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OPINIÃO

eSPAÇo JornALISTA mArTInS de vASConCeLoS

Organização: CLAuder ArCAnJo

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O CaMINHO, a CaMISaeaS HIStÓrIaS detraNCOSO

rAImundo AnTonIo de SouZA LoPeS

é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com

Todos os dias, de segunda a sexta, entre a ida e a volta, ele andava duas léguas. Ia estudar. Saía, assim que o dia raiava, para poder chegar na hora certa; e voltava, quando o sol estava no seu apogeu. A estrada era vicinal, com todos os elementos naturais, logo, de terra, de pedras e de buracos. Quando um carro passava por ele – trafegando em qualquer das direções – levantava a poeira que o banhava, por inteiro. Nessas ocasiões, a camisa branca, única e já puída, adquiria, rapidamente, outra cor; essa, mais puxada para o cinza. Com o tempo, ele aprendera que não podia passar a mão; pois, se assim o fizesse, a fina poeira incrustrada no tecido se transformaria numa pasta disforme de sujeira. O segredo, portanto, era tirar a camisa, segurá-la pelo colarinho e, em seguida, sacudi-la, tendo o cuidado de o fazer sempre dando as costas para o lado de onde vinha o vento. Conseguia, desse jeito, tirar quase toda a poeira e, principalmente, evitava, se suasse, na ida, grudar o suor na camisa cheia de poeira, o que era normal acontecer, em razão de andar uma distância muito grande a pé ...

O caminho, para não se tornar tortuoso, longo além do necessário, era transformado pelo andante, como uma estrada das histórias de trancoso. Histórias, contadas nos finais de tardes, no alpendre da casinha de taipa, pelos senhores que moravam nos seus arredores Ele gostava de ouvi-las. E acreditava que eram verdadeiras. Não tinha como duvidar daqueles homens calejados, forjados no solo esturricado da caatinga, que trabalhavam a terra de sol a sol e que, sempre, nos finaizinhos de tardes, após lavarem as mãos e os pés numa bacia, iam contar o que tinham aprendido com os seus avós, seus pais e, aqui e acolá, com um viajante que passava por aquelas terras e contava mais histórias imaginárias. Assim, pegou-se, várias vezes, colocando os tamboretes com antecedência, para que, quando eles chegassem, só tivessem o trabalho de, ao se sentarem, colocarem suas costas na parede de barro cru forçando o assento a ficar com somente duas pernas encostadas no chão, de barro batido, do alpendre.

Desta forma, na ida, enquanto o caminho se descortinava à frente, ele ia “inventando” uma forma de torná-lo menos cansativo e, também, mais rápido de chegar. Assim, os pés de “fulôde-seda” se transformavam em cangaceiros que ficavam escondidos, na beira da estrada, à espreita de quem ia passando, para emboscá-lo. E, para evitar ser “capturado” pelos jagunços, ele, como num passe de mágica, se transformava em um cowboy. De repente, na sua cintura aparecia a cartucheira com dois revólveres colt 45 carregados de balas. Nas costas, na diagonal, o rifle winchester; todos eles, iguaizinhos aos que ele via nos filmes de Rin tin tin ou nos estrelados por John Wayne. Com isso, ele conseguia, com mirabolantes e artísticas performances, passar pelos “bandidos”. A escola, de repente, chegava. Na volta, os mourões das cercas eram, como nas histórias de trancoso, pessoas encantadas. Só faltava mesmo algumas delas estarem pegando fogo, para materializar, de vez, o enredo, contado pelos senhores, dos homens que se encantavam, transformando-se em tocos pegando fogo. Na volta da escola, no pingo do meio-dia, o sol escaldante do sertão, com temperaturas elevadas, não dava trégua. E não tinha jeito para conservar a camisa sem deixar a gola preta de sujo. A mistura de suor, pó da estrada e pano puído branco, não combinava. Nas costas, o suor descendo, da nuca até o cós da calça, deixava empapada a parte de trás da “camisa da farda”. Nas axilas, davase o mesmo. Novamente, a mistura se fazia presente e deixava, no pano, uma arte não muito desejável, mesmo que o dono da peça não fosse um artista plástico. Aquilo, diariamente, era sinônimo de, ao chegar na casinha de taipa, já colocar a camisa no balde com água, pegar um pedaço de sabão e esfregar, especialmente, na gola e nos sovacos. Mas ele não achava ruim. Ruim mesmo era quando o tempo mudava e caía, de repente, um toró d’água (coisa rara, mas acontecia). O caminho, nesses dias, modificava-se consideravelmente. O que era terra, pedra e poeira passava a ser um tapete coberto de atoleiro. A água infiltrada na terra fazia com que tudo ficasse uniforme na sua umidade. Ele não gostava. Embora só possuísse uma camisa e uma calça de farda, o que preocupava era, na verdade, os tênis Conga. Esses sim, eram únicos. E ele tinha o cuidado de tentar conservá-los por mais tempo possível. E, na lama, molhá-los, ou enchê-los de barros, a sua durabilidade caía muito.

O tempo passou. Os estudos foram completados. A estrada ficou lá para trás. Nunca mais foi percorrida, diariamente, por aqueles pés, calçados no par de tênis Conga, que precisava durar mais do que seu prazo de validade. A camisa branca, que todos os dias tomava banho de perfume, cuja flagrância podia ser chamada de “poeira do caminho”, vive agora apenas em suas lembranças. As fantasias que o ajudavam a chegar mais rápido à escola, sem se cansar, até hoje lhe fazem bem. As histórias contadas pelos homens, moldados nas agruras do torrão onde viviam, serviram (e muito!) em sua trajetória de escritor. São elas que, adaptadas, atualmente, são contadas em livros, revistas e jornais.

dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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