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A primazia do sexo masculino na sucessão real

T O M Á S A . M O R E I R A

Abstract

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In spite of the traditional male precedence in the succession to the thrones, women have shown as much ability as men to be Heads of State

The traditional succession rule in Portugal determines male precedence

It is legitimate that this rule may be changed, as in other European countries, but only by representatives of the national will with a mandate for this and respecting the perspective of the Royal House of Bragança

It is too early to question today the possible abolition of the male precedence

Key words: succession to the throne; male precedence

R Sum

Malgré la traditionnelle préférence masculine dans la succession royale, les femmes ont montré autant de capacités que les hommes à être Chefs d’État

La règle traditionnelle de succession au Portugal détermine la précédence masculine

Il est légitime que cette règle puisse être modifiée, comme dans d’autres pays européens, mais uniquement par des représentants de la volonté nationale mandatés pour cet effet et en respectant la perspective de la Maison royale de Bragança

Il est trop tôt pour remettre en cause aujourd’hui l’éventuelle abolition de la préférence masculine

Mots clés: succession royale; préférence masculine

1. Rainhas

A possibilidade de haver rainhas reinantes, ou seja, monarcas do sexo feminino, foi quase sempre considerada legítima e, quando ocorria, encarada com naturalidade

Já os Livros Sagrados relatavam o respeito do Rei Salomão de Israel pela Rainha de Sabá

Na Antiguidade Clássica, Júlio Cesar tratou Cleópatra, Rainha do Egipto, como sua equivalente

No apogeu do seu Império, Filipe II de Espanha (nosso Dom Filipe I) bateu-se em pé de igualdade com Isabel I de Inglaterra pela hegemonia na Europa e nos mares

Em meados e finais do século XVIII, nos dois maiores impérios continentais europeus reinaram em simultâneo os seus talvez mais prestigiados monarcas - Catarina a Grande, Czarina da Rússia, e Maria Teresa, Arquiduquesa da Áustria

Por acaso, esse período coincidiu em parte com o reinado de D Maria I em Portugal, onde, além desta rainha e da sua bisneta D Maria II, outras mulheres exerceram ocasionalmente a Regência, com capacidade idêntica aos homens

Dentro dos monarcas ingleses de todos os tempos, os mais famosos e mais admirados, não só entre britânicos e povos do Commonwealth, mas em todo o mundo, são possivelmente as Rainhas Vitória e Isabel II

Neste jovem século XXI, três países europeus já foram chefiados por Rainhas

Alguém seriamente questionará a capacidade, competência e força das mulheres para exercer o difícil cargo de reinar?

2. A precedência masculina

Desde a Antiguidade Oriental, passando pelo período do Império Romano e depois durante a Idade Média, a norma na sucessão hereditária das coroas foi a primazia do sexo masculino

Uma realidade fácil de explicar nessas épocas mais remotas em que o Rei era o líder militar do seu povo e por vezes se envolvia pessoalmente nos combates, tarefa para a qual os homens pareceriam mais vocacionados, até devido à maior estatura, força e resistência física decorrentes das regras da natureza

Essa tradição consubstanciou-se nalguns países europeus na denominada Lei Sálica, com origem no Reino dos Francos, que vincava o primado da masculinidade perante as leis em geral e, por extensão, atribuía aos homens a absoluta exclusividade na sucessão dinástica (primogenitura “agnática”)

Na maioria dos povos, a prática era a primazia dos homens, mas não excluindo as mulheres como solução de recurso (primogenitura “cognática com precedência masculina”)

Não era habitual a igualdade de direitos entre ambos os sexos (primogenitura “absoluta”)

A ascensão duma mulher ao trono seria uma rara excepção, decorrente de ocasional falta de alternativa masculina ou de particularidades culturais ou históricas dalgum povo

Fruto da boa experiência com Rainhas reinantes e da crescente exigência de igualdade absoluta de direitos entre todos os cidadãos e portanto também entre homens e mulheres no final do século XX começou-se nas Monarquias europeias a questionar a precedência masculina Dinamarca

Suécia Noruega o Reino Unido e os Países do Benelux alteraram as regras de sucessão passando a vigorar a primogenitura “absoluta”; Espanha deu sinais de querer adoptar o mesmo princípio

O predomínio de homens na Chefia do Estado terá sido um exclusivo das Monarquias e uma discriminação vergonhosa por parte dos regimes monárquicos destinada a desaparecer da face da terra?

3. O exemplo das Repúblicas

Surpreendentemente ou não também a maioria das Repúblicas seguiu a prática do predomínio masculino não escolhendo mulheres para Presidentes ou fazendo-o muito raramente Não cabe aqui discutir se é justo e justificado; é apenas uma constatação

A República Portuguesa teve até à data 20 Presidentes todos homens nos 113 anos desde 1910 Por acaso nos 113 anos anteriores até tínhamos tido duas Rainhas para além de várias ocasiões em que mulheres exerceram temporariamente a Chefia do Estado como Regentes do Reino sem qualquer espanto ou sobressalto

No Brasil, que muito cedo na sua história teve uma Regente, foram necessários mais de 120 anos de regime republicano para a primeira mulher ser eleita Presidente, em 2011, após 35 homens terem exercido o cargo

A democrática Suíça escolheu pela primeira vez uma mulher para Presidente em 1999, após uns 150 anos em que se foram sucedendo 86 homens na Presidência, com mandatos anuais

O seu nome eternizou-se nos Césares romanos e nas designações Kaiser, Czar e Tsar

A verdade é que nos tempos modernos houve no Ocidente proporcionalmente muito mais Chefes de Estado do sexo feminino nas Monarquias do que nas Repúblicas

Nos tão igualitários Estados Unidos da América, a exclusividade masculina continua intacta, após 240 anos e 46 Presidentes todos homens

Em França, com 25 homens e nenhuma mulher Presidente em 150 anos, onde ficou a revolucionária “égalité”?

E o que dizer de Itália e Alemanha, cada uma com uns 75 anos de regime durante os quais para as respectivas presidências só foram eleitos homens (12 em cada uma)?

Como explicar que nestes casos nem uma única mulher fosse escolhida?

Culpa da tradição monárquica, que costuma ter as costas largas? Ou poderemos concluir tratar-se dum hábito cultural transversal a quase todas as sociedades e tempos? (Como se costuma dizer: “Já no tempo dos romanos ”

4. Tradição portuguesa

A instituição da realeza foi-nos trazida no início do século V pelos suevos e visigodos em cujos reinos os monarcas foram sempre homens

Nalguns dos reinos cristãos ibéricos oriundos da Reconquista foi-se evoluindo para a preferência masculina não exclusiva ou seja na ordem de sucessão entrariam prioritariamente os filhos varões por ordem de nascimento mas na falta de linha masculina a coroa passaria para as filhas ou netas do monarca

Em Portugal, este princípio teria sido supostamente estatuído logo no século XII pelas Cortes de Lamego, cujas actas, apesar de forjadas e apócrifas, foram sendo unanimemente aceites como correspondendo às práticas do Reino

Presidentes dos EUA

Um exclusivo masculino desde George Washington Joe Biden é o 46º Presidente

Nessas Cortes, previamente à fixação das regras, o Rei teria sido consultado: “Diz oh Rei, se quereis que entrem as filhas na herança do Reino, e se quereis fazer leis no que lhes toca?”

Rezam as actas que, depois de “altercarem por muitas horas os Bispos e nobres fizeram as leis nesta forma: Se el Rei de Portugal não tiver filho varão, e tiver filha, ela será a rainha tanto que el Rei morrer ”

Respeitando este princípio, por morte do Rei D Fernando I (em 1383) ter-lhe-ia sucedido no trono a única descendente viva, Dona Beatriz, o que só não ocorreu por ser casada com um rei estrangeiro, João I de Castela

Alguns séculos mais tarde, por morte de D José (em 1777) e D Pedro IV (em 1834) sem filhos varões, sucederam-lhes com toda a naturalidade as filhas, D Maria I e D Maria II

A norma da precedência não exclusiva que, conforme se depreende, não foi imposta pela Casa Real nem dependia da vontade dos sucessivos titulares da Coroa, foi validada pelas Cortes de 1641 Passados dois séculos, a primeira Constituição portuguesa escrita, de 1822, confirmava no seu artigo 141º que A sucessão à Coroa seguirá a ordem regular de primogenitura e representação, entre os legítimos descendentes do Rei actual, preferindo sempre a linha anterior às posteriores; na mesma linha o grau mais próximo ao mais remoto; no mesmo grau o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo a pessoa mais velha à mais moça ”

A última Constituição da Monarquia (a Carta Constitucional de 1826), que vigorava no final do regime, mantinha quase ipsis verbis a mesma formulação Com a implantação da República em 1910, a Constituição passou naturalmente a omitir a questão sucessória, pelo que desde então não existem em Portugal normas jurídicas vinculativas nesta matéria

Qual é então a regra que prevalece hoje?

O conhecido parecer interno do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de Abril de 2006, esclarece a posição oficiosa do Estado Português, que é respeitar o “direito costumeiro”

A República considera, portanto, que, na falta de regras constitucionais explícitas, se deverá aplicar a tradição, ou seja, o conjunto de regras que vigoraram desde a fundação da nacionalidade e que não foram questionadas ao longo de quase um milénio, incluindo a primazia masculina

A Casa de Bragança tem mostrado respeitar essa lógica sem hesitações Devemos considerar o princípio da precedência masculina como imutável ou é legítimo questioná-lo? Como poderia ser alterado?

Qual é então a regra que prevalece hoje?

O conhecido parecer interno do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de Abril de 2006, esclarece a posição oficiosa do Estado Português que é respeitar o “direito costumeiro”

A República considera portanto que na falta de regras constitucionais explícitas se deverá aplicar a tradição ou seja o conjunto de regras que vigoraram desde a fundação da nacionalidade e que não foram questionadas ao longo de quase um milénio incluindo a primazia masculina

A Casa de Bragança tem mostrado respeitar essa lógica sem hesitações

Devemos considerar o princípio da precedência masculina como imutável ou é legítimo questioná-lo? Como poderia ser alterado?

5. Futurologia

Representação das lendárias Cortes de Lamego

O pacto entre Dom Afonso Henriques e os representantes do clero, da nobreza e do povo

Entre os monárquicos discute-se ocasionalmente a pertinência de seguir os exemplos externos e eliminar o princípio da precedência masculina

Imaginemos que a prazo o movimento monárquico português atinge os seus objectivos políticos e que passe a existir uma inequívoca vontade popular e parlamentar de devolver à Instituição Real um papel no Estado

Um novo texto constitucional teria que prescrever as regras concretas e oficiais da sucessão dinástica hereditária regulamentando a aplicação (ou não) dos seus princípios tradicionais: hereditário da nacionalidade da legitimidade da representação da primogenitura da proximidade de grau de parentesco da masculinidade (ou não)

No que respeita à precedência masculina qualquer opção que prevalecesse quanto à sua manutenção ou abolição seria legítima desde que garantidas a representatividade legitimidade e democraticidade de quem votasse os novos preceitos

O primeiro impulso duma assembleia que fosse decidir sobre a matéria seria talvez no sentido de repor toda a tradição, incluindo a precedência masculina Considerando a actual força dos sentimentos igualitários e os exemplos doutras Monarquias europeias, é garantido que esta intenção, diferenciando os direitos dos homens frente aos das mulheres, suscitaria forte oposição, sobretudo dos meios mais progressistas e liberais

Em contrapartida, a provável tentativa por parte dessas forças para suprimir a primazia da linha masculina sofreria certamente idêntica contestação por parte do campo mais conservador e tradicionalista

O tema é crítico e melindroso e iria dividir a sociedade; mesmo dentro dos monárquicos mais fiéis poderiam surgir cisões que não devem ser subestimadas

Não sabemos nem podemos adivinhar qual seria – qual será – o sentido final da votação dos representantes da nação nesta matéria, se – ou quando - a questão um dia se colocar Em última instância, é essa decisão que será determinante e que, qualquer que venha a ser o seu sentido, terá que ser por todos respeitada

Não vejo vantagem nem interesse em antecipar essa discussão e em tentar definir e condicionar hoje qual iria ser a eventual orientação futura de novas normas constitucionais Parece até algo imprudente suscitar extemporaneamente uma questão sensível capaz de criar desnecessárias divisões entre os defensores da instituição real

Existe alguma posição oficial do movimento monárquico sobre o assunto?

6. A posição dos monárquicos

Felizmente (tanto quanto sei) a Causa Real nunca debateu formalmente em nenhum dos seus órgãos internos a questão da primazia masculina, nunca se pronunciou sobre o assunto e parece ser consensual que não tem legitimidade para o fazer

Um documento doutrinário da Causa de 1995, elaborado por uma comissão alargada e do qual fui redator, intitulado “O Rei e a Monarquia em Portugal” (Boletim da Causa Real” nº 5, de Setembro de 1995), estipula que, “ em Monarquia, o funcionamento da Instituição Real faz-se de acordo com as leis fundamentais”, que “regulamentarão em detalhe, entre outros a sucessão na Chefia do Estado” O texto omite propositadamente a questão da precedência ou não em função do sexo deixando-a em aberto para não condicionar opções futuras as quais – segundo afirma deverão ser “estabelecidas pelos representantes da comunidade nacional”

Isto é coerente com o entendimento de S A R o Senhor Dom Duarte que já em 28-1-1993 numa entrevista ao Correio da Manhã afirmava que hoje: “Nenhum grupo de monárquicos tem legitimidade para fazer uma alteração das leis dinásticas” .

Parece inequívoco que só representantes do povo com indiscutível legitimidade e mandato formal para o efeito possam eventualmente alterar as antigas regras de sucessão

Até que isso aconteça, deverá manter-se, sem hesitações, o princípio da primazia do sexo masculino, quando no mesmo grau Concorde-se ou não com ela Aliás, se o próprio Estado mostra respeitar a tradição, não deverão os monárquicos, por maioria de razão, ser os primeiros a sentir-se vinculados à letra da última Constituição do Reino?

Pôr anarquicamente em causa uma das normas sucessórias, ao sabor do livre arbítrio, abriria a porta a poderem ser contestadas também todas as outras regras e, no limite, até o próprio princípio sucessório em si

Quem argumentar que não devemos discriminar as mulheres, deveria em coerência aceitar que não se discriminem os irmãos mais novos, os ilegítimos e no limite todos os cidadãos, que numa perspectiva igualitária poderiam exigir os mesmos direitos que o Príncipe Real.

Se os monárquicos ousassem unilateralmente quebrar regras de sucessão tradicionais e seculares não estariam no fundo a legitimar a República?

7. A Casa de Bragança

Apesar de caber à Nação através dos seus legítimos representantes definir os princípios da sucessão dinástica, a Casa Real não deve ser esquecida nem secundarizada nesta matéria

Como sempre sucedeu, os seus membros, ao serem aclamados Chefes de Estado, comprometem-se a aceitar as regras que a Nação determinar nesta matéria (e noutras) É importante que se revejam nessas regras

O que aconteceria se os princípios sucessórios determinados por uma futura Constituição – fossem eles quais fossem, nomeadamente quanto à precedência masculina, estivessem em oposição à sensibilidade da Família Real? Deveria a Casa de Bragança preparar-se para esta eventualidade?

Seria pensável estabelecer tradições familiares internas, vinculativas, não dependentes do que uma nova Constituição pudesse estipular? Criar um pacto familiar que os seus membros desde crianças se comprometeriam a respeitar, no sentido de a linha de sucessão ser aquela que a Família considere mais consentânea com a transição dinástica e com o bem comum?

Na questão do sexo, estas cedências poderiam de facto ser em duas direcções alternativas:

Caso a Casa Real pretenda manter a primazia masculina, mas uma nova Constituição a eliminasse, poderia criar-se um compromisso familiar para as filhas cederem livremente a sua posição a favor de irmãos varões mais novos?

Vice-versa, caso prefira abolir a precedência masculina, mas a Constituição a viesse a manter, poderia a Casa Real incutir nos filhos homens a obrigação de livremente prescindirem do seu direito de precedência a favor de eventuais irmãs mais velhas?

Será legítimo fixar dentro da Família Real compromissos internos de cedência de primazia eventualmente divergentes das regras constitucionais?

8. Conclusões

Apesar de no passado, e ainda no presente, a tradição e as leis terem dado preferência aos homens, a prática demonstrou que as mulheres têm idêntica capacidade para exercer a Chefia do Estado

Em Portugal neste momento ninguém tem legitimidade para alterar as regras de sucessão históricas, nomeadamente a da precedência masculina, pelo que todos a devem respeitar sem hesitações

É legítimo que essa norma possa vir a ser alterada, mas apenas por representantes da vontade nacional mandatados para o efeito, tomando também em consideração a perspectiva da Casa de Bragança

A transição pacífica e indiscutível na Chefia do Estado, obedecendo a regras inequívocas, é um argumento essencial na fundamentação da superioridade da Monarquia sobre a República Dentro do campo monárquico não se devem suscitar quaisquer dúvidas ou divergências quanto às regras de sucessão

Seria extemporâneo e perigoso questionar hoje a eventual abolição da regra quase milenar da precedência masculina.