6 minute read

OPINIÃO

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: CLAUDER ARCANJO

Advertisement

COM DESIGUALDADE SOCIAL CRESCENTE, DESEJAR BOM DIA PODE SER UMA PIADA DE MAU GOSTO

AÉCIO CÂNDIDO

professor da UERN, aposentado. Autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com

Luiz Antônio, poeta popular e cantador de viola que viveu em Mossoró até se despedir do mundo, era conhecido pela inteligência viva, pela ironia sem piedade e pelo mau humor. Também pelo apuro de sua poesia. Em seus dias mais típicos, ele não se continha nem diante do prosaico “bom dia”, cumprimento habitual e civilizado. - Bom dia, Luiz! - Pra uns, respondia com o cenho fechado, deixando o interlocutor atordoado com o escanteio da resposta automática.

Uma correção necessária: na verdade, Luiz era um espírito leve, de grande senso de humor, capaz de boas risadas e de um divertimento genuíno diante de certas situações do cotidiano. Tinha a argúcia bem humorada de quem descobre a nudez da falsa solenidade e da seriedade obtusa. Era implacável com a burrice e a ignorância, e contra elas pelejava munido de carradas de ironia.

A resposta de Luiz põe a nu o teatro que precisamos encenar todos os dias: tudo vai bem, tá tudo ok, o dia será bom. Independentemente de mais sol ou menos sol, claro que o dia não será igualmente bom para todos. As necessidades materiais – a comida e o teto que faltam – e as necessidades psíquicas e emocionais não satisfeitas contrariam a esperança de um paraíso que teria tudo para poder acontecer neste mundo, ainda que não exatamente coincidente com o modelo idealizado por espíritos místicos e crentes.

Quem se levanta com a certeza de um bom dia, porque a comida, a moradia, o transporte, a saúde e o lazer estão garantidos, quase nunca tem a percepção de que há também aqueles para quem, por não terem nada disso garantidos, a perspectiva de um bom dia é bastante remota. Definitivamente, um bom dia, a não ser como saudação esperançosa, não está ao alcance de todos.

A resposta de Lula da Silva à senadora Soraya Thronicke no debate eleitoral da Band agora em 2022, como tréplica ao seu comentário de que não tinha visto nenhuma melhora de vida durante os governos petistas, é bastante pertinente: “A senhora não viu, mas pergunte a sua empregada doméstica, a seu motorista, a seu jardineiro. Eles viram”. Infelizmente, quem está no paraíso raramente percebe os que habitam fora dele.

Jorge Luis Borges, o celebrado escritor argentino, imaginava o paraíso, fonte suprema de prazer, como uma imensa biblioteca. É uma visão generosa. Quem não tem teto imagina o paraíso como uma casa, um lugar para onde voltar à noite depois do cansaço do trabalho, abrigado das intempéries e guardado pela solidez da construção. A previsibilidade positiva, a garantia de que o que é bom e desejável virá, faz parte do paraíso. A previsibilidade negativa, a certeza de que o desejável é inalcançável, é componente do inferno.

O paraíso grego da Antiguidade, com as benesses da democracia, abrigava em Atenas, no século V a.C., apenas os cidadãos livres, que eram 40 mil. Os 240 mil escravos estavam fora dele.

No Brasil, a escravidão, particularmente cruel e que quase bate à porta do século XX, distinguia de modo radical a vida da senzala e a vida da casa grande. Era inferno e paraíso, quase ao pé da letra, sem espaço para verniz metafórico. Os respingos continuam até hoje, no subemprego e no desemprego.

A revolução tecnológica, iniciada há dois séculos, primeiro na indústria, depois na agricultura, tornou a ideia de paraíso uma possibilidade real. A capacidade de produção, pela primeira vez na história, ultrapassou as necessidades do consumo. No chamado Primeiro Mundo, formado pelos países pioneiros da industrialização, o paraíso se alargou, abarcando uma imensa parte da sociedade. As economias mais desenvolvidas eliminaram as desigualdades econômicas extremas e criaram um lastro social extenso formado por uma grande classe média. Mas as desigualdades, nesse início do século XXI, ressurgem, mesmo em países como Estados Unidos, França e Alemanha. Os extremos, com ricos muito ricos e pobres muito pobres, acentuam-se e a classe média se contrai. Nos Estados Unidos, o número dos que vivem em extrema pobreza ultrapassa os 30 milhões de pessoas (11% da população). Poucas décadas antes de se encerar o século XX, a diferença entre o salário de um executivo de banco na área de tecnologia e o de um bancário americano médio era de 40 vezes, hoje é de 400 vezes. Essas diferenças se expressam em outros níveis e campos e retratam uma série de mudanças ocorridas na economia e na sociedade: em 1960, o presidente de uma grande empresa privada ganhava nos Estados Unidos o dobro do salário do presidente da República. Hoje, essa diferença é de 62 vezes.

No Brasil, de desigualdades sociais persistentes, a distância entre ricos e pobres já foi um pouquinho menor e agora voltou a crescer. Saímos, mas já voltamos a entrar no Mapa da Fome. Em escala mundial, os dados que expressam as desigualdades econômicas são aterradores: as 62 pessoas mais ricas do mundo, listadas na revista Forbes, possuem uma riqueza equivalente à de 3,5 bilhões de pessoas pobres. Os dados são de seis anos atrás, quando a população mundial estava em 7 bilhões de viventes. Isto quer dizer que 62 pessoas possuem metade da riqueza do mundo. No Brasil, 10% da população é dona de 75% da riqueza.

A concentração de riquezas ganha contornos trágicos. No mundo dos esportes, da música, do cinema e da televisão os salários são astronômicos. Sem saber o que fazer com tanto dinheiro, muitos jovens atletas e artistas, com juventude demais e maturidade de menos, sem lastro intelectual e emocional para conviver com a riqueza e a fama, findam por destruir a própria carreira e, em alguns casos extremos, a própria vida.

Há um elemento novo na equação: a produção econômica aumenta a cada ano, mas a desigualdade não diminui. Isto porque o aumento da produção já não depende do trabalho humano. Depende das máquinas. Cresce a produção e não aumenta o nível de emprego. Com isso, temos um paradoxo: como manter o consumo, que depende de renda e esta, da remuneração do trabalho? Se não há renda, como haver consumo? E se não há consumo, como manter vivo o capitalismo?

Luiz Antônio estava coberto de razão: a cada amanhecer, o dia será bom, e mesmo muito bom, mas apenas para alguns.

DI RE ÇÃO GE RAL: Cé sar San tos DIRETOR DE REDAÇÃO: César Santos GE REN TE AD MI NIS TRA TI VA: Ân ge la Ka ri na DEP. DE ASSINATURAS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

www.de fa to.com E-MAIL: re da cao@de fa to.com TWITTER: @jornaldefato_rn | REDAÇÃO E OFICINAS: SEDE: Avenida Rio Branco, 2203, Centro, Mossoró-RN – CEP: 59.063-160 TELEFONES: (084) 99836-5320 (Mossoró) | COMERCIAL/ASSINATURAS: (84) 99956-4810 - (84) 99485-3685

FI LIA DO À

This article is from: