5 minute read

OPINIÃO

Next Article
GERAIS/OPINIÃO

GERAIS/OPINIÃO

esPaÇo JoRNaLIsta MaRtINs de VasCoNCeLos

organização: CLaudeR aRCaNJo

Advertisement

MudaNça PrOfuNda, mas espero que passageira

aéCIo CâNdIdo

professor da UERN, aposentado. autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com

Naquela tarde de quintafeira, olhando a kombi velha parada entre a Via Costeira e o pé do Morro de Mãe Luíza, eu, indiferente à brisa e à cor do mar, senti que alguma coisa estava mudando no país. Para pior.

O cenário político sobrepunha-se ao cenário geográfico. Era 22 de setembro de 2016, Fernando Mineiro concorria à prefeitura de Natal; um golpe engenhoso, com maquiagem democrática, tinha retirado Dilma Roussef do Palácio do Planalto; uma campanha anti-petista alucinada acusava o partido até da seca do Nordeste; o juiz Sérgio Moro deliciava-se com a fama de justiceiro e se animava a acusar Lula de ter recebido, em negócios escusos, um sítio em Atibaia e um tríplex na praia do Guarujá.

Nessa data, Lula veio a Natal apoiar a campanha de Mineiro e foi promovido, no restaurante Tábua de Carne da Via Costeira, um almoço de adesão para financiamento da campanha. O almoço reuniu um pouco mais de duas centenas de apoiadores, entre eles, muitos professores universitários, profissionais liberais e sindicalistas. Um ambiente animado, com gente emocionada por reencontrar o ex-presidente, correndo solto os abraços e outros gestos de carinho. Toda aquela gente, maior de idade, homens e mulheres com longo percurso de vida, estava ali por livre escolha, para se reencontrar e contribuir financeiramente com a campanha de um candidato de grandes méritos, na avaliação de cada um. Enfim, pela idade, pela formação intelectual e pela experiência de vida, todos ali eram pessoas conscientes de seus atos, com grande capacidade de julgamento, de si e das coisas.

Na minha cabeça, pelo menos, jamais me passou a ideia de que alguém pudesse vir me desautorizar de um ato que eu fazia com plena consciência. Mas veio.

Ao final do almoço, a tarde já avançada, restando ainda um bom número de pessoas no restaurante, apareceu uma kombi, aparelhada com sistema de som e comandada por umas três ou quatro pessoas, para dizer que não devíamos estar ali. Parada em frente ao restaurante, a kombi servia de palanque para um discurso raivoso, que dizia que todos nós éramos corruptos, que tínhamos bandido de estimação, que o PT destruíra o Brasil, e toda a catilinária que depois se expandiu pelo país e que foi repetida à exaustão até por quem nunca na vida se interessou, um grama que fosse, por política. Só não nos chamou de “carne assada”, como diria minha avó, utilizando a expressão que para ela sintetizava todo um conjunto de desaforos inomináveis.

Na minha cabeça, pelo menos, jamais me passou a ideia de que alguém pudesse vir me desautorizar de um ato que eu fazia com plena consciência. Mas veio.

As mulheres e os homens da kombi eram fanáticos, espécimes de uma direita raivosa e agressiva e que à época já começava a se articular em torno do Mito. O fanático não avalia riscos. Ele está tão convencido de sua verdade e a considera tão óbvia que tudo quanto ele precisa para convencer é dos ouvidos do interlocutor. Ele acha que basta falar para convencer, porque a verdade está com ele e é cristalina. Eles repetiam o Mito: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. O fanático não aceita questionamento da verdade; a verdade é a verdade, e isto basta como conceito.

Há um episódio na história do Ocidente que ilustra essa crença cega no convencimento automático. Nicholas, um adolescente alemão que reuniu, em 1212, 30 mil crianças numa cruzada para libertar Jerusalém, acreditava que a empreitada seria fácil, porque “os sarracenos seriam tomados pela devoção de crianças, de meninos e meninas, à causa santa; que eles jogariam as espadas e as cimitarras fora; cairiam de joelhos diante da Cruz de Jesus e se converteriam à verdadeira fé”, nos conta Paul L. Williams no livro O guia completo das Cruzadas. Nem conseguiram chegar ao destino, os inocentes.

Foi difícil no restaurante segurar a justa ira de muitos dos presentes que queriam botá-los pra correr, usando a única linguagem que eles seriam capazes de entender naquelas condições, que era a porrada, ou a pedagogia do cacete, como um amigo meu costumava designar o castigo físico com finalidade de aprendizado.

Imaginei naquele instante como seria absurdo que crentes evangélicos, que em geral consideram o culto católico a Nossa Senhora um sacrilégio e uma afronta ao Evangelho, fossem agora para as portas das igrejas insultar católicos, chamando-os de adoradores de imagens, de prestadores de culto a uma divindade humana (Maria de Nazaré). Ou que um vegetariano invadisse um churrasco para fazer pregação anticarne. Para o fanático não existe direito de escolha nem adultos conscientes, só incapazes intelectuais.

Havia precedentes. Na Bahia, num hotel que abrigava um encontro do PT, gente se hospedou lá para poder, nos corredores e no restaurante, agredir dirigentes do partido. Houve também o caso de três playboys, entre os quais um filho do empresário Álvaro Garnero, que, à saída de um restaurante no Leblon, agrediram Chico Buarque com gritos alucinados de “petista, vá morar em Paris. Ladrão. Vá morar em Cuba. O PT é bandido”. O rapazinho muito rico não tinha a menor condição de apreciar a beleza e complexidade estética de um verso como este “despudorada, dada / à danada agrada andar semi-nua” e, portanto, não tinha a menor ideia do artista que era Chico Buarque. Chico reagiu com calma e tranquilidade ao ataque histérico de ricaços miseráveis de espírito.

O que estava sendo quebrado naquele momento era um traço cultural arraigado e forte: brasileiro só fala mal pelas costas. A mudança foi mais longe: trata-se de falar mal na frente, gratuitamente, de agredir pessoas que não são do seu convívio, identificadas apenas porque são “de esquerda”. Como nos Estados Unidos, onde o racista gritava (ou grita, mais timidamente) na cara do negro que ele não valia nada. No elevador do meu prédio, uma criatura a quem a natureza lhe negou tudo, no dia do impeachment reclamava da demora de sua televisão no conserto: “É hoje que a vagabunda vai pegar o beco e minha televisão não chega pra eu assistir”. De onde ela conhecia a presidente Dilma, pra chamála de vagabunda?

A primeira regra de civilidade é aceitar a convivência com o diferente. Os diferentes podem, sem comprometer a convivência, defender seus pontos de vista. Isso se chama diálogo. Desaforo e agressão são a linguagem do fanático. No limite, a eliminação física – ou o banimento: “Vai pra Cuba! Vai pra China!”, gritam eles, sem saber que o fim do mundo é qualquer lugar onde eles estejam.

dI reçÃO geral: César santos dIretOr de redaçÃO: César santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINaturaS: alvanir Carlos um produto da santos editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César santos e Carlos santos.

FILIADO À

This article is from: