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A sabedoria da minha Mãe lá no Caminho de Santiago

Ninguém se livra da sua sombra como não se liberta da consciência (Coelho Neto). - Ao cabo, as mulheres são menos fracas que os homens, ou mais pacientes, mais capazes de sofrer a dor e a adversidade (Machado de Assis).

Nossa mãe nos acompanha muito além do que costumamos imaginar. A presença dela vai além da vida. Estamos para sempre ligados a ela por um invisível cordão umbilical. Um cordão que não se vê, mas que nunca se rompe e que nunca nos falta. Um cordão que para sempre nutre nossos sonhos, guia nossos passos, ilumina nossos dias.

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No meu segundo Caminho de Santiago, eu seguia de Fisterra para Muxia quando senti minha mãe comigo. Era uma caminhada de 34 quilômetros e eu já havia percorrido mais da metade. Sozinho, absorto, quase extasiado, eu cruzava um bosque sombreado. Uma brisa amena refrescava o calor do meio dia. Eu ouvia meus passos, as aves e as ondas marulhando no mar lá embaixo. Mar que dali eu não podia ver, mas cuja presença eu sabia, ouvia e pressentia na sutil presença de sal no ar.

De repente o dossel se abriu; a luz do sol vazou por entre as árvores; tomei consciência da minha sombra no chão. Foi um momento de epifania. A sombra é nossa companheira da vida toda. Fica invisível aqui e acolá, mas sempre volta. Nem sempre a notamos, porque estamos acostumados com ela e com sua ausência, mas está lá, sempre.

A presença da sombra é como a presença da nossa mãe. Quando prestamos atenção, vemos que ela está lá.

A lembrança de nossa mãe não é uma gravação em baixorelevo no cérebro, é uma marca indelével na nossa alma e no nosso coração. Está sempre presente a mãe cuja memória, cuja força e cujas lições continuam me nutrindo por aquele cordão umbilical que não se pode ver, mas que posso sentir.

Aquela sombra no caminho para Muxia foi tema da minha meditação até Muxia. As mães impregnam as vidas dos seus filhos. Esta presença, nem sempre se percebe, nem sempre se canta em prosa ou verso, mas poetas talentosos revelam-na, como fez Coelho

Neto neste soneto cujas estrofes iniciais me afloraram: nas névoas do passado. Mas uma das tradições conta que o apóstolo Tiago andava a pregar pelas terras da Hispânia, então sob o domínio dos romanos. Roma era um império poderoso e os cristãos ainda eram minoria perseguida com crueldade. Tiago andava desacorçoado e pensava em voltar a Jerusalém ou ir pregar em outro lugar. Assim, abatido, orava num local em que a Hispânia se acabava e começava o mar desconhecido. O Fim da Terra – o extremo oeste da península ibérica.

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração! Ser mãe é ter no alheio lábio que suga, o pedestal do seio, onde a vida, onde o amor, cantando, vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra sobre um berço dormindo! É ser anseio, é ser temeridade, é ser receio, é ser força que os males equilibra!

Enquanto orava surgiu do mar uma barca de pedra. Dela desceu Maria que veio até ele e o consolou, insuflando ânimo e esperança. Por fim, ela disse que sua missão na Hispânia estava terminada. Era hora dele voltar a Jerusalém.

Em seguida Maria se foi, mas deixou no lugar o barco de pedra. Seus restos são as pedras com estranhos formatos que ainda estão espalhadas por ali.

Em memória do apóstolo Tiago e da visita de Maria os cristãos construíram no local o que é hoje o Santuário da Virgem da Barca.

Quando cheguei ali, naquele primeiro de maio, sentei-me nas pedras em frente ao Santuário da Virgem da Barca eu me lembrei de minha mãe e das mães de Bom Despacho. Até então eu não havia percebido, mas estava começando o mês em que eu e meus irmãos nos reunimos em memória de nossa mãe. Ela partiu no dia 11 de maio de 2020, um dia após o dia das mães.

Emocionado, gravei e mandei uma mensagem para as mães de Bom Despacho. Eu estava tomado pela emoção.

No dia 10 de maio de 2020 celebramos com ela o dia das mães. Aparentava saúde boa, compatível com quem tem 92 anos. Como sempre, estava alegre com a presença de filhos, netos, bisnetos e tantos agregados que ela acolhia com carinho. No dia seguinte, passadas as comemorações, ela nos deixou.

Desde então o mês de maio se tornou para mim um mês especial. O mês do adeus. Aquele adeus que todos sabemos que um dia teremos que dar, mas sempre desejamos que não chegue nunca.

Para mim o dia das mães é dia de saudade, mas não é dia de tristeza. Minha mãe sempre foi e continua sendo uma presença marcante na minha vida. Ela me ensinou muitas coisas, mas, principalmente, me ensinou a importância do trabalho, a necessidade de ser honesto e o valor da família e dos amigos. Ela também me ensinou a ser mais tolerante com as fraquezas e erros alheios e menos tolerante com minhas próprias fraquezas e meus próprios erros. Ela me ensinou que a força para viver vem de dentro, vem da alma, não do mundo cá de fora.

São ensinamentos que me acompanharam quando eu palmilhava sozinho o Caminho de Santiago da mesma forma que têm me caminhado pela estrada da vida.

Dali segui para Compostela com certeza da proteção que eu tinha por causa de tudo que minha mãe me havia ensinado. Quando cheguei à Catedral de Compostela e mais uma vez pude apreciar a beleza do lugar e da sua história, revivi como ela, com sua sabedoria, nos ensinou a ter tolerância, paciência, esperança e fé. Ali estava eu, olhando a Catedral com mais de mil anos de existência, construída sobre o túmulo do apóstolo Tiago, morto em 44 depois de Cristo e ali sepultado por seus amigos, longe dos olhos dos seus algozes romanos.

No entanto, um ano antes, no dia 1º de maio de 2022, eu havia perdido a visão devido a um descolamento de retina. Era para ter sido um momento de escuridão e trevas. No entanto, a sabedoria dela me deu o que eu precisava para enfrentar a provação: ter paciência para esperar o tempo que precisamos esperar; ter esperança e fé de que as coisas vão dar certo; agir, porque a vida não socorre os que se acomodam.

Assim foi. Quando o calendário marcava um ano do início da minha cegueira, ali estava eu iniciando pela segunda vez o Caminho de Santiago. Quando o calendário marcava um ano da cirurgia que me restituiu a visão, ali estava eu estava diante da Catedral, deleitandome com sua beleza e com sua história.

Como me ensinou minha mãe, aceitei em paz a provação de perder a vista; tive paciência para esperar e tive esperança de que tudo voltaria ao normal. As mães desdobrarem fibra por fibra o coração; elas se debruçarem sobre nosso berço quando dormimos e quando nos inquietamos. Elas nos ensinam a lição mais importante das nossas vidas: o amor incondicional. A gratidão que sinto por tudo que minha mãe me deu – tenho certeza – é a mesma gratidão que todo bom-despachense tem por tudo que suas mães lhes deram. É por tudo isto e muito mais que compartilho com todas as mães de Bom Despacho o carinho, o afeto e as boas lembranças que minha mãe me deixou.

As mães gozam daquela força de que fala Machado de Assis: são menos fracas dos que os homens,sãomaispacientese maiscapazesdesofreradore a adversidade. Ou, como queria Coelho Neto, são a forçaqueosmalesequilibra. São nossas mães.