57 Edição

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AGOSTO 2023 57º Edição

Indíce

AGOSTO 2023

04 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho

06 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

08 ....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes

10 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues

12 ....... Faz anos, em Agosto | Foto de João Corrêa, texto de Adelina Barradas de Oliveira

14....... IA e Direitos Humanos | Ana Cláudia Albergaria

18....... Cantinho do João | João Correia

20....... Investigações Inconclusivas | Carlos Pinto de Abreu

24....... Os olhos de Aura | Lícinia Quiterio

26 ....... O efeito Salah | Renato Lopes Militão

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA

SITE:

WWW.JUSTICACOMA.COM

FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

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Editorial

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

AGOSTO MAIS MAR E MAIS TEMPO....SERÁ?!

AS CRÓNICAS DA JUSTIÇA NÃO DEIXAM DE NOS SURPREENDER

IA NUM MUNDO DE DIFICULDADES

JORNADAS PARA UMA JUVENTUDE QUE NÃO VISLUMBRA O FUTURO

QUERER SER CIDADÃO DO MUNDO

TER OS OLHOS DE AURA

RECORDAR MOMENTOS QUE NOS MARCAM

GESTOS QUE JÁ NÃO FAZEMOS E DEVÍAMOS

CONTAR O QUE OS NOSSOS OLHOS NOS FIZERAM SENTIR

TUDO DE OHOS POSTOS NO CAMINHO

O CAMINHO QUE UM DIA SE VIRARÁ PARA O SOL.

LEIA-NOS POR AÍ, NUMA ESPLANADA, AO FIM DO DIA, EM CASA

A CONTAR OS DIAS QUE FALTAM PARA VOLTAR A TRABALHAR

E EM OUTUBRO, TEMOS COLÓQUIO

ATÉ JÁ

AGOSTO QUENTE DE 2023.

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FLORES NA ABISSÍNIA

A MÃE

Já não há silly season. Aquele período do ano coincidente com o mês de Agosto em que o mundo parava e íamos todos a banhos, retomando a acção em Setembro, foi consumido pelo aquecimento do planeta e a globalização que nos entram em casa todos os dias. Podemos não ver notícias, mas basta um scroll numa rede social para percebermos que a guerra continua na Ucrânia como na Palestina, o Mediterrâneo continua a engolir náufragos e a Europa oscila entre os incêndios e as cheias.

​Do ponto de vista cinematográfico, porém, a silly season parecia vir aí de armas e bagagens. Uma nova aventura de Indiana Jones e mais um episódio de Missão Impossível permitiam aventar com alguma segurança nesse sentido. E mesmo a Barbie, apesar da crítica social, veio embrulhada em papel cor de rosa e ritmos contagiantes, capazes de anestesiar a angústia existencial para o nível aceitável. Mas as coisas não correram bem assim. Indiana Jones e Ethan Hunt combatem demónios que não nos são

desconhecidos e empunham bandeiras actuais. E depois há filmes como Rabiye Kurnaz vs George W. Bush, de Andreas Dresden. Não é uma superprodução, não pretende entreter as massas, inquietandoas apenas no mínimo necessário para não ser considerado alienante. Ia dizer que não tem efeitos especiais, mas isso não é verdade. Tem vários efeitos especiais: a tenacidade de uma mãe, o labor de um advogado que não desiste e a resistência de um filho. Estes efeitos têm a peculiaridade de serem reais. Porque este filme baseia-se numa situação que efectivamente aconteceu neste nosso mundo. Não nos podemos identificar facilmente com Indiana, Ethan ou Barbie (capazes de viajar por diferentes mundos sem mexer um fio de cabelo ou sofrer uma dor num dos joelhos).

Mas a identificação com Rabiye e Docke é bem mais fácil de conseguir. São feitos de luta e de lágrimas, de riso e de esforço. Como nós.

Murat Kurnaz é um jovem turco a viver na Alemanha e que decide ir estudar para o Paquistão. Na sequência do 11 de Setembro

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Carla Coelho

acaba por ser preso e entregue aos norteamericanos, que o enviam para Guantanamo. Em mais de 1000 dias de cativeiro existe apenas uma carta que consegue fazer chegar à sua mãe. O resto é silêncio. Não há acusação, não há advogado, não há juiz. Não há factos indiciados e muito menos provados. Há um período de detenção que foi longo e que apenas não foi maior porque Murat tem a sua mãe, Rabyie Kurnaz, interpretada de forma comovente por Meltem Kaptan. É ela quem escreve cartas, vai no encalço de governantes e encontra o advogado Bernhard Docke (Alexander Scheer). Com ele, enceta uma luta judicial que a conduzirá ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América.

​O filme é marcado pela tenacidade e pela alegria de viver de Rabiye Kurnaz, movida por uma fé insuperável de que reencontrará o seu filho. Através da sua luta encontramos uma reflexão sobre as conquistas civilizacionais em que nos apoiamos. O direito a julgamento para apurar

da existência ou não de responsabilidade, o direito a um tratamento humano e justo mesmo quando sobre nós paira a suspeita de sermos um “cidadão incómodo” e o direito a um pedido de desculpas.

Ao longo de quase duas horas acompanhamos a luta desta mãe e do seu advogado, testemunhando também a forma como desenvolvem entre si uma relação de amizade que introduz leveza numa história que tem tudo para nos fazer deitar umas lágrimas (a mim, pelo menos, fez-me chorar por duas vezes, o que achei bom, pois chorar pelas injustiças sofridas pelos outros testemunha que o cinismo não nos entupiu ainda os canais cardíacos).

​No fim, fica esta nota: na actualidade há ainda trinta e nove pessoas presas em Guantanamo, sem julgamento, passados que estão mais de 20 anos sobre o 11 de Setembro. Pensando nos biliões de pessoas que existem no mundo parece pouco. Para cada uma delas é o absoluto. Sem fim à vista.

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PORTUGAL REJUBILOU

Não, Portugal católico sentiu-se um só. Confesso que até eu me senti envolvida e com sentido de missão, vontade de mover montanhas.

A simplicidade das verdades ditas, das palavras escolhidas e certeiras e aquela via sacra dos jovens, arrancou-me do entorpecimento e fezme perceber que não estou sozinha na maneira de pensar os dias. Há muito Mundo a pensar e sentir o mesmo, muito Futuro com os olhos postos nos governos atuais, a exigir mudanças e a perceber que estamos a prosseguir num caminho que nos leva ao egocentrismo, à falta de visão, ao egoísmo de manter o nosso círculo intacto, não percebendo que o nosso depende dos outros e tudo se conjuga para que os outros dependam de nós.

