin Artaud: "Assim como o mundo tem uma geografia, também o homem interior tem sua geografia e esta é uma coisa material". Vejo aqui uma conexão, ou mesmo um diálogo, com Nietzsche, para quem "o desejo de atribuir a si mesmo toda a responsabilidade de seus próprios atos, desobrigando a Deus, o mundo, os antepassados, o acaso, a sociedade, (...) é apenas o desejo de ser causa sui e de levantar-se a si mesmo pelos cabelos" (Além do Bem e do Mal – Primeira parte §21, p.30, Ed Vozes). Aos meus olhos, Espinoza, Nietzsche, Deleuze e Guattari, e Antonin Artaud, surfam na mesma onda: é necessário e fundamental de-organizar o corpo, ou seja, eliminar todos os órgãos do ser humano, para que, assim, possa re-nascer o novo ser humano que habita o corpo. Somente um corpo totalmente de-organizado, isto é: um corpo sem órgãos, será capaz de construir, de fato, sua liberdade plena, posto que, perderá seus automatismos, determinismos, etc. E essa liberdade em ato se dará porque a realidade internalizada em uma mente cheia de maquinarias transformadoras possibilitará que este novo ser humano – este corpo sem órgãos - torne-se o verdadeiro corpo de si em ato... Em potência pura... Em vontade de potência. De certa maneira eu os coloco (Espinoza, Nietzsche, Deleuze, Guattari e Artaud) no mesmo altar dessa igreja revolucionária que pretende explodir o princípio, a moral, os fundamentos de um mundo moderno capturado pelo capitalismo desestruturante de todos os corpos.

O que pode um corpo? (Parte II) De João Batista do Lago

Intuo empriricamente que foi a partir de Baruch Espinosa2 que a problemática do corpo se deu confessadamente uma questão filosófica (é claro, antes dele já se havia falado a respeito, porém, penso que é a partir de sua Ética que o tema ganha propulsão). Com ele aprendemos que o corpo não é pura e tão somente um amontoado de carne, músculo e osso. Um corpo é muito mais que isso. Um corpo é, sobretudo, potência que se relaciona com outras petências finitas e infinitas. Um corpo é um complexo de afectos3 e afecções4. Isto quer dizer que um corpo tanto pode ser afectado como afectar. Em outras palavras: o corpo é uma potência em ato; é a essência da existência de si; é o centro do divino; é o divino. Nada existe sem corpo, nem para além dele.

Ora, isto posto, devemos entender que não só o ser humano é corpo, mas, também, todas as outras “formas” de animais; assim como as árvores, as pedras, as rochas, os rios, os mares, a terra, o ar, o fogo, o sólido, o líquido, o tempo, o espaço... enfim, o universo. Mas é neste ponto que devemos fazer uma distinção clara, plena e absoluta: somente o ser humano é racional; somente o homem e a mulher têm uma mente pensante. Portanto, somente o hoem e a mulher têm a possibilidade de adquirir a imanência5 do corpo na natureza. Sendo assim, intuo que para Espinosa isso faz toda a diferença. E é exatamente aqui que ele consagra a unicidade mente-corpo. Aos meus olhos é exatamente aqui que ele estabelece o seu conceito originalíssimo de Natureza-naturante... de Deus... de Natureza-Deus ou Deus-Natureza. Noutras palavras, isto significa o seguinte: há perfeição em tudo, pois, tudo provém de Deus (Natureza). Portanto, para ele, a natureza é divina e perfeita. Dito isto, caros leitores e leitoras, rogo-vos – desde sempre – perdão por essas elucubrações empirísticas que em mim ruminam-se. Contudo, elas são parte desta minha experienciação existencial/intelectual e que latejam como um tumor purulento.

Então, o que pode um corpo (necessariamente)?

Seguindo a trilha deixada por Espinosa, e considerando apenas a minha intuição, intuo que um corpo pode tudo... Pode afectar e ser afectado, pois todo e qualquer corpo é feito de encontros6. De forças que se relacionam com outras forças. De potências que se relacionam com outras potências. De movimentos que se relacionam com outros movimentos. De repousos que se relacionam com outros repousos. De alegrias que se relacionam com outras alegrias. De tristezas que se relacionam com outras tristezas. Tudo isso são encontros categóricos indispensáveis para entender o que pode um corpo – seja na esfera científica, seja no plano físico ou metafísico; seja no escopo metafórico. Seja no campo privado; seja no campo público. Seja no âmbito da religião ou não. Seja no campo da Moral ou da Ética. Seja no campo; seja na cidade. Seja na ambiente social, político ou econômico. Não há como escapar de encontros! Eles são as nossas experiencias – conscientes ou inconscientes. Aos meus olhos, vivemos ad eternum de encontros. (E mesmo os desencontros são, necessariamente, encontros!). É exatamente isso que Espinosa enuncia como sendo a natureza (imanente) divina e perfeita (Deus) – penso eu.

E como acontecem esses encontros (necessariamente)?

Por intermédio dos afectos e das afecções (necessariamente).

Vejam o que infere Espinosa: “(...) Nada acontece na natureza que possa ser atribuído a um vício desta; a natureza, com efeito, é sempre a mesma; a sua virtude e a sua potência de agir são unas e por toda parte as mesmas, isto é, as leis e as regras da natureza, segundo as quais tudo acontece e passa de uma forma a outra, são sempre e por toda parte as mesmas; por consequência, a via reta para conhecer a natureza das coisas, quaisquer que elas sejam, deve ser também una e a mesma, isto é, sempre por meio das leis e das regras universais da natureza (…).” - (Ética, parte III, Da Origem da Natureza das Afecções, p. 175).

Ora, então por quê há corpos deprimidos, doentios, enfermos, tristes, acabrunhados?; outros alegres, satisfeitos, potencializados, saudáveis e prenhes de alegrias?

O próprio Espinosa nos responde dizendo: “O corpo (…) pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é aumentda ou diminuida; e, ainda, por outras que não aumentam nem diminuem a sua potência de agir.” (…) “O corpo (…) pode sofrer numerosas transformações e conservar, todavia, as impressões ou vestígios dos objetos e, consequentemente, as imagens das coisas (...)”. (Ética, III, postulados I e II, p. 176). É aqui que a porca torce o rabo!

Ao inferir tal pensamento Espinosa quer dizer que tudo o que acontece a um corpo somente ocorre porque esse corpo foi afectado, isto é, teve sua potência aumentada ou diminuida durante o processo de um encontro qualquer. Essa afectação resulta de subjetividades apreendidas durante toda a existência e que são resgatadas ou coagidas no instante (aqui e agora) da ocorrência do afecto (encontro). Benedictus não está só nesse pensamento. Nietzsche, por exemplo, declara em uma carta de 1881 que sua filosofia7 e a de Espinosa partilham de uma “idêntica tendência geral”, resumida na fórmula: “fazer do conhecimento o afeto mais potente”. Vê-se, pois, aqui, que o corpo é um “senhor desconhecido”, mas que precisa ser absolutamente conhecido pelo “si” do corpo. Noutras palavras pode-se salientar que todo e qualquer encontro (afecto) – alegre ou triste – deve ser cristalinamente entendido pelo corpo afectado como “o afeto mais potente”.Novamente aqui a porca torce o rabo! Aos meus olhos, todo “o afeto mais potente” (e aqui corro o risco da discordância pretensiosa de entender, seja o afeto (Nietzsche); seja o conhecimento (Espinosa)) – como “o afeto mais potente - é todo e qualquer um que se nos ocorra, que se nos atravessa, que se nos encontra; tanto faz se alegre ou triste. Ter a sensação do amor ou do ódio são, para mim, parte da imanência da natureza do ser e do si. Portanto devem ser existencializados (poetencializados) e não somente percebidos. Noutras palavras: sentir amor (paixão alegre) ou sentir ódio (paixão triste), não está fora da possibilidade do que pode um corpo. Aqui insiro a noção de gozo (prazer de...) ou de desprazer, aflição ou choque. Estes modos ou atributos estão em movimento contínuo. Permanentemente somos atravessados por eles, estejamos em movimento ou não,

