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Joana Collier
from CINEMA DE MONTAGEM
Joana Collier Pensamentos de papel picado
Alice, minha filha de 4 anos, tem uma mania. Faz dois anos que ela aprendeu a usar a tesoura e não existe um dia sequer que ela não cubra o chão de papel picado. Hoje, cansada de ver, mais uma vez, a minha área de trabalho em clima de fim de festa de carnaval, cheguei no meu escritório decidida a acabar de uma vez por todas com esse hábito incompreensível. Disse a ela que já era uma menina grande e que devia parar de sair cortando tudo que via pela frente. Ela me olhou com um sorriso meio sem graça e respondeu: "Mas, mãe, é que eu adoro cortar." Foi aí que a montadora se desmontou.
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Lembro que a primeira vez que entrei em conexão com o universo cinematográfico foi aos 5 anos em Paris. Minha mãe tinha me levado para assistir A bela e a fera de Jean Cocteau, num cineclube que ficava pertinho da minha casa. O meu amigo
Pierre, que me acompanhava, ficou apavorado com a figura da besta e saiu da sala chorando com a minha mãe. Mas eu me senti imediatamente arrebatada por aquela atmosfera em preto e branco tão instigante quanto amedrontadora. Minha mãe disse que, quando voltou, eu estava de boca aberta e olhos arregalados. Logo depois veio a explosão de cores com Pele de asno de Jacques Demy, e tive a sensação de ser, mais uma vez, capturada para dentro de um espaço estimulante, o da fantasia.
Em 1985, após 9 anos morando na França, meus pais resolvem voltar ao Brasil. E com 7 anos e um português bem capenga, chego no Rio de Janeiro. Aí começo a ouvir fragmentos de histórias sobre o meu tio Eduardo, sobre o seu desaparecimento, sobre os militares, e aos poucos, percebo o grande incômodo dos meus pais em responder às minhas questões ligadas a esse assunto. Mesmo assim, com uma certa insistência, fui tentando estruturar uma narrativa que pudesse dar sentido a todas essas informações, que pareciam peças impossíveis de encaixar.
Uma década mais tarde, flanando entre livros antigos numa estante do sítio, encontro o livro Cinema Moderno, Cinema Novo. Edição de 1966, já de páginas meio soltas, com prefácio de Paulo Emílio Sales Gomes apresentando textos de vários cineastas brasileiros discorrendo sobre o papel político, as responsabilidades e o valor da arte cinematográfica num país subdesenvolvido. Esse foi o primeiro livro que eu li sobre cinema. E meu pai, me vendo transitar com ele debaixo do braço, disse: "Esse livro era do seu tio Duda". Fiquei satisfeita em saber que esse personagem ainda tão misterioso e eu tínhamos algo em comum: nós dois nos interessávamos por cinema.
Quando investigo os meus 15 anos de montagem, acho que essas memórias foram balizas importantes no meu percurso. Na faculdade de jornalismo, professores como João Moreira Salles abriram meus olhos para o documentário. E acabei entrando nesse mundo pela porta da montagem, através de Jordana Berg, que me aceitou como assistente num projeto na Videofilmes. Foi com ela que eu aprendi a ter método de trabalho, a visualizar e decupar um material bruto. Durante um ano, observei a maneira como ela articulava suas ideias, apresentava suas propostas e negociava com os diretores. Jordana me deu o meu primeiro caderno de montagem, que guardo até hoje.
Foi também através dela que eu conheci o grande cineasta Eduardo Coutinho, que acabou se tornando consultor dos dois primeiros documentários que eu montei. Lembro que durante as reuniões, ele abria a caderneta dele e ia comentando passo a passo o meu trabalho. Elogiava quando eu acertava, mas também arrasava todos os tropeços estruturais cometidos, mantendo sempre um tom irônico e muito carinhoso diante da minha inexperiência. Com Coutinho, aprendi a investigar o valor de cada sequência dentro da macroestrutura e a pensar os personagens a partir de sua complexidade.
Posteriormente, Eduardo Escorel, primeiramente como professor e ao longo dos últimos 10 anos como mestre e conselheiro cinematográfico, me levou a questionamentos essenciais em relação a planos e pontos de corte, exigindo de mim sempre uma depuração do discurso através de cada escolha na montagem. Em Juízo, documentário de Maria Augusta Ramos, depois de assistir ao primeiro corte, ele comentou: “A montagem está no enfoque de ‘Deus’. Parecem cortes de ‘BigBrother’. Tudo que é dito, é visto. A narrativa só vai ganhar forma quando essas imagens fizerem parte de um ponto de vista, como um corpo presente na situação”. Juízo foi um longo processo, que desafiou a montagem a investigar uma proporção ideal entre o conceito de quarta parede, estética da não intervenção e a prática da encenação. O cinema de Guta foi o meu primeiro contato com a ficção.
Um bom corte não é um valor absoluto. Depende tanto do material bruto quanto de uma coerência específica dentro da montagem. Por isso, encontrar a linguagem de corte para um filme é muito menos evidente do que parece. Às vezes, ele é fluido, segundo Walter Murch, "como uma faca na manteiga", deixando a cesura invisível e não interferindo na continuidade. Corta-se com o objetivo de conduzir o olhar, definindo o rastreamento feito pelo espectador em cada plano. Existem também cortes que, ao esgarçarem o tempo do plano para além da necessidade de leitura da imagem, provocam a atenção flutuante do espectador. E, nessa superfície desfiada, é que ele passa a buscar novos caminhos de exploração visual e sentido.
Em outros casos, o corte precisa ser brutal. Criando um talho que se apresenta como ruído. Uma ruptura que serve para limpar os olhos do espectador. Um golpe que redefine a expectativa dos
rumos da montagem. Ricardo Miranda, mestre e amigo fundamental, chamava esse corte de "Açougue Santa Teresinha". Ele explicava que era um tipo de rasgo, que diferente da delicadeza de uma faca de açougue francês, separava as carnes na base da machadada. Para mim, o último fotograma, antes do corte, funciona como a memória do plano anterior e o primeiro fotograma depois do corte, serve para criar uma determinada expectativa em relação ao plano seguinte. E é nessa fricção entre palavras, sons, volumes, cores e movimentos que tanto o ritmo quanto o discurso se constituem. Existem cortes que são tão impactantes que seguem reverberando ao longo de toda a estrutura. Ao longo de uma vida.
Como uma projeção que precisa de luz e sombra para revelar os contornos da imagem, o meu processo de montagem é a busca de equilíbrio na interação entre esses dois elementos. A luz é a consciência da curva dramática que o filme precisa percorrer. É a clareza narrativa, que muitas vezes, surge do entendimento de uma pequena intuição. É o sentido do filme que vai sendo adquirido para além do argumento, são também as descobertas que vão ampliando a própria relação do diretor com seu filme. A partir do meu encontro com Ricardo Miranda, as sombras foram ganhando cada vez mais presença no meu pensamento narrativo. Pois ele me ajudou a perceber o quanto a montagem também precisa de mistérios, num provocar constante de sentimentos, memórias e ideias.
Ricardo, que articulava seu pensamento cinematográfico como uma caixinha de enigmas, guardando seus planos como joias e segredos, me incentivou a pensar sobre os caminhos subterrâneos que levavam uma imagem à outra, numa linha tênue entre público e privado. Através dele, fui entendendo a necessidade e importância das fendas e frestas nos encadeamentos narrativos, a força sugestiva do extracampo e de certos planos, em contraponto a uma contextualização excessivamente decupada das ações. Glauber Rocha falava da imagem signo-símbolo, que seria um plano, que dentro de si, contivesse toda a potência metafórica do discurso fílmico. Ricardo sempre começava percorrendo o material bruto em busca dessa imagem reveladora. Muitas vezes, dentro da montagem interna de um plano como esse, é que encontro o ritmo e a fluidez, que pretendo desenvolver na narrativa.
E assim, vou transitando à meia-luz em busca de interpretações que facilitem a minha aproximação e apropriação desse jogo de encaixe sempre muito desafiador e sensorial. Para mim, o momento mais impressionante da montagem é quando tanto o diretor quanto o montador se surpreendem com a vida própria que o filme adquire. A partir desse momento, o desafio será saber conduzir as decisões para não desviar do trajeto que se impõe.
No documentário de Walter Salles sobre o cineasta Jia Zhang-ke, depois de uma discussão meticulosa de todo material bruto e de uma visualização compartilhada e entusiasmada de todos os filmes desse fascinante diretor chinês, Walter pediu que, antes de começar a trabalhar a montagem, eu apresentasse uma proposta escrita plano a plano. Depois de três dias, quatro embalagens de post it e uma parede toda coberta de papéis picados, apresento minha ideia. Walter faz perguntas e observações, e só depois de alguns ajustes é que eu começo a colocar a mão na massa. Desde então, isso passou a fazer parte do meu método, pois através dele consigo visualizar melhor o filme e organizar o pensamento de forma mais estrutural. Tenho a impressão de que meu processo está cada vez mais "linear". Trabalho cada sequência pela ordem cronológica, a partir do valor e do peso que ela tem numa macroestrutura que esbocei anteriormente. Mesmo que ela seja deslocada posteriormente, essa linha me serve sempre de guia, um norte.
Com a ficção argentina, La patota de Santiago Mitre, vivi uma experiência completamente nova: entrar num filme apenas para dar o corte final. Eu já tinha assistido ao seu primeiro longa El estudiante, seis meses antes nos cinemas e ficado impressionada com o vigor do trabalho de direção e montagem. E só muito tempo depois, soube que Walter estava coproduzindo o segundo longa dele. Foi aí que surgiu a proposta para que Santiago viesse ao Brasil e trabalhássemos juntos. Segundo Walter, o filme ainda estava com questões na montagem e talvez um olhar novo pudesse ajudar. Assim, numa segunda-feira, após ter assistido a duas versões anteriores da montagem e com um caderno repleto de ideias, chego na Videofilmes para encontrar pela primeira vez Santiago. Seis horas de conversa mais tarde, proponho passar dois dias trabalhando sozinha para que ele visualizasse melhor as minhas propostas e pudesse criar uma
certa distância da montagem. Foram dias enriquecedores em que, pela primeira vez, trabalhei com um diretor mais novo que eu e, ao mesmo tempo, com um pensamento cinematográfico tão maduro. O filme estreou em Cannes na Semana da Crítica, ganhou o prêmio de melhor filme, e eu me senti orgulhosa de ter feito parte desse processo.
Geralmente, quando digo que trabalho com montagem, muitas pessoas perguntam: “Mas por que a montagem?”. E eu penso que talvez seja porque ao entrar em contato com o material bruto de outra pessoa, me vejo num exercício profundo de deslocamento. Cada filme exigirá sempre uma maneira singular de assimilar e articular um tema, assim como, de desvendar novos parâmetros e outras facetas do meu próprio olhar.