“Como uma Força, uma Força que ninguém pode parar” como dizia a cantar, a propósito do futebol, a Nely Furtado num Mundial de que já não lembro a data.

E digam o que disserem, independentemente dos lucros, dos gastos, das mais valias, da fé, da falta de fé, de religiões paralelas oblíquas ou coincidentes… 1,5 milhões de pessoas sentiram-se unidas, mostraram vontade, sorriram, saudaram, cantaram, mostraram-se ao Mundo, não tiveram medo

São poucos, são! Muitos, a maioria, jovens, e acreditam em algo mais forte, mais modificador, esquecem que é a sua vontade que modifica. E senti que se quisermos mudamos o Mundo e não deixamos que nos adormeçam, nos mintam, nos iludam, nos calem ou nos ignorem.

Se quisermos sentimos ganas de fazer, e fazemos!

É como no futebol…. Cerca de 25 Estádios de Futebol estiveram em uníssono, com a mesma força do querer, disseram do seu sentir e da sua vontade. E nem precisavam de palcos.

Em Lisboa. Lisboa a cidade dos sonhos, dos jovens com sonhos, que querem realizar, a quem prometem e a quem falham, encheu-se de coragem.

Basta querer para ser… e para ter?! Não basta se não houver vontade política.

A verdade é que, a pretexto de um acontecimento marcante se construiu e modificou com dinheiros públicos, se ofereceu ao convidado e visitante do melhor que tínhamos e não tínhamos.

E eu não quero ser como os que criticaram Maria Madalena que ungiu os pés de Jesus com um óleo caro e os limpou com os seus

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA

cabelos… não gosto dessa figura mesquinha de quem critica por inveja e incapacidade de fazer… O que eu quero mesmo dizer é que não desconhecemos a dificuldade que a maioria daqueles que serão o futuro, para quem se fez a JMJ, estão a viver, na tentativa de organizar a vida, ter casa, constituir família e, ter um mundo onde possam Ser.

Há que perder o medo e dizê-lo sem paninhos quentes. Já se fizeram as contas, já se percebeu que os jovens, os que foram chamados a fazer, a construir, a unirem-se (uma grande parte deles), ganha mal, não consegue arrendar uma casa quanto mais pagar uma hipoteca ao Banco…têm uma Universidade que os pode encurralar. E sentem-se encurralados porque nem todos têm pais ricos, ou a sorte de um emprego lá fora…sim, porque “lá fora, ganha-se bem”.

Podemos fazer jornadas para a Juventude, movimentar dinheiros públicos “quando é preciso”, criar espaços a pretexto quando a visão é como a de José Sebastião de Carvalho,… mas se os dinheiros públicos não servirem para mudar o rumo da economia …. de nada servirá ter assistido à via sacra que os jovens nos ofereceram e dizer que foi fantástico…

Eles os jovens e nós que lhes queremos um futuro, nós que fizemos tudo para que o tivessem, nós cujos pais fizeram uma revolução, cujos avós assistiram e sobreviveram a uma guerra, nós que não queremos mais guerras e vivemos uma pandemia, que assistimos a guerras sentados no sofá da sala ou ao almoço no ecrã do telemóvel que não desligamos como se fosse uma continuação do nosso pensamento,… nós teremos rejubilado… mas não acordámos.

Podia repetir aqui várias frases feitas, antigas… Ficou-me a do Papa Francisco: “Não devemos

ter medo de nos sentir inquietos, de pensar que tudo o que possamos fazer não basta. Neste sentido e dentro duma justa medida, estar insatisfeito é um bom antídoto contra a presunção de autossuficiência e contra o narcisismo.” Diria ainda contra manipulações, enganos, costumes, silêncios, domínios, linhas de politicamente correto….e obediências cegas, indiferenças… inércias.

Estamos à espera de quê para fazer Juntos? Estamos à espera de quê para mudar rumos? De outras jornadas da juventude?!

Não tenham Medo o Futuro fazêmo-lo nós, Todos. Façam de conta que a Vida é, ironicamente, um estádio de futebol, construam a mudança, não esqueçam que somos os donos dos nossos destinos.

As palavras de Francisco, que podia até nem ser Papa, falam de muitas verdades. Esqueçam, os que não são católicos ou tendem a criticar tudo mas nada fazer, que ele é Papa e vejam se não tem razão.

Ah que não se opôs aos gastos! Mas podia?! Que incidente caricato seria imiscuir-se na orgânica, na vontade política de um País. Ridículo pensar que o podia ou devia ter feito. Francisco veio, quem quis foi… tudo o que possam especular fica para além disso não é da conta dele… Acordem!

Não é no que nos disse ou fez dizer e sentir que está o que nos desagrada. A vinda de Francisco é só um alerta. Quem tiver ouvidos que ouça e olhos, que veja. Só não realizamos nem exigimos a mudança se não quisermos.

Bem vindos os homens e mulheres de boa e Muita vontade..

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Fotografia retirada do site da SAPO MAGG

Ana Gomes

O trabalhador fazia a gestão do seu tempo, incluindo, obviamente, períodos de repouso. O tempo de trabalho alternava com inúmeras pausas, vividas em múltiplas

ocasiões: as refeições, a sesta na época das colheitas, as deslocações, os encontros, a pausa para «beber um trago de vinho» (…) estes momentos de repouso raramente eram individuais. Alain Courbin, A história do repouso, trad. de Sandra Silva, 2023, Quetzal

E O MAR LOGO ALI

PAUSAS PARA CAFÉ

O autor refere-se ao trabalho do artesão e do agricultor, ao mesmo tempo que adianta que até meados do séc. XX havia, nesse meio, um desprezo pela ociosidade, geralmente considerada pura preguiça e a partir de 1870, alerta-se para os efeitos nefastos do excesso de trabalho, o risco de esgotamento e da fadiga nervosa e intelectual (…).

Isabel acorda antes das seis. Para quem não sabe, em pleno inverno, o sol mostra-se duas horas depois. A estrada que a conduz até à cidade onde é Juíza é paralela ao equador, uns graus acima, mas nunca vê o sol a aparecer, porque a deslocação que faz é exatamente no sentido nascente poente. Por vezes, é como se estivesse a ver um grande filme pelo espelho retrovisor, sem poder olhar para trás, por razões de segurança. Já pensou em mudarse só para todas as manhãs fazer a viagem no sentido contrário e assim poder contemplar um espetáculo da natureza que é sempre certo.

A Juíza entra no gabinete, revê o que a espera nesse dia e mergulha nos processos, nas audiências, nos dramas, sem parar, até à exaustão que a apanhou em maio.

