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E o mar logo ali

A

NORMA

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Saíram os dois, de mãos dadas, o miúdo saltando de contentamento ainda antes de chegarem à porta. «Tio», chamou. «Sim?». «Podemos comer um gelado?» «Não sei se há gelados nesta época do ano. Está demasiado frio.» «Então podemos comer um gelado quente?»

João Tordo, O ano sabático, 2018, Companhia das Letras

Sem pesquisar o que os dicionários de nomes próprios femininos diziam, a mãe deu-lhe o nome de Norma. Achou que não seria diferente da Mel, da Lua, da Maria do Mar ou de outras que assumiam nomes de alimento, de astro ou de elementos ambientais. Para esta mãe, era tão óbvio dar aqueles nomes como o de Norma que, na sua visão de jurista, corresponde a critério, princípio, preceito, determinação do que deve ser.

Nos primeiros anos, a mãe via a sua filha Norma realmente como a perfeição. Nada tinha a ver com a criança, que era uma menina como as outras. Tinha a ver com os olhos da mãe, a vontade de ver em algo em si - apesar de fora de si - como perfeito.

A vida não é perfeita. Diz-se que, por isso, as leis que regulam a vida social também não são perfeitas. São os legisladores a falar, porque é difícil encontrar a palavra adequada para significar isto e não aquilo. Seria preciso estudar técnica legislativa e ler, em português, toda a obra de Sophia para compreender quão difícil é cumprir a simplicidade, mas tentar lá chegar.

E uma vez chegando a esse estádio, é um mundo que se abre aos juristas e aos cidadãos em geral, a quem continua a dizer-se que a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas.

E O MAR LOGO ALI

Ana Gomes

Norma cresceu e ganhou vontade própria, nem sempre coincidente com a da mãe. Desafiou as regras que até aí eram claras, compreendidas e assumidas como as únicas possíveis de vigorar na relação entre quaisquer seres humanos. O desafio foi em crescendo sem que a mãe tivesse tido capacidade para levar Norma a cumprir o destino posto à nascença com aquele nome. Deixaram de partilhar o presente e o futuro. Norma vive algures na Ásia, é tudo o que se sabe. A mãe vive em Portugal.

Como sempre, no barlavento algarvio, as amendoeiras começam a dar flor em finais de janeiro. Cumpre-se a lei natural, perfeita. Em fevereiro já floresceram e só isso já faz esquecer que ainda falta mais de um mês para a chegada da nova estação. Bem-vinda, primavera! - espalha ao vento a mãe de Norma, Babel.

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