ou seja, em estádio de sonho (sono) ou de vigília. E isso ocorre necessariamente porque somos, inequivocamente, corpo-mente/mente-corpo. Contudo, a inexistência experiencial do conhecimento ou do afeto, ou seja, não ter a experienciação destes, não saber deles é, pois, a causalidade fundamental para que existam corpos alegres ou tristes, ou ainda, corpos sãos ou doentios. Assim sendo, pode-se dizer concretamente que os que passam pela vida resmungando – de tudo e de todos (e existem muitas pessoas assim) – são, necessariamente corpos doentes, infelizes, grosseiros, abjetos. E é exatamente daí que nascem os preconceitos, os rascismos, os ressentimentos... são reativos. Por outro lado, aqueles que se propõem um processo de constante alegria (e esses são muito poucos) são prazeros, felizes, cordatos, vitalistas, entusiasmados e entusiasmadores.. são ativos.

Exemplo

Na minha experiencialidade (pessoal e social) tive a possibilidade de “encontros” com corpos sãos e doentios! Até mesmo no núcleo familiar (e, principalmente nesse)! E devo admitir sobriamente que, mesmo eu, fui (necessariamente) um corpo doente, assim como um corpo são – tantas e quantas vezes. Contudo, diferentemente de pais, irmãs e irmãos, ou de companheira(s) ou filhos, tentei – e tento – sistematicamente ser tão somente um corpo sadio. Não é fácil! Administrar um processo de “alegria” permanente é algo consideravelmente difícil! Intuo que é mais possível (até!) viver em um processo de “tristeza”! A esse respeito vejam o que diz Espinosa: “Aquele que imagina aquilo que ama afetado de alegria ou de tristeza será igualmente afetado de alegria ou de tristeza; e ambas essas afecções serão maiores ou menores naquele que ama, conforme o forem na coisa amada” - (Ética III, prop. XXI, p. 188). Confesso que para mim foi e é (assim como será) extremamente difícil lidar com esse processo de verdadeira desconstrução de um sujeito que foi nascido e criado e educado no seio de uma família católica, cristã, preconceituosa, racista, homofóbica, falocêntrica...

Mas, sobre isto, falarei no artigo da próxima semana. Até lá.

E-mail para correspondência: joaobatistagomesdolago@gmail.com 1 Jornalista, Escritor, poeta, teatrólogo, articulista, ensaista e pesquisador. 2 No dia 24 de novembro de 1632, em Amsterdam, nasceu Baruch (ou Bento em português, ou Benedictus em latim). Morreu em Haia em 21 de fevereiro de 1677. 3 Afeto (affectus ou adfectus em latim) é um conceito usado em filosofia por Espinosa, Deleuze e Guattari, o qual designa um estado da alma, um sentimento. De acordo com a Ética III, 3, definição 3, de Espinosa, um afeto é uma mudança ou uma modificação que ocorre simultaneamente no corpo e na mente. 4 Preferi esta grafia para, definitivamente, diferenciar o sentido desses vovábulos. 5 Característica do que faz parte da essência de alguma coisa em oposição à existência (real, imaginária ou fictícia). 6 Espinosa acredita ser possível entender os afetos, em sua produção interna e necessária, com seus vários graus de complexidade. Espinosa denomina de “bom-encontro” o momento onde nos tornamos mais próximos do mundo e de nós mesmos, ampliando a capacidade de afetar e ser afetado. 7 Em 30 de julho de 1881, Nietzsche envia carta ao amigo Franz Overbeck, Nessa carta o filósofo alemão infere: “Eu tenho um precursor! Eu estou muito espantado, arrebatado! Eu tenho um precursor! E que precursor! (…) Não é apenas que sua tendência global seja a mesma que a minha: fazer do conhecimento o afeto mais poderoso (...)”.

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