Em setembro, regressada e, espera ela, recuperada, põe em prática alguns conselhos de gente sábia:

1Levantar-se da secretária, pelo menos, de duas em duas horas. Contempla a vista e procura algo que lhe capte a atenção para, literalmente, se distrair do que estava a fazer.

2A meio da manhã, oferecer um café a uma colega e, por vezes, sair para uma caminhada breve até à esplanada próxima.

3À tarde, não tendo audiências, uma colega oferecer-lhe o chá das 5, um pretexto para uma conversa.

4Todos os dias, o alarme do relógio a soar às 18h. É um ruído que a lembra de que está na hora de sair e de desfrutar do que resta do dia.

5Sem exceção, não levar trabalho na mala.

Regressa a casa já o sol passou, como de manhã, pelo espelho retrovisor do automóvel.

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PANO PARA MANGAS

Margarida Vargues

CRÓNICAS

DA AUTOESTRADA

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Viajar pela A2 no pico do Verão pode ser um pesadelo, uma aventura, uma tragédia ou uma verdadeira comédia. Num troço que varia entre as duas horas de distância e as seis horas de desespero tudo pode acontecer!

Antes de atravessar o rio, em direcção ao Sul, ligo o Waze. Não para não me perder - se bem que algures ali pelo meio, os mais distraídos e incautos podem ir parar a Badajoz em vez de seguir até ao Algarve... - mas para receber os avisos de acidentes, congestionamento, polícia e radares, pois nada mais desagradável que receber uma multa em casa por um pequeno esticão no acelerador. É desnecessário e perfeitamente dispensável, pois o valor ainda cobre um dia numa das ilhas barreiras com direito a mar-táxi, uma palhota na primeira linha da costa e um repasto do mais fresco marisco num dos restaurantes da moda (se lá forem lembrem-se de pedir uns filetes de peixe aranha e uma conserva caseira de sarrajão - é de comer e chorar por mais!).

Mas voltemos ao asfalto.

Nesta época pode ser complicado fazer uma paragem pelo caminho, pois as estações de serviço conseguem, em certos dias estar lotadas, porém há necessidades que não esperam pelo destino - como o depósito do carro quase a entrar na reserva - e sou obrigada a parar. Abasteço e estaciono um pouco mais à frente. Já agora tomo um café, que sempre me ajuda a manter desperta.

Assim que entro na cafetaria, os meus radares entram em estado de alerta, pois a fauna é bastante diversificada e uma pessoa tem de se adaptar rapidamente às circunstâncias. Parece que fugiram todos do seu habitat, mas trouxeram-no consigo e percebo algum desconforto em algumas criaturas obrigadas a imiscuir-se nesta selva desconhecida. Apresentam sintomas de algo em comum: férias!

Começo por ir à casa de banho, que logo à entrada, tem a promessa de ser “um novo conceito de casa de banho”. Deixa ver o que há de novo... Tem sanitas em cubículos individuais? Sim. Corre água das torneiras? Sim. Tem sabonete líquido? Afirmativo. E onde e como secar as mãos? Também! Não entendo o conceito de “novo conceito”. Só se for o cantar dos passarinhos que hoje não se ouve... Com os 46 graus lá fora talvez o som das cigarras fosse mais apropriado.

Dirijo-me, então, para a zona de self service, onde continuo a observar. Peço um café e sento-me. Estou sem pressa. Vejo quem entra, quem sai, quem circula

indeciso entre uma sande de presunto e um croquete, quem espera por alguém que, tal como eu, foi descobrir o novo conceito de casa de banho. Secretamente desejo-lhe boa sorte, pois eu não me apercebi da existência de nenhuma novidade.

Que pena! No fim do meu demasiado curto café lamento não ter comigo um caderno e uma lapiseira. Para quê? - perguntarão. Para quê?Respondo eu reiterando a questão, alterando apenas o tom da mesma. Para mapear todas estas pessoas que circulam à minha volta. Sim, mapear, no sentido de as colocar no mapa de destino de férias. E isso é possível? Com alguma certeza, sim!

Basta ver com atenção e percebe-se, quase de imediato, se vão sair da A2 em direção à Comporta ou se fazem a autoestrada até ao fim. Das que me irão fazer companhia, consigo, ainda, dividi-las: as que vão para um apartamento “na” Quarteira ou as que vão para Vilamoura ou Quinta do Lago e Vale do Lobo. As que vão para um parque de campismo e as que têm como destino Tavira, Cabanas e Pedras. Então e não vai ninguém para a Praia Verde? Sim, com certeza, mas esses apanhoos um pouco mais abaixo, na estação de serviço de Almodôvar, ou quiçá vêm de Évora, passam por Beja e às páginas tantas viram à esquerda em direção à Via do Infante a fim de poupar uns trocos e uns quilómetros.

Há todo um desfile de moda - que vai dos longos kaftans aos vestidos de florzinhas mais ou menos molengões - , passando pelas espadrilles e os chinelos do Lidl - , de atitude - o queixo mais ou menos elevado, os óculos escuros no interior, a forma de andar e de gesticular - , de vocabulário e tom de vozaltivo, alto ou em surdina -, sem não esquecer os carros no estacionamento. Quanto aos carros, fico sempre com a sensação de que há pessoas que trocam de veículo antes de partir para férias. Será algum ritual com o intuito de movimentar a economia? As matrículas e os modelos denunciam a novidade. Não percebo nada do assunto, como tal não vou por aí…

Levanto-me. Apetece-me desejar a cada uma daquelas pessoas umas boas férias que, certamente, são desejadas e merecidas. No parque de campismo, no triângulo dourado ou na chiqueza alentejana o que interessa é que sejam bem vividas, que vão e que regressem e que sejam felizes.

Boas férias!

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Faz anos….

Em Agosto morre-me sempre alguém…

O Chiado quando era pequena, Diana, já eu era a mãe de hoje…..

E tu….. há 32 anos… ainda eu não era mãe, e tu não viste os netos... e parece que foi hoje................

Era um domingo.....todos os sons silenciaram e os movimentos ficaram surdos mas prosseguiram o seu caminho....

Foi de honra e com salvas o momento, mas apenas havia frio apesar de ser Agosto.....

Foi há 32 anos... e havia frio à volta... parece que foi hoje…

Espreito pela vidraça e só há memórias e ainda há luto

Porque o luto não é isto nem aquilo…é muito pessoal É do tamanho de quem parte... Há luto e há luto… não deve ser assim ou assado

Ninguém nos prepara para morte, seja a nossa ou a do Outro…falhas da nossa cultura ocidental despida de espiritualidade

O luto é uma companhia estranha que nunca se ausenta, às vezes vive de memórias…é aí que dói menos. …ou não…

ACCB

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Ana Cláudia Albergaria

Socióloga e investigadora com um doutoramento na área da Inteligência Artificial Ética e Direitos Humanos. Autora de quatro obras de poesia, coautora de várias antologias e declamadora de poesia. Dinamizadora de cursos de escrita criativa, oficinas de escrita de poesia para fado, exposições individuais de pintura e saraus de poesia encenada.

Contacto: homemdealbergaria@hotmail.com

IA E DIREITOS HUMANOS POR UMA NOVA HUMANIDADE

A “Declaração Universal dos Direitos Humanos” adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 1948, continua a ser um dos documentos mais importante jamais redigido pelo Homem. Não porque tenha edificado a verdadeira revolução de Paz e de Justiça que pretendia impulsionar, após a II Guerra Mundial devastadora e indigna, como todas as guerras, independentemente da sua dimensão territorial. Essa revolução, como sabemos, ainda terá de acontecer! Mas sim, porque se consubstancia em torno de ideais edificantes de uma verdadeira Humanidade, resultantes do diálogo entre os povos, relativamente aos quais, dramaticamente, continuamos ainda hoje numa luta inglória e desigual para os alcançar.

Em pleno séc. XXI, tirando da equação uma minoria privilegiada nas quais se concentra a maior parte poder económico do mundo e na qual se mantém uma espécie de cegueira (in) consciente e uma inércia alheia ao sofrimento em seu redor; a maioria dos seres humanos vê claramente, a cada dia, o quão incapazes fomos de concretizar esse sonho da equidade, de liberdade e da justiça. Quer porque continua a sentir na própria pele a pobreza, a exclusão e as desigualdades; quer porque vê diante dos seus olhos, a todo o momento, as feridas e as dores da contemporaneidade. Muito mais agora, na Era Digital em que vivemos.

A atual revolução tecnológica, pelo facto de se desenvolver de forma não

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linear, profundamente disruptiva e a uma velocidade tão elevada, torna difícil, senão impossível, acompanhar, avaliar, prever e agir proactivamente sobre os seus impactos, sobretudo a nível internacional e, consequentemente, definir estratégias de prevenção de riscos, nomeadamente em termos sociais, políticos, regulamentares e educacionais.

A Inteligência Artificial (IA) assume a hegemonia, relativamente a outras ferramentas que vão surgindo, embora sejam cada vez mais interdependentes e cooperantes entre si. Sociologicamente, podemos incluir os impactos decorrentes do desenvolvimento da IA, no âmbito dos “Fenómenos Sociais Totais”, na medida em que está a transformar profundamente as práticas e representações dos seres humanos e, de forma irreversível e interdependente, todas as dimensões sociais:

família/agregados sociais; profissões/carreiras; religião/espiritualidade; relações humanas/ sociabilidades; cultura/ lazer; educação/formação; politica/cidadania; relações diplomáticas/armamento/guerra/ defesa; sustentabilidade planetária;

entre outras que começam a emergir devido aos processos de reconfigurações sociais e identitários em curso, decorrentes da progressiva transição do mundo da vida off-line para o on-line .

Vivemos a transição para um novo paradigma de sociedade. Tanto mais quanto continuamos a adotar os Direitos Humanos como a grande tela sob a qual todos estaríamos protegidos. Um mundo cada vez mais digitalizado, híper conectado, onde o espaço e o tempo surgem camuflados de universalidade e de ampliação, deixando o Ser Humano sem referenciais estruturantes da sua própria natureza reflexiva e relacional. Perdemos parte do “chão” que nos sustentava algum sentimento de segurança, em troca de cabos de fibra ótica que povoa o nosso subsolo e os nossos mares e por onde corre a alta velocidade toda a nossa história, as nossas memorias, o nosso “perfil” - que não é mais nosso.

Perdemos a importância da relação em copresença, em troca de interações mediadas por interfaces sem expressividade. Perdemos a profundidade e as sensações do lado sensorial e intuitivo do “agora” em troca da - quase divina – sensação de omnipresença superficial e ambivalente do mundo virtual. Abdicamos do direito à liberdade e à privacidade em troca da segurança inatingível – que se vê reduzida a

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IA e Direitos Humanos

uma espécie de “estado de espirito”, ou a um “ideal utópico”, pouco mais que isso. Cada vez é mais difícil distinguimos uma opinião de um facto; a informação do conhecimento; a verdade da mentira. Vivemos na “Era da pósverdade” e continuamos em “Guerras”.

O palco da vida, agora, é outro. É um palco em constante movimento. O Ser Humano, num contexto da “Modernidade Líquida” (sugerida por Sigmund Bauman) ou numa “Modernidade Reflexiva” (sugerida por Giddens), sente-se obrigado a constantes (re)adaptações, devido ao caracter não estático das instituições. Por isso, como nunca antes, está a ser convidado a refletir profundamente sobre a sua identidade, a sua natureza humana em todas as suas dimensões - bio-psico-social-espiritual - os seus direitos e as suas responsabilidades.

No entanto, o maior desafio que a IA nos apresenta é o de, pela primeira vez na historia da humanidade, termos de refletir sobre a nossa sobrevivência enquanto membro de uma espécie e sobre o nosso lugar nesse admirável mundo novo – criado por nós, mas relativamente ao qual poderemos estar a perder o controlo. Porque, de facto, nunca nenhum artefacto criado pelo Homem chegou, como a IA, tão próximo do que consideramos ser a “Inteligência Humana”, embora continue inigualável.

A União Europeia tem assumido um papel fundamental na defesa dos Direitos Humanos na Era Digital e, em particular, no que diz respeito ao esforço de orientações éticas e tentativas de regulamentação da IA Responsável, através de alguns relatórios e documentos orientadores no sentido da mesma ser concebida tendo em consideração as normas morais, os valores e a salvaguarda dos Direitos Humanos, tendo por referência : os direitos fundamentais estabelecidos nos Tratados da EU; a Carta dos Direitos Fundamentais da EU e o Direito Internacional em Matéria de Direitos Humanos. Os critérios que a Comissão europeia enuncia e que devem ser garantidos para que a IA seja considerada Ética são: Controle Humano / Autonomia humana; Solidez Técnica e Segurança / Prevenção de danos; Privacidade e Governação de Dados; Transparência (algoritmos

éticos); Equidade; Responsabilização estar social e ambiental. No fundo, trata-se de priorizar as questões éticas que devem ser incluídas nas diferentes fases do ciclo de vida da Inteligência Artificial, se coloquem em causa os Direitos Humanos , sendo já considerados em maior risco os seguintes: Artº3-Liberdade e Segurança pessoal; Artº6 - Personalidade Jurídica; Aº 7Não discriminação; Artº12 - Privacidade; Artº17 Propriedade ( incluindo a intelectual); Artº 19 - Liberdade de expressão e opinião; Artº23Trabalho/proteção no desemprego/condições equitativas e satisfatórias no trabalho; Artº25Segurança no desemprego, invalidez e velhice e Artº26- Educação.

Perante os novos desafios e alguns dilemas tecnológicos e sociais face ao desenvolvimento de IA Ética ou Responsável, novos Direitos vão sendo equacionados.

Sobretudo Direitos Neuronais – algo inimaginável num passado recente. Quer porque alguns dos Direitos “tradicionais” não são facilmente transferíveis, ou adaptáveis do mundo off-line para o on-line, devido à perda de referencialidade decorrente das novas condições objetivas onde a vida e as relações entre as pessoas acontece; mas também porque novas realidades, novos conceitos, novas relações e perceções das experiências vão emergindo – como as decorrente do “Metaverso”, da IA generativacomo é exemplo o chat GPT; dos pressupostos inerentes aos movimentos “Transhumanistas” e “Pós-Humanistas” e, embora utópico para uns e possível para outros, da IA vir a atingir a “Singularidade”. Ou seja, possuir a consciência da sua própria consciência e, quem sabe, adquirir ela própria Direitos, algo que alguns peritos em IA já referem como provável, da mesma forma que já reconhecemos os Direitos dos Animais.

Embora não consigamos prever objetivamente todos os impactos negativo da IA no Direitos Humanos, começamos já a sentir alguns deles e a considerar a existência de novos riscos com algum grau de inevitabilidade: aumento do desemprego e da qualidade do mesmo; fragilização das relações sociais / saúde

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desemprego quer pela via da dificuldade de, em tempo útil, desenvolvermos a literacia digital /requalificação/educação digital e tecnológica em determinados grupos etários/ públicos específicos, quer também pelo acesso desigual à internet e aos recursos tecnológicos nos países menos desenvolvidos; hegemonia de algumas empresas tecnológicas e de alguns territórios acentuando a predominância dos interesses económicos sobre os sociais; fragilização das democracias/estados de direito devido ao efeito “Tunel”, “Bolhas” de informação que se criam nas redes sociais, que podem resultam em comportamentos manipuladores e polarizante; utilização de dados biométricos através de câmaras de vigilância, para rotular os cidadãos e agir sobre eles invadindo a sua liberdade, privacidade e segurança, assim como utilização de sistemas de predição ou leitura de estados emocionais; diminuição da capacidade reflexiva e criativa do Ser Humano ( pela crescente dependência da IA, nomeadamente da generativa inerente a ferramentas como o Chat GPT); utilização da IA em contextos de guerras/ armas autónomas, entre muitos outros riscos que poderíamos elencar.

Perante estes novos riscos, alguns Novos Direitos começam a delinear-se como fundamentais, tais como: direito a não estar conectado; à não manipulação tecnológica/digital; a ser criativo ; a aceder a ideias/teorias diferenciadas nos motores de busca; a ser julgado por humanos; à liberdade de pensamento /cognitiva (tomar decisões livremente e em consciência); à integridade mental (neuro tecnologia); direito a um ambiente seguro, limpo e saudável.( este último enunciado pelo Conselho dos Direitos Humanos da ONU) e o Direito ao esquecimento (Incluído na Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital, Lei n.º 27/2021, de 17 de maio - Diário da República n.º 95, 1.ª série, de 17.05.2021).

Há medida que vamos questionando os limites desta Nova Revolução Tecnologia, vamos

refletir sobre o futuro que queremos edificar.

Talvez tenhamos de voltar atrás, repensar conceitos como: “IA Ética”, Algoritmo Ético”, IA Responsável”; “IA Transparente” e “Confiável”. Porque desde logo, quem pode ser ético, responsável e confiável somos todos nós, os seres humanos.

Talvez o conceito de “Inteligência Artificial”, pela sua natureza “auto publicitária” tenha, intencionalmente, condicionado a forma como fomos contribuindo para aquilo em que ela se tem tornado e como nos relacionamos com ela. Foi com o contributo de todos nós, com os dados que fomos dando (quase sempre de forma pouco ou nada esclarecida) ao longo dos últimos anos, que se chegou a ferramentas de machine learning / deep learning/ Ia generativa, entre outras… – precisamente as que subentendem maiores dilemas, sendo o principal deles a incapacidade tecnológica de serem totalmente transparentes e explicáveis, devido à “BlackBox” inerente à sua função de autoaprendizagem e auto programação contínua.

A pós-modernidade, que nos dilatou as pupilas com promessas de libertação e de felicidade, devolve-nos agora um certo desencanto, qual encenador que não soube escolher bem o ator principal para subir ao palco na peça do desenvolvimento civilizacional.

O Ser Humano tem de se assumir como o dramaturgo, e reescrever um texto imbuído de ética e de valores humanos universais (tal como aconteceu em 1948), mas tem de ser, ao mesmo tempo, quem decide o que vai acontecer em palco e, mais do que isso, tem ele mesmo de subir ao palco e encarnar, sem medo e confiante de todo o seu potencial criador, o papel de Ator Principal. ´

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CARO SEPÚLVEDA,

Já não me lembro em que momento é que nos deixaste. Sei que foi durante a pandemia e infelizmente, devido a esta mas enfim, as tuas fábulas não me saem da cabeça.

Estive num local onde poderias fazer parte e de onde, com sorte, se avistam tantas baleias como aquelas que descreves nos teus livros. Aliás, nunca me esqueci da história da baleia branca, na qual esta se torna a justiça implacável dos mares. Um Moby Dick na versão da baleia, onde finalmente se compreendem as suas razões face às razões dos homens, sendo impossível não aderir às suas causas (da baleia, não dos homens).

Não há maldade nas tuas fábulas, com excepção da maldade dos homens, claro. Mas já contamos com ela, muitas vezes, durante

a nossa vida, por isso não podemos dizer que ficamos surpreendidos.

Também me lembro do cão chamado fiel, em que nada do que este fazia o era sem ser dedicado ao homem que dele cuidava. O seu amigo.

Estranha forma de vida, sem dúvida, aquela que leva o melhor amigo do homem a ser isso mesmo, apenas o seu melhor amigo, dando tanto a troco de tão pouco.

Não sei se te recordas do caracol chamado rebelde e que aprendeu a importância da lentidão. O mesmo conseguia sempre alcançar os seus intentos mas sempre muito devagar, tal como é próprio dos caracóis.

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João Correia CANTINHO DO JOÃO

E sim, não posso deixar de falar da gaivota Ditosa, a qual o gato Zorbas ensinou a voar. A mesma sentia-se diferente, mas Zorbas e todos os seus amigos gatos ensinaramlhe que era isso mesmo que os fazia gostar dela. As suas diferenças. Ensinou-a bem mais do que apenas a voar. E a nós também.

Sinto a tua falta e sou a crer que todos nós padecemos desse problema pois, aqui na terra e por uns momentos, os animais deixaram de falar.

Seja como for, e como já tive oportunidade de o dizer em tempos, estou certo que o velho que lia romances de amor, o cão chamado fiel, as baleias que se deslocam pelas correntes de Humboldt, e por fim a gaivota cujo gato ensinou a voar estarão

neste momento a fazer-te companhia num céu povoado de fábulas tão bonitas como aquelas que nos deixaste.

Deixo-te apenas um recado, se algum pensares em regressar à terra, por favor não o faças anónimo. Ninguém quereria saber como é que o fizeste pois, a alegria de te rever e a possibilidade de continuares a escrever seriam mais do que razões para todos se esquecerem dos milagres da ressurreição e se focarem na amizade do fiel, na resiliência do rebelde e nos ensinamentos de Zorba.

Pensa nisso. Ficamos à tua espera.

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INVESTIGAÇÕES INCONCLUSIVAS

CASOS NUNCA RESOLVIDOS

A morte do Secretário-Geral das Nações Unidas Dag Hammarskjöld em 1961 em resultado da queda do avião em que seguia tem sido objecto das mais variadas teorias, algumas das quais apoiadas na ideia de que o avião teria sido derrubado em resultado de acção humana com motivações políticas.

As circunstâncias internacionais que rodeiam a sua morte são complexas, o que tem contribuído precisamente para o surgimento de uma grande diversidade de interpretações relativamente ao que efectivamente sucedeu.

O Congo Belga tinha-se tornado independente em 30 de Junho de 1960, sendo agora designado como República do Congo e informalmente, por identidade de designação do Estado sucessor ao Congo Francês, como Congo-Léopoldville, em contraposição ao Congo-Brazzaville.

Alguns dias depois da obtenção da independência, a província do Katanga tinhase separado do novo país, sob a liderança de Moise Tshombe e com o apoio de colonos e interesses económicos belgas.

Ainda em Julho, em resposta a um pedido do recentemente eleito Primeiro-Ministro, Patrice Lumumba, o Conselho de Segurança das Nações Unidas tinha adoptado a sua Resolução n.º 143, nos termos da qual a

Bélgica era instada a proceder à retirada das suas tropas e ao organismo internacional era atribuído o dever de assistência militar às forças locais para que estas pudessem ‘plenamente prosseguir as suas tarefas’.

Tinha sido então criada uma força de intervenção autorizada a actuar em legítima defesa mas que acabaria por se envolver activamente na supressão da secessão do referido território.

Foi neste contexto que Dag Hammarskjöld acordaria um encontro com Moise Tshombe, a realizar-se a 17 de Setembro de 1961 em Ndola no território neutro da Rodésia do Norte (actual Zâmbia).

Pretendia-se a obtenção de um cessar-fogo entre as partes combatentes. Seria perto de Ndola que o avião DC-6B da companhia Douglas no qual o Secretário-Geral viajava se viria a despenhar.

Seguiram-se a este desenvolvimento vários inquéritos, realizados pelo Conselho de Investigação da Rodésia, pela Comissão de Inquérito da Rodésia e pela Comissão de Investigação das Nações Unidas.

No entanto, nenhum deles chegou a qualquer conclusão quanto às causas da queda do avião, não se tendo encontrado

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CARLOS PINTO DE ABREU
Dag Hammarskjöld

indícios da utilização de uma bomba ou de um míssil ou até de pirataria aérea.

Se estas iniciativas se viriam a provar inconclusivas, a verdade é que cedo se instalaria a suspeita de que o suposto “acidente” tinha sido o resultado de mão criminosa.

Uma hipótese que logo se aventou na imprensa foi a de que o avião teria sido abatido por um Fouga Magister pertencente às forças separatistas do Katanga, que tinha actuado anteriormente contra as forças internacionais e cuja fama tinha levado o próprio DC-6B a seguir um itinerário menos directo no seu trajecto para Ndola por uma questão de precaução.

Esta seria a primeira de uma longa série de narrativas que têm sido propostas e discutidas nos últimos 50 anos, sendo que a tese tradicionalmente predominante relaciona a morte de Hammersjköld com a do PrimeiroMinistro Lumumba, apoiado pela União Soviética, uns meses antes (em 17 de Janeiro de 1961), e com o pedido de demissão por parte da União Soviética do Secretário-Geral.

Analisa-a, portanto, no contexto da rivalidade americana e soviética, partindo do pressuposto de que a Guerra Fria foi a principal questão subjacente à Crise do Congo, e ligando-a à intervenção na região das agências de espionagem das potências conflituantes.

Muito significativamente, a questão da origem humana para a queda do avião seria reavivada através de uma carta escrita por dois diplomatas contratados pelas Nações Unidas e divulgada no jornal inglês The Guardian em 1992, à qual se viriam a seguir

numerosos comentários e nomeadamente dois longos artigos sobre o assunto, um da autoria de David Gibbs, politólogo, e o outro de Bengt Rösiö, o cônsul sueco em Léopoldville na altura, ambos publicados na Revista de Estudos Africanos Modernos, em Março e em Dezembro de 1993 respectivamente.

Os diplomatas alegavam na sua carta que o derrube do avião tinha sido causado por mercenários, contratados por industriais europeus que controlavam a região do Katanga.

Há um ponto interessante na descrição que os mesmos faziam, do ponto de vista de uma análise criminal desta situação, que merece ser assinalado.

Segundo eles, não tinha havido intenção de abate do avião, mas apenas a de intercepção do mesmo como forma de dar a conhecer a Hammarskjöld uma outra visão dos factos no terreno.

A ideia teria sido supostamente a de o forçar a encontrar-se com industrialistas, defensores dos interesses europeus na região, que lhe explicariam que os mercenários contratados no Katanga eram mais bem intencionados do que se pensava e lhe comunicariam a importância da defesa desses mesmos interesses, ao mesmo tempo que o impediriam de se encontrar com Tshombe, o qual teria uma visão mais conciliatória com a visão das Nações Unidas.

No entanto, um tiro de alarme disparado pelo piloto do avião interceptor – que se sabe ter sido previsto para o caso de o DC-6B se

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Investigações Inconclusivas

recusar a mudar de rota para a localidade de Kamina no Congo onde seriam mantidas as consultas pretendidas – teria supostamente levado a um descontrolo do avião e à sua posterior queda.

Esta tese parecia bem fundamentada, embora Kamina surja como um destino estranho na medida em que se localizava numa zona detida pelas tropas das Nações Unidas e embora seja implausível que não se tivesse pensado que um “sequestro” do Secretário-Geral das Nações Unidas não produziria um efeito negativo na opinião dos delegados à Assembleia Geral que iriam reunir-se em Nova Iorque no dia seguinte quanto aos mercenários.

Os autores da carta, pessoas com um grande conhecimento da situação em causa – um deles tinha sido um colaborador próximo de Hammarskjöld e o outro um representante das Nações Unidas no Katanga – baseavamse em gravações de 20 entrevistas realizadas nos anos 70 a mercenários por parte de um diplomata francês.

O politólogo David Gibbs, tendo em conta justamente as fontes, viria defender a seriedade das revelações publicadas no The Guardian, e viria explicá-las dentro de um enquadramento histórico mais vasto.

Apontava para a referência feita por um dos diplomatas a um conglomerado mineiro belga, a Union Minière du Haut-Katanga, acrescentando que na prática os mercenários teriam necessitado precisamente de uma fonte importante de financiamento.

E, de facto, os recursos de cobre, diamantes, urânio do Katanga eram explorados exactamente por essa entidade, a qual por outro lado prestava auxílio ao regime de Tshombe, fornecendo-lhe apoio político, armas e recursos monetários, sendo que aliás controlava de facto a região, tal como demonstra informação constante de relatórios norte-americanos desclassificados. Um dos aspectos em que esta ajuda mais se fazia sentir era no domínio militar, sendo que se assegurava a existência de uma força

mercenária constituída por elementos de várias origens, incluindo da África do Sul e da Rodésia do Sul.

Por outro lado, a verdade é que qualquer tipo de actuação contra a orientação seguida pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, do exercício de uma pressão forte sobre Tshombe, teria naturalmente acolhido o interesse de muitos dos colonos locais, que em muitos casos dirigiam abertamente a animosidade que tinham relativamente às Nações Unidas contra o seu representante máximo.

O desagrado que sentiam por Hammarskjöld não resultava unicamente do cargo que detinha. Corriam rumores, reafirmados nos meios de comunicação belgas, de que ele se movia por interesses pessoais não declarados e que, no fundo, a sua actuação era ditada pelas ambições de um grande grupo de companhias mineiras suecas ou, numa outra variante, suecas e americanas. Tratava-se de uma visão segundo a qual aquilo que estava aqui em causa era um conflito de interesses pura e simplesmente comerciais.

A nova informação divulgada no The Guardian dava agora acolhimento a esta interpretação, fornecendo indícios de que os interesses mineiros belgas eram responsáveis pela morte de Dag Hammarskjöld.

Segundo uma tal versão, estes tinham tentado reter os investimentos lucrativos no Katanga e tinham assim estabelecido um regime fantoche sob a liderança de Moise Tshombe, que tinha permitido à Union Minière a preservação de um controlo de facto sobre os recursos económicos. No entanto, o seu domínio era ténue, tendo em conta a forte oposição internacional a um caso tão óbvio de neocolonialismo, pelo que esses interesses se sentiam ameaçados pela força das Nações Unidas no Congo e em especial pelo Secretário-Geral, o qual liderava essa operação.

A morte de Hammarskjöld passava agora a ser entendida de uma outra forma, no

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contexto específico da concorrência entre companhias mineiras ocidentais pelo seu acesso ao Katanga e não tanto como uma manifestação da rivalidade entre o bloco ocidental e o bloco comunista.

O próprio David Gibbs observava esta mudança de entendimento como um sinal dos tempos, como a expressão da passagem para um período posterior à Guerra Fria em que os clichés dessa era podiam mais facilmente ser postos de lado em favor da exploração de novos temas relativamente ao estudo da intervenção estrangeira em África. Existem várias outras teorias acerca do sucedido, como aliás bem quis assinalar Bengt Rösiö no seu artigo escrito na senda do de Gibbs.

Alguns dos mercenários franceses no Katanga alegariam terem estado por trás da morte de Hammarskjöld, sendo que refeririam que um mercenário tinha conseguido penetrar no DC-6B, disfarçado de membro da segurança das Nações Unidas, e que teria feito o avião cair uns minutos antes da aterragem prevista.

Uma tal versão gera naturalmente grandes dúvidas, na medida em que sugere a participação de alguém disposto a sacrificar-se, uma espécie de kamikaze, o que não se coaduna bem com o perfil geral de um mercenário, para além do que não se deve esquecer que estavam a bordo três membros da segurança que dificilmente teriam aceitado alguém que não conhecessem já bem.

Uma outra teoria é a de que o comandante do avião teria utilizado um dado de navegação errado – Ndolo no Congo em vez de Ndola –, mas existem variados indícios que sugerem não ter-se tratado do caso, incluindo o facto

de um tal erro ser demasiado grosseiro e comparável ao de um piloto que confundisse Genova com Genève.

Mesmo assim, e mau grado o alto grau de improbabilidade de tais explicações, deve notar-se que estas têm obtido o apoio de muitos, sendo que a insistência nas mesmas tem vindo a criar só por si suspeição enquanto indício de uma intenção de desvio da atenção em relação a outros entendimentos.

Seja como for, a verdade é que todas estas tentativas de interpretação esbarram contra a opinião dos peritos da aviação civil que consideram que a explicação mais plausível para a queda do avião – que aparentemente estaria a realizar um plano de aterragem normal, com excepção do facto de estar a uma altitude muito inferior à correcta – terá sido um erro de julgamento quanto à altitude em virtude de uma ilusão de óptica.

Mais uma vez, porém, levantam-se questões, nomeadamente quanto à razão pela qual nenhum dos quatro tripulantes no cockpit teria, durante a descida, tomado em atenção as indicações nos três altímetros existentes. E é esta consideração sobretudo que põe em causa a visão, partilhada pelos especialistas, da verificação de uma falha técnica por parte da tripulação como justificação para a perda do avião.

Em contrapartida, as circunstâncias de conflito e os testemunhos existentes apontam para uma acção criminosa de um ou de outro tipo, acção essa nunca esclarecida.

Entretanto, recentemente, foi sugerida a reabertura do inquérito.

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RENATO LOPES MILITÃO

O EFEITO SALAH

A Inglaterra apresenta das mais elevadas taxas de crimes de ódio e de discursos de ódio, encontrando-se os muçulmanos entre as principais vítimas desses ilícitos. E para essas tristes estatísticas contribuem grandemente as claques dos clubes de futebol ingleses.

Até 2017, a região de Liverpool e a claque dos Red Devils não escapavam a essa realidade. No entanto, a partir daí, esse panorama alterou-se substancialmente. No início do verão de 2017, o Liverpool Football Club contratou o avançado de origem egípcia Mohamed Salah. Foi uma das suas contratações mais proveitosas de sempre.

Até ao momento, por esse clube, Salah jogou 305 jogos, marcou 186 golos, fez 79 assistências e, no plano disciplinar, somente foi admoestado com 8 cartões amarelos, nunca tendo sido expulso. Entre muitos outros recordes e prémios

obtidos ao serviço do Liverpool F. C., o egípcio foi o melhor marcador da Primeira Liga inglesa nas épocas de 2017-2018, 2018-2019 e 2021-2022, o melhor jogador dessa Liga na época de 2017-2018, o melhor jogador do Mundial de Clubes de 2019 e terceiro melhor jogador do Mundo em 2018, sendo já o melhor marcador de sempre dos Red Devils.

Com o contributo de Salah, o Liverpool F. C. tem conseguido resultados fantásticos. Além do mais, que é muito, ganhou a Primeira Liga inglesa, aliás pela primeira vez na sua história, na época de 2019/2020, a Taça de Inglaterra na época de 2021/2022, a Taça da Liga de Inglaterra na mesma época, a Supertaça de Inglaterra em 2022, a Liga dos Campeões Europeus na época de 2018/2019, a Supertaça Europeia em 2019 e o Mundial de Clubes também em 2019.

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Sucede que Mohamed Salah é um assumido devoto muçulmano. E manifesta-o não apenas fora do campo, mas também nos jogos em que participa. Frequentemente, quando marca um golo, faz o sajdah, prostrando-se no campo, na direção de Meca, em reverência a Alá. Por sua vez, a mulher de Salah, Magi Sadeq, assiste aos seus jogos de hijab, sem o qual nunca foi vista em público, descendo por vezes ao relvado assim trajada, com as filhas do casal, a mais velha das quais se chama Makka (Meca).

A conjugação do brilhantismo futebolístico de Salah com a sua assumida e pública devoção ao islão teve consequências extraordinárias. Pouco depois da sua chegada ao Liverpool F. C., quer entre os adeptos deste clube, quer em todo o Condado de Merseyside, onde se situa a cidade de Liverpool, a islamofobia decaiu enormemente. Nesse Condado, em muito pouco tempo, a convicção de que o islamismo é compatível com os “valores britânicos” aumentou cerca de 5 pontos percentuais. De igual modo, a taxa de crimes de ódio rapidamente começou a registar aí descidas acentuadas. E o número de tweets antimuçulmanos produzidos por adeptos dos Red Devils passou para cerca de metade.

A claque do Liverpool F. C., que antes entoava cânticos islamofóbicos, quando a sua equipa, em fevereiro de 2018, no jogo da primeira mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões, derrotou F. C. Porto por 0-5, dedicou a Salah o seguinte cântico:

Se ele marcar mais alguns

Eu quero ser muçulmano também.

Se ele é suficientemente bom para si, Então também é suficientemente bom para Sentadomim.numa mesquita, É onde eu quero estar.

E outros cânticos semelhantes têm sido

entoados por essa claque durante os jogos dos Red Devils, destacando-se o de agradecimento a Alá pelo envio de Salah:

Mohamed Salah

Um presente de Alá.

Este fenómeno, designado por efeito Salah, tem sido objeto de vários trabalhos científicos, sobretudo nos domínios da sociologia e da criminologia. Naturalmente, as abordagens diferem e as conclusões também, não sendo esta a sede para as aprofundarmos, sequer identificarmos. Todavia, parece não haver grandes dúvidas de que a proeminência da identidade muçulmana de um extraordinário futebolista muçulmano reduziu substancialmente o preconceito em relação aos muçulmanos em geral. Donde que, independentemente da bondade, ou nem tanto, das propostas para o efeito, é seguramente de concluir que o racismo, a xenofobia e outros sentimentos discriminatórios têm “cura”.

É, pois, de apostar na investigação e implementação desta, ao invés de, também neste domínio, se utilizar o Direito Penal como instrumento de prima ratio, muito menos de sola ratio. Reflexão que vem a propósito da anunciada intenção do atual Governo português de propor à Assembleia de República mais uma – a quinta – alteração ao art. 240.º do Código Penal, o qual tipifica a discriminação e o incitamento ao ódio e à violência, também ela, como todas as anteriores, ampliadora deste tipo de ilícito.

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LICÍNIA QUITÉRIO Os Olhos de Aura

Aura olha os jogadores de cartas, reformados de profissões, de trabalhos, com os filhos grandes que já lhes dão netos. Reconhece os rostos de alguns deles, de quando trabalhavam e tinham filhos pequenos e fumavam com a beata presa entre o indicador e o polegar, de cotovelo apoiado no balcão do café, com o bagacinho da manhã para aquecer a coragem de mais um dia na oficina da fábrica, antes da falência que cedo demais os enxotou para o parque, a jogarem as cartas, a jogarem o resto das vidas, ali a batêlas, na sueca das tardes, que antes eram de Domingo, hoje em dia para eles é sempre Domingo, por isso Aura os vê ali e os reconhece, os mesmos rostos, mais franzidos, escurecidos.

Onde estarão as mulheres destes jogadores, o mais certo é estarem a tomar conta dos netos, da roupa, da loiça, para que a casa não desabe, os netos cresçam, o mundo prossiga. Quem lhes dera serem homens, neste momento estariam no parque, a fazer bluff, a fazer de conta que o mundo é aquela mesa e os bancos de pau, a levantar os olhos para as mulheres boas que por ali passam, cada vez mais descascadas, cada vez mais desavergonhadas, cala a boca, Amaro, estão verdes não prestam, e todos a rirem, com pouca vontade. Foi o que Aura ouviu, ou julgou ouvir, e o resto deitou-se a adivinhar como sempre faz com os pedaços de conversas que lhe chegam daqui e dali, e tece histórias alheias, só a sua história não é capaz de tecer, como é que se pode viver e contar ao mesmo tempo, e se a contasse a ninguém havia de interessar, a cada um só interessa a própria história, a mais feliz, a mais desgraçada, a única que lhe pertence, do primeiro ao último segundo da vida vivida.

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Excerto de “Os Olhos de Aura”
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