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FERNANDO BRAGA
FERNANDO BRAGA
Transcrevo uma carta do jornalista e poeta Odylo Costa, filho, a propósito de um meu dedo de prosa chamado “Recado para Odylo”, publicado no Jornal “O Imparcial”, São Luis, de 17 de outubro de 1970, onde tecia comentários sobre seu livro a mim oferecido “A Faca e o Rio”, escrito quando ele era Adido Cultural do Brasil junto à nossa Embaixada, em Lisboa, Portugal. E lá se vão 46 anos! Dizia o dedo de prosa: Só hoje li em edição brasileira “A Faca e o Rio”. Juro que gostei demais das sagas de beira-rio nele contidas. O Parnaíba, este velho monge de barbas brancas, como dizia Da Costa e Silva, me comove. Li “A Faca e o Rio”, e como “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, quase chorei. Uma faca para a surpresa emocional de João, amigo e homem bom. João e Maria. Maria, moça e bonita. Estes tomaram conta da novela e com eles o amor e a tragédia. No transcurso de tudo, um rio desce, deixando de um lado na margem os olhos intranqüilos do romancista, e do outro, a alma cheia de lembranças do poeta. Não sei se pelo meu espírito irrequieto, ou se pela minha própria hereditariedade, sempre tive um carinho diferençado por histórias de retirantes. Pelo lado materno, me acostumei a ouvir os horrores da seca de 77, que assombrou o Nordeste e cheguei mesmo a prometer-me que um dia escreveria sobra a “Malhada Grande”, fazenda dos meus avós maternos em Ipu, no pé da Serra do Ibiapaba, transformada em mandacarus e chão de pó. Pelo lado paterno, desde menino, aprendi amar as aventuras, pelas histórias que meu pai me contava de sua região, lá no alto-Douro, todas elas sofridas e tristes, que tão bem caracteriza a gente portuguesa. Escrevilhe um poema: “Cantiga de tristeza pata quem parte só”, sal-gema daquelas canções do “Só”, de que dos nos fala o doce Anto.
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Ainda hoje, como o filho de Raul Bopp, na saga do “Cobra Norato”, também me pergunto: como me transmudaria para essas histórias de polichinelo?
Não sei se é por isso ou por aquilo, tudo me comoveu, sobremodo, desde o oferecimento a Odylo Costa, neto, que ouviu ainda inacabada esta história, inspirada num episódio narrado por seu avô, e que você, um dia, prometeu terminá-la, até onde se desse os puros roubos de moedas. Você, Odylo, ainda tem muito de criança pelas coisas que você ama e canta com tanta ternura. Acabei de ler o livro e senti uma vontade danada de abraçá-lo novamente. A gente tem sempre, entre o medo de um pé-de-vento, algum, que nos faça gaiolas de buriti, e papagaios, estes dados ao amor, das mãos que fabricam, sobem mais alto que os outros, e lanceiam com maior porte. As recordações? Você as traz em bandos: a casa da gente, com tudo que nela aprendemos a gostar, as meiaságuas furtadas onde balançam redes brancas com cheiro de baú, o coaxar de sapos ao longe dos caminhos; uma balsa que desce carregada de melancias e laranjas; o lugar do rio melhor para tomar banho, as terríveis piranhas e as gostosas curimatãs prateadas, de três palmos e mais; os banhos de chuva, depois escorridos no peitoril da casa grande e o cheiro de tudo que nos viu pequeno. Que beleza! E em São Luis? Você não perdeu a oportunidade na passagem de João para o Amazonas, em falar: “São Luis é a cidade das ladeiras, de sobradões de azulejos com telhados velhos. Não há alma que se feche serena alegria daquela paisagem de sol, azul, cal, madeira nas janelas, paredes luminosas, a suavemente mergulhar nas águas.” Li “A Faca e o Rio” de um só fôlego... E juro que queria mais! Estas eram as coisas que eu queria escrever. Muito obrigado, Odylo, pelas histórias que você me contou de Maria e João da Grécia. Um abraço do sempre seu, Fernando Braga. E a carta resposta de Odylo Costa, filho, do Rio de Janeiro, em 24 de novembro de 1970 chegou-me de imediata:
Meu caro poeta, Não sei o eu lhe diga. Seu “recado” me tocou profundamente. Não o louvor: o encontro de duas sensibilidades, de duas almas. Vi também que meu mundo confina com o seu, e esse país de infância, sem dimensão e nem mágoa, que me acompanha, também é para você uma “dimensão” (não veja choque entre as palavras), a verdadeira “dimensão”. Li e reli o que você escreveu e que me fez feliz. Receio que não saibamos conversar (cada um de nós é um tímido a seu jeito). Mas quero que saiba que lhe sou devedor e me considere seu amigo. Gostaria de lhe ser útil mandando livros que não existam aí, na “Galeria” do nosso heróico Neves. Diga-me o que deseja que lhe envie. Penso que talvez a experiência de quem muito leu possa vir a ser posta a serviço da inteligência de nossa terra. Às vezes não é fácil distinguir entre os nomes trombeteados pela imprensa e os verdadeiros mestres e guias, nem sempre objeto da publicidade. Tenho, por outro lado, devido a circunstâncias ocasionais, alguma intimidade com a literatura moderna de Portugal e da Espanha. Penso nisso como forma de retribuir a alegria que me deu, mas ela é dessas coisas que não se pagam senão no espírito. Seu amigo e admirador Odylo Costa, filho.