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PERCURSO DE SOMBRAS
PARABÉNS MEU POETA QUERIDO,,, HOJE, 2 DE AGOSTO, INAUGURA-TE NA "LIRA DOS OITENT'ANOS"
FERNANDO BRAGA
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II - Dos cárceres da alma [*] [Sobre O Cirurgião de Lázaro, de Nauro Machado] A poesia como expressão verbal glorifica-se por sua extensão a explorar alogicamente os símbolos e signos representativos da linguagem humana, utilizada em fins estéticos, a procurar amparo e densidade, harmonia e sutileza em suas diversas peculiaridades conotativas, a distanciarem-se quando possível, e a cada vez mais, da elocução comum. Com esse pensamento conceitual, a poesia na concepção de Nicolas Boileau, ditador racionalista da poesia de Paris e vulgarizador de uma natureza intelectualizada, diz ser a arte poética nada mais que uma construção lógica, pausada e trabalhada a frio. Por ser esse conceito do preceptor, poeta e satírico francês o mais próximo da linha que me propus aqui a textualizar, começo a dizer que é mais ou menos nesse atelier de idéias, palavras e ritmos que o poeta Nauro Machado esgota-se a laborar seu eu-artístico, a conceber sua arte, não a frio, mas a barro e ferro e a lapidála numa harmonia personalíssima, diria mesmo, provinda de suas entranhas viscerais, jamais vista em outros poetas; ele redesenha em cada produção um hermetismo diferente, porque, paradoxalmente revelador, envolto numa magia lexical, em movimento, como se um inventário do seu código poético que a todos embriaga de perplexidade, vez que é montada em uma sintaxe preponderantemente intimista e ao mesmo tempo mundana, divina e profana, a transcender os limites de todos os sentidos incomuns; sua poesia é cada vez mais intermitente no curso de uma metalinguagem que chega a transfigurar-se em transes santificados e em surtos demoníacos.
O Cirurgião de Lázaro se posta em minha mesa de trabalhos, e o vejo já depois de lido como uma preciosidade universal, vez que Nauro plantado por raízes profundas em nossa Província, nosso chão de risos e choros, de alegrias e sofrimentos, continua como um velho combatente, como se num campo-espaço espectral, onde seu vulto de artista pode ser visto engajado em uma luta que escolheu para defender até o fim, sem condecorações, outorgas e medalhas, galardões indiferentes a seu estar e ser, mas sem funções sociológicas que o fariam, não distingui-lo, porque é ele mesmo quem diz, não mais pertencer “a um tempo que já morre / neste presente que comigo rui,/ entre o futuro que sem fim decorre / e o passado que para sempre eu fui... ”/, mas digná-lo, pelo menos, no meio em que vive, já que ele tem pagado com métrica o que deve em ouro! “Desperto as nuvens desse céu liberto / da natureza que me fez de um parto. / e se desprezo o céu que é assim do aberto, / desprezo quem comigo em sonho encerro,/ abrindo as portas que vão dar no quarto / de uma morada eterna em barro e ferro”. O Cirurgião de Lázaro... escorreu por mim, e o fiz pausadamente, não com a pressa de uma leitura em diagonal, mas com reflexões que me permitissem com mais familiaridade adentrá-lo, sempre querendo ir mais longe do que já guarda sobre ele meu hipocampo sentimental, o que me fez, desta vez sentir um Nauro com alguma coisa diferente, um Nauro a navegar no mesmo leito de antes, de águas turvas e profundas a debater-se com a mesmo virilidade de sempre; mas agora o vi diante de um existencialismo que não mais aquele em contraponto com delírios e angústias ambulatoriais, diante daquela fragilidade que o fazia ainda um ser indefeso e intra-uterino; mas um Nauro um tanto quanto Sartreano tendo como pano de fundo o individuo (o homem que é ele mesmo), a liberdade, a história (talvez de um mundo mais que real, onírico e lúdico, que sejam), e a política, não na acepção da ciência, mas da arte alegórica, para onde ela mais declina, a rejeitá-lo com o húmus de sua unção e a cognição de seu credo, como um ser plenamente sociável... E incisivo e direto Nauro aqui revela esse animal humano: “Auxiliar de Serviços Gerais, / nesta cidade ou terra gonçalvina, / meu contracheque – dizem – é demais / para um trabalho que lhes contamina, / o ser feliz a
abrir-se pelos ais / que eles despejam quando na latrina. / - o que de mim ainda querem mais, / com meu pescoço já na guilhotina? / - Dinheiro é tudo, dizem em cio farto, / dinheiro é mais que o verbo ou o próprio parto / feito no ventre das mães de Maria. / Nesta São Luís, príapo de um sapo, / limpando o verbo em sujo guardanapo, / não terei a sorte de Gonçalves Dias”. E se volta ao passado, à meninice no velho sobrado do Largo do Carmo, onde funcionava o clã dos Machado, quartel general das Oposições Coligadas do Maranhão e a redação de “O Combate”, indo a uma livraria próxima, ainda de pijamas, para comprar revistas e figurinhas, em suas horas de infância e travessuras: “Que Lig-lig-lé me ligue à luz que segue / me atando àquela criança que não cegue / na escuridão de um sol suor dos bípedes, / bêbeda boca eu sou, mamando ao peito / a me ofertar, sem paz em nosso leito, / a eterna infância morta em velocípedes”. Ou ainda: “Tudo me fala pela infância morta, / com sua eterna e inconfundível voz”. Neste livro O Cirurgião de Lázaro, Nauro “faz continuar a numeração seqüenciada da antologia, acreditando que seu somatório sonetístico resulta de vocação cumprida dia a dia com pertinácia e imperiosa necessidade humana”. Era preciso que aqui se repetisse isso que vem na contracapa do livro para se justificar que os sonetos não têm títulos, mas números, pelas razões que se observam, além de ter os belos desenhos do artista Lucas Sargentelli, em carvão, pastel, giz e borracha o que dá ao livro uma identidade magistral entre a palavra e a imagem. Luis Eduardo Meira de Vasconcelos, na segunda orelha ou aba diz com muita propriedade que existe em Nauro “a recorrência de uma das formas poéticas consagradas, trata-se aqui, portanto, da lenta e inabalável lapidação do que, ante os mistérios da existência, só se realiza como resíduo, a um tempo resto e âmago”. Observa-se nesse livro, nitidamente, sua luta frontal com a morte. Vejamo-lo nesse soneto, a usar a técnica do enjambement, a me parecer rara no curso de sua obra: “Túmulo da alma para os pés sem meia, / abro o grito do chão para um enredo / a se fazer na boca com teia / de aranha a enredar-se em seu segredo.” O grifo é meu. Continuando: “Querendo ouvir o nada onde me sumo, / tento escutar o ser que em mim chafurda, / sabendo estar até de mim expulso, / pela surdez gritando: Eu não sou surda! Adiante: “A morte espera pelo tempo vindo / da eternidade feita de um segundo, / como relógio mudo que é enfim findo / no aberto pulso de negro osso imundo”. (...) “Falando eterna em verbo apodrecido, / ela vindo a se fazer no ouvido / pelo atropelo feito em tanto saque, / para chegar ao fim do que acumulo / sem saldo algum, como um ladrão em seu pulo, / nesse Banco a falir com um só saque”. E crístico: “Amputar Teus pés nas minhas pernas, / amputar Tuas mãos nos meus braços, / é conhecer a falta com que infernas / minha existência a ser de outros espaços. / Nesse caminho em que com dor me hibernas / num chão infernal de dor e de cansaços, / como abraçar-Te os pés nesses vis laços? / Onde andarão Teus pés querendo as mãos / para calçá-los pelos que a sós só vão / com os dedos falhos indo a um Ser avaro? / para chegar a quem é mais sozinho / no meu percurso a estar noutro caminho, / nas Tuas mãos meus pés têm o Seu amparo”. E profano: “Satã tetânico dos vícios de hoje / reduplicado ventre que desventuro / para deitar-me em ti no imundo coche, / entrando todo com meus porcos dentro, / e a me fazer com dois, que eu não me enoje / (...) Satã de adâmica carne tetânica, / de anágua provinciana a ser satânica / nudez despida e além multiplicada: / tu viverás em nós eternamente,/ como quem real faz-se em nossa mente, / como uma idéia conosco em nosso nada” Encontrei um Nauro ainda bíblico e marcadamente, como já dissera antes, levítico, a purgar na homogenia de sua carne e espírito, luzes de uma sublimação que é sua, muito sua, de uma impossibilidade quase descritiva, talvez pelo embargo em mais dizer, deste velho amigo que não é crítico, mas que tem a emoção diante da admiração e do bem querer que lho devota, não apenas pelo homem em grandeza que ele o é, mas por sê-lo, também, um dos maiores poetas brasileiros de seu tempo. Nauro, lá pelas páginas tantas de seu livro, que o vou abrindo aleatoriamente enquanto escrevo, usa a técnica das rimas fragmentadas como Verlaine as usou, e outros tantos poetas, principalmente italianos, (e
os latinos como Ariosto, Dante, Monti, e muitos outros), obtendo-as não apenas pela separação de elementos justapostos ou já aglutinados, como também de sílabas e até de letras: Aqui, comparamo-lo apenas com o poeta francês: “Mai que moi que ne suis rien, plus rien que leur hygiène a ces tiens (miens?) charmes bieaimés... “
E Nauro:
“Setenta anos se fazem tão distantes de mim agora, como se em Babilônias mortas e feitas só de instantes para uma vida que só morte cabe”. E Verlaine: “Voyez Banville, et voyez Leconte de Lisle, et tôt pratiquons leur conduite et soyons... “ E Nauro “Se alguém me vê real, ninguém é Capaz de saber-me a rua ou o endereço...”
No início deste fio de prosa falei de Boileau, do que pensa da Arte Poética (título de seu livro), e novamente o trago a este texto para que ele diga que “a maior desgraça que pode acontecer a qualquer escrito que se publica, não é muitas pessoas dizerem mal, é ninguém dizer nada”, sentença esta que se bem ajusta no que adiante apostilo: não digo escrever algo a respeito, o que é plenamente justificável, até pela pouquitude do alcance de certos doutos, mas pelo menos agradecer a remessa do presente, fato infelizmente cultural e comum entre muitos, o qual Pitigrilli num de seus livros satíricos, faz ríspido comentário sobre esse grotesco gesto. Assim, com o interesse de sempre, li O Cirurgião de Lázaro do meu velho e querido companheiro de andanças Nauro Machado. Senti-o sob o olhar de um também poeta, não tanto com as luzes que o iluminam, mas como ele, um esteta e homem de cultura